1
Há outra palavra acerca da qual importa igualmente que todos se entendam,
porque é uma das pedras angulares de toda doutrina moral, e ser objeto
de inúmeras controvérsias, à falta de uma acepção bem determinada: a
palavra alma. 2
A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação
particular que cada um faz desse vocábulo. Uma língua perfeita, em que
cada ideia tivesse sua representção por um termo próprio, evitaria muitas
discussões; com uma palavra para cada coisa todos se entenderiam.
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Segundo uns, a alma é o princípio da vida material orgânica; não tem
existência própria e cessa com a vida: é o materialismo puro. 4
Neste sentido e por comparação, dizem de um instrumento rachado, que
não produz mais som, que ele não tem alma. Conforme essa opinião, tudo
que vive teria uma alma, tanto as plantas como os animais e o homem. 64
5
Outros pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal
do qual cada ser absorve uma porção. 6
Segundo esses, não haveria em todo o Universo senão uma só alma a distribuir
centelhas entre os diversos seres inteligentes durante a vida destes;
após a morte, cada centelha retorna à fonte comum, confundindo-se com
o todo, como os regatos e os rios voltam ao mar, de onde saíram. 7
Essa opinião difere da precedente em que, nesta hipótese, há em nós
algo mais que a matéria, restando alguma coisa após a morte; mas, é
quase como se nada restasse, visto que, não tendo mais individualidade,
não mais teríamos consciência de nós mesmos. 8
Dentro desta opinião, a alma universal seria Deus, e cada ser uma porção
da Divindade; é a doutrina do panteísmo.
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Segundo outros, enfim, a alma é um ser moral, distinto, independente
da matéria e que conserva sua individualidade após a morte. 10
Esta acepção é, sem contestação, a mais geral, porque, sob um nome ou
outro, a ideia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra em estado
de crença instintiva, e independentemente de qualquer ensinamento, entre
todos os povos, seja qual for seu grau de civilização. 11
Essa doutrina é a dos espiritualistas.
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Sem discutir aqui o mérito dessas opiniões e colocando-nos por um momento
em terreno neutro, diremos que estas três aplicações da palavra alma
constituem três ideias distintas, que reclamariam cada uma um termo
diferente. 13
Essa palavra tem, pois, tríplice acepção e cada um tem razão, de seu
ponto de vista, na definição que lhe dá; o mal decorre do fato de não
dispor a língua senão de uma palavra para exprimir três ideias. 14
A fim de evitar todo equívoco, seria necessário restringir-se a acepção
da palavra alma a uma dessas três ideias; 15
a escolha é indiferente, desde que todos se entendam, pois tudo isto
é uma questão de convenção. 16
Julgamos mais lógico tomá-la na sua acepção mais comum; por isso chamaremos
ALMA ao ser imaterial e individual que reside em nós e sobrevive
ao corpo.
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Na falta de um vocábulo especial para cada uma das duas outras ideias
a que corresponde a palavra alma, denominamos:
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Princípio vital, o princípio da vida material e orgânica, seja
qual for sua fonte, e que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas
até o homem.
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O princípio vital é coisa distinta e independente, já que pode haver
vida com abstração da faculdade de pensar. A palavra vitalidade
não expressaria a mesma ideia. Para alguns, o princípio vital é uma
propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se
acha em dadas circunstâncias. 20
Segundo outros, e esta é a ideia mais comum, ele reside num fluido especial,
universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parte
durante a vida, como vemos os corpos inertes absorverem a luz. 21
Esse seria, então, o fluido vital que, na opinião de alguns, não seria
outro que o fluido elétrico animalizado, também designado por fluido
magnético, fluido nervoso, etc.
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Seja como for, há um fato que não se poderia contestar, pois que resulta
da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima que
produz o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; 23
que a vida material é comum a todos os seres orgânicos e que ela independe
da inteligência e do pensamento; 24
que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas
espécies orgânicas; 25
finalmente, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência
e de pensamento há uma, dotada de um senso moral especial que lhe dá
incontestável superioridade sobre as outras: a espécie humana.
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Chamamos, finalmente, inteligência animal ao princípio intelectual
comum em diversos graus a homens e animais, independente do princípio
vital e cuja fonte nos é desconhecida.
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A alma, na acepção exclusiva que adotamos, é atributo especial
do homem.
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Concebe-se que, com uma acepção múltipla do termo alma, a alma não exclui
o materialismo, nem o panteísmo. O próprio espiritualista pode muito
bem entender a alma segundo uma ou outra das duas primeiras definições,
sem prejuízo do ser imaterial distinto, a que então dará um nome qualquer.
Assim, essa palavra não representa uma opinião: é um proteu,
que cada um ajeita à vontade. Daí tantas disputas intermináveis.
29
Evitar-se-ia igualmente confusão, mesmo se servindo da palavra alma
nos três casos, desde que se lhe ajuntasse um qualificativo especificando
o ponto de vista sob o qual a encaramos ou a aplicação que dela se faz.
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Esta teria, então, um termo genérico, como gás, por exemplo, que se
distingue de outro ajuntando-se-lhe as palavras hidrogênio, oxigênio,
azoto, etc. 31
Poder-se-ia, assim, dizer (e talvez fosse o melhor) a alma vital,
indicando o princípio da vida material, 32
a alma intelectual, o princípio da inteligência; 33
e a alma espírita, o princípio de nossa individualidade após a morte.
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Como se vê, tudo isso é uma questão de palavras, mas questão muito importante
para nos entendermos. 35
De acordo com isso, a alma vital seria comum a todos os seres
orgânicos: plantas, animais e homens; 36
a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens, 37
e a alma espírita pertenceria somente ao homem.
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Julgamos dever insistir nestas explicações pela razão de que a Doutrina
Espírita repousa naturalmente sobre a existência, em nós, de um ser
independente da matéria e que sobrevive ao corpo. 39
Devendo a palavra alma repetir-se frequentemente no curso desta obra,
importava ser fixada no sentido que lhe atribuímos, a fim de evitarmos
todo engano.
40
Passemos, agora, ao objeto principal desta instrução preliminar. >>>
[64] N.T.: Na edição definitiva de 1860, o último período deste
parágrafo passou a ter a seguinte redação: “Conforme essa opinião, a
alma seria um efeito e não uma causa”.