I. Fontes
das provas sobre a natureza do Cristo. — II. Os
milagres provam a divindade do Cristo? — III. As
palavras de Jesus provam a sua divindade? — IV. Palavras
de Jesus depois de sua morte. — V. Dupla
natureza de Jesus. — VI. Opinião
dos Apóstolos. — VII. Predição
dos profetas, com relação a Jesus. — VIII. O
Verbo se fez carne. — IX. O
Filho de Deus e o Filho do homem. |
Fontes das provas sobre a natureza do Cristo.
A questão da natureza do Cristo foi debatida desde os primeiros séculos do Cristianismo e pode-se dizer que ainda não se acha solucionada, pois que continua a ser objeto de discussão. Foi a divergência das opiniões sobre este ponto que deu origem à maioria das seitas que dividiram a Igreja há dezoito séculos, sendo de notar-se que todos os chefes dessas seitas foram bispos ou membros titulados do clero. Eram, por conseguinte, homens esclarecidos, muitos deles escritores de talento, abalizados na ciência teológica, que não achavam concludentes as razões invocadas a favor do dogma da divindade do Cristo. Entretanto, como hoje, as opiniões se firmaram mais sobre abstrações do que sobre fatos. Sobretudo, o que se procurou foi saber o que o dogma continha de plausível, ou de irracional, deixando-se, geralmente, de um lado e de outro, de assinalar os fatos capazes de lançar sobre a questão uma luz decisiva.
Mas, onde encontrar esses fatos, senão nos atos e nas palavras de Jesus?
Nada tendo Ele escrito, seus únicos historiadores foram os apóstolos que, tampouco escreveram coisa alguma quando o Cristo ainda vivia. Nenhum historiador profano, seu contemporâneo, havendo falado a seu respeito, nenhum documento mais existe, além dos Evangelhos, sobre a sua vida e a sua doutrina. Aí somente é que se há de procurar a chave do problema. Todos os escritos posteriores, sem exclusão dos de São Paulo, são apenas, e não podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que, em caso algum, poderiam ter a autoridade da narrativa dos que receberam diretamente do Mestre as instruções.
Sobre esta questão, como sobre as de todos os dogmas, em geral, o acordo entre os Pais da Igreja e outros escritores sacros não seria de invocar-se como argumento preponderante, nem como prova irrecusável a favor da opinião de uns e outros, uma vez que nenhum deles citou um só fato, fora do Evangelho, concernente a Jesus; que nenhum deles descobriu documentos novos que seus predecessores desconhecessem.
Os autores sacros nada mais conseguiram do que girar dentro do mesmo círculo, produzindo apreciações pessoais, deduzindo corolários acordemente com seus pontos de vista, comentando sob novas formas e com maior ou menor desenvolvimento as opiniões contrárias às suas. Pertencendo ao mesmo partido, tiveram todos de escrever no mesmo sentido, senão nos mesmos termos, sob pena de serem declarados heréticos, como o foram Orígenes e tantos mais. Naturalmente, a Igreja só incluiu no número dos seus Pais os escritores ortodoxos, do seu ponto de vista; somente exalçou, santificou e colecionou aqueles que lhe tomaram a defesa, ao passo que repudiou os outros e lhes destruiu quanto pode os escritos. Nada, pois de concludente exprime o acordo dos Pais da Igreja visto que formam uma unanimidade arranjada a dedo, mediante a eliminação dos elementos contrários. Se se fizesse um confronto de tudo que foi escrito pró e contra, difícil se tornaria dizer para que lado se inclinaria a balança.
Isto nada tira ao mérito pessoal dos sustentadores da ortodoxia, nem ao valor que demonstraram como escritores e homens conscienciosos. Sendo advogados de uma mesma causa e defendendo-a com incontestável talento, haviam forçosamente de adotar as mesmas conclusões Longe de intentarmos apontá-los no que quer que fosse, apenas quisemos refutar o valor das consequências que se pretende tirar do acordo de suas opiniões.
No exame, que vamos fazer, da questão da divindade do Cristo, pondo de lado as sutilezas da escolástica, que unicamente serviram para tudo embaralhar sem esclarecer coisa alguma, apoiar-nos-emos exclusivamente nos fatos que ressaltam do texto do Evangelho e que, examinados friamente, conscienciosamente e sem espírito de partido, superabundantemente facultam todos os meios de convicção que se possam desejar.
Ora, entre esses fatos, outros não há mais preponderantes, nem mais concludentes, do que as próprias palavras do Cristo, palavras que ninguém poderá refutar, sem infirmar a veracidade dos apóstolos. Pode-se interpretar de diferentes maneiras uma parábola, uma alegoria; mas, afirmações precisas, sem ambiguidades, repetidas cem vezes, não poderiam ter duplo sentido. Ninguém pode pretender saber melhor do que Jesus o que ele quis dizer, como ninguém pode pretender estar mais bem informado do que ele sobre a sua própria natureza. Desde que ele comenta suas palavras e as explica para evitar todo equívoco, é a ele que devemos recorrer, a menos lhe neguemos a superioridade que lhe é atribuída e nos sobreponhamos à sua própria inteligência. Se ele foi obscuro em certos pontos, por usar de linguagem figurada, no que concerne à sua pessoa não há equívoco possível. Antes de examinar as palavras, vejamos os atos.
Os milagres provam a divindade do Cristo?
Segundo a Igreja, a divindade do Cristo está firmada pelos milagres, que testemunham um poder sobrenatural. Esta consideração pode ter tido certo peso numa época em que o maravilhoso era aceito sem exame; hoje, porém, que a Ciência levou suas investigações até às leis da Natureza, há mais incrédulos do que crentes nos milagres, para cujo descrédito não contribuíram pouco o abuso das imitações fraudulentas e a exploração que dessas imitações se há feito. A fé nos milagres foi destruída pelo próprio uso que deles fizeram, donde resultou que muitas pessoas consideram agora os do Evangelho como puramente lendários.
A própria Igreja, aliás, tira aos milagres todo o alcance como prova da divindade do Cristo, declarando que o demônio os pode operar tão prodigiosos quanto aqueles outros. Se tal poder tem o demônio, evidente se torna que os fatos desse gênero carecem em absoluto de caráter exclusivamente divino. Se ele pode fazer coisas espantosas, capazes até de iludir os eleitos, como poderão simples mortais distinguir os bons milagres dos maus? Não será de temer que, observando fatos similares, confundam Deus e Satanás?
Dar a Jesus semelhante rival em habilidade é grande desazo; mas, em matéria de contradições e de inconsequência, não se consideravam as coisas com muita atenção numa época em que para os fiéis seria um caso de consciência o pensarem por si mesmos e discutirem o menor artigo que se lhes impusesse a crença. Não se contava então com o progresso e ninguém cuidava de que pudesse ter fim o reinado da fé cega e ingênua, reinado cômodo, qual o do bel-prazer. O papel tão preponderante que a Igreja se obstinou em atribuir ao demônio produziu consequências desastrosas para a fé, à medida que os homens se foram sentindo capazes de ver com seus próprios olhos. Depois de ter sido explorado com êxito durante algum tempo, ele se tornou o alvião posto no velho edifício das crenças e uma das causas da incredulidade. Pode dizer-se que a Igreja, com o tomá-lo por auxiliar indispensável, alimentou em seu seio aquele que se voltaria contra ela e lhe minaria os fundamentos.
Outra consideração não menos grave é a de que os fatos milagrosos não constituem privilégio exclusivo da religião cristã. Não há, com efeito, religião alguma, idólatra ou pagã, que não tenha seus milagres tão maravilhosos e tão autênticos para os respectivos adeptos, quanto os do Cristianismo. E a Igreja se privou do direito de os contestar, desde que atribuiu às potências infernais o poder de os operar.
No sentido teológico, o caráter essencial do milagre é o de ser uma exceção aberta nas leis da Natureza, o que, conseguintemente, o torna inexplicável mediante essas mesmas leis. Deixa de ser milagre um fato, desde que possa explicar-se e que se ache ligado a uma causa conhecida. Desse modo foi que as descobertas da Ciência colocaram no domínio do natural muitos efeitos que eram qualificados de prodígios, enquanto se lhes desconheciam as causas. Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da ação dos fluidos sobre o organismo em geral, do mundo invisível dentro do qual vivemos, das faculdades da alma, da existência e das propriedades do perispírito, facultou a explicação dos fenômenos de ordem psíquica, provando que esses fenômenos não constituem, mais do que os outros, derrogações das leis da Natureza, que, ao contrário, decorrem quase sempre de aplicações destas leis. Todos os efeitos do magnetismo, do sonambulismo, do êxtase, da dupla vista, do hipnotismo, da catalepsia, da anestesia, da transmissão do pensamento, a presciência, as curas instantâneas, as possessões, as obsessões, as aparições e transfigurações, etc., que formam a quase totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem àquela categoria de fenômenos.
Sabe-se agora que tais efeitos resultam de especiais aptidões e disposições psicológicas; que se hão produzido em todos os tempos e no seio de todos os povos e que foram considerados sobrenaturais pela mesma razão que todos aqueles cuja causa não se percebia. Isto explica por que todas as religiões tiveram seus milagres, que mais não são que fatos naturais, quase sempre, porém, ampliados até ao absurdo pela credulidade e reduzidos agora ao seu justo valor pelos conhecimentos atuais, que permitem se destaque deles a parte devida à lenda.
A possibilidade da maioria dos fatos que o Evangelho cita como operados por Jesus se acha hoje completamente demonstrada pelo Magnetismo e pelo Espiritismo, como fenômenos naturais. Pois que eles se produzem às nossas vistas, quer espontaneamente, quer quando provocados, nada há de anormal em que Jesus possuísse faculdades idênticas às dos nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos, videntes, médiuns, etc. Do momento em que essas mesmas faculdades se encontram, em diferentes graus, numa multidão de indivíduos que nada têm de divino, até em heréticos e idólatras, elas não implicam, de maneira alguma, a existência de uma natureza sobre-humana.
Se o próprio Jesus qualifica de milagres os seus atos, é que nisto, como em muitas outras coisas, lhe cumpria apropriar sua linguagem aos conhecimentos dos seus contemporâneos. Como poderiam estes apreender os matizes de uma palavra que ainda hoje nem todos compreendem? Para o vulgo, eram milagres as coisas extraordinárias que ele fazia e que pareciam sobrenaturais, naquele tempo e mesmo muito tempo depois. Ele não podia dar-lhes outro nome. Fato digno de nota é que se serviu dessa denominação para atestar a missão que recebera de Deus, segundo suas próprias expressões, porém nunca se prevaleceu dos milagres para se apresentar como possuidor do poder divino. n
Importa, pois, se risquem os milagres do rol das provas sobre que se pretende fundar a divindade da pessoa do Cristo. Vejamos agora se as encontramos em suas palavras.
As palavras de Jesus provam a sua divindade?
Dirigindo-se a alguns de seus discípulos que disputavam para saber qual dentre eles era o maior, disse-lhes ele, chamando para junto de si uma criança:
“Quem quer que me receba, recebe aquele que me enviou, porquanto aquele
que for o menor entre todos vós será o maior de todos.” (S.
Lucas, 9:48.)
“Quem quer que receba em meu nome a uma criancinha como esta, a mim me recebe;
e aquele que me recebe não me recebe a mim, mas recebe aquele que
me enviou.” (São
Marcos, 9:37.)
“Jesus lhes disse então: Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque foi
de Deus que saí e foi de sua parte que vim; pois, não vim de mim
mesmo, foi ele que me enviou.” (S.
João, 8:42.)
“Jesus então lhes disse: Ainda estou convosco por um pouco de tempo e vou em
seguida para aquele que me enviou.” (S.
João, 7:33.)
“Aquele que vos ouve a mim me ouve; aquele que vos despreza a mim me despreza;
e aquele que me despreza, despreza aquele que me enviou.” (S.
Lucas, 10:16.)
O dogma da divindade de Jesus se baseou na igualdade absoluta entre a sua pessoa e Deus, pois que ele próprio é Deus. É este um artigo de fé. Ora, estas palavras, que Jesus tantas vezes repetiu: Aquele que me enviou, não só comprovam uma dualidade de pessoas, mas também, como já o dissemos, excluem a igualdade absoluta entre elas, porquanto aquele que é enviado necessariamente está subordinado ao que envia. Com o obedecer, aquele pratica um ato de submissão. Um embaixador? falando do seu soberano, dirá: Meu senhor, aquele que me envia; mas, se quem vem é o soberano em pessoa, falará em seu próprio nome e não dirá: Aquele que me enviou, visto que ele não pode enviar-se a si mesmo. Jesus o disse em termos categóricos: Não vim de mim mesmo foi ele quem me enviou.
Estas palavras: Aquele que me despreza, despreza aquele que me enviou, não implicam absolutamente a igualdade, nem, ainda menos, a identidade. Em todos os tempos, o insulto a um embaixador foi considerado como feito ao próprio soberano. Os apóstolos tinham a palavra de Jesus, como este a de Deus. Quando ele lhes diz: Aquele que vos ouve a mim me ouve, certamente não queria dizer que seus apóstolos e ele fossem uma só e a mesma pessoa, igual em todas as coisas.
A dualidade das pessoas, assim como o estado secundário e de subordinação de Jesus com relação a Deus, ressaltam, ao demais, sem equívoco possível, das seguintes passagens:
“Fostes vós que permanecestes sempre firmes comigo nas minhas tentações. —
Eis por que vos preparo o Reino, como meu Pai mo preparou, a
fim de que comais e bebais à minha mesa no meu reino e que estejais
sentados em tronos, para julgar as doze tribos de Israel.” (S.
Lucas, 22:28 a 30.)
“De mim digo o que vi junto de meu Pai; e vós, vós fazeis o que ouvistes
de vosso pai.” (S.
João, 8:38.)
“Ao mesmo tempo, apareceu uma nuvem que os cobriu e dessa nuvem saiu uma voz
que fez se ouvissem estas palavras: Este é meu filho bem-amado; escutai-o.”
(Transfiguração:
S. Marcos, 9:7.)
“Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os
anjos, assentar-se-á no trono de sua glória; — e, achando-se reunidas
todas as nações, separará umas das outras, como o pastor separa as ovelhas
dos bodes; — colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.
— Então, o Rei dia aos que estiverem à sua direita: Vinde, vós que
fostes abençoados por meu Pai, possuir o reino que vos foi preparado
desde o começo do mundo.” (S.
Mateus, 25:31 a 34.)
“Aquele que me confessar e me reconhecer diante dos homens, eu também o reconhecerei
e confessarei diante de meu Pai que está nos céus; — aquele que me renunciar
diante dos homens, também eu mesmo o renunciarei diante de meu Pai
que está nos céus.” (S.
Mateus, 10:32 e 33.)
“Ora, eu vos declaro que aquele que me confessar e me reconhecer perante os
homens, o filho do homem, também o reconhecerá perante os anjos de
Deus; — mas, se algum me repudiar perante os homens, eu também
o repudiarei perante os anjos de Deus.” (S.
Lucas, 12:8 e 9.)
“Pois, se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, desse também
se envergonhará o Filho do homem quando estiver na sua glória e na
de seu Pai e dos santos anjos.” (S.
Lucas, 9:26.)
Nestas duas últimas passagens parece mesmo que Jesus coloca acima de si os santos anjos componentes do tribunal celeste, perante o qual seria ele o defensor dos bons e o acusador dos maus.
“Mas, pelo que respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda,
não me compete a mim vo-lo conceder; isso será para aqueles
a quem meu Pai o tenha preparado.” (S.
Mateus, 20:23.)
“Ora, estando reunidos os fariseus, Jesus lhes fez esta pergunta: Que vos parece
do Cristo? De quem é ele filho? Eles responderam: De David. — Como é
então, retrucou ele, que David lhe chama em espírito seu senhor, nestes
termos: O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha direita até que
eu reduza teus inimigos a te servirem de escabelo para os pés? —
Ora, se David lhe chama seu senhor, como é ele seu filho?” (S. Mateus,
22:41 a 45.)
“Mas, ensinando no templo, Jesus lhes disse: Como é que os escribas dizem que
o Cristo é filho de David, uma vez que o próprio David diz a seu Senhor:
Senta-te à minha direita, até que eu haja reduzido teus inimigos a te
servirem de escabelo para os pés? — Pois, se o próprio David lhe chama
seu Senhor, como é ele seu filho?” (São
Marcos, 12:35 a 37; S.
Lucas, 20:41 a 44.)
Por essas palavras, Jesus consagra o princípio da diferença hierárquica que existe entre o Pai e o Filho. Ele podia ser filho de David por filiação corporal, como descendente de sua raça e foi por isso que teve o cuidado de acrescentar: Como lhe chama ele em espírito seu Senhor? Se há uma diferença hierárquica entre o pai e o filho, Jesus, como filho de Deus, não pode ser igual a Deus.
Ele confirma esta interpretação e reconhece a sua inferioridade com relação a Deus, em termos que não deixam lugar a dúvidas.
“Ouvistes o que foi dito: “Eu me vou e volto a vós. Se me amásseis, rejubilaríeis,
pois que vou para meu Pai; porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU.”
(S.
João, 14:28.)
“Aproxima-se então um mancebo e lhe diz: Bom Mestre, que bem devo fazer para
alcançar a vida eterna? Jesus lhe respondeu: “Por que me chamas bom?
Não há senão somente Deus que é bom. Se queres entrar na vida,
guarda os mandamentos.” (S.
Mateus, 19:16 e 17; S.
Marcos 10:17 e 18; S.
Lucas, 18:18 e 19.)
Não só Jesus não se deu, em nenhuma circunstância, por igual a Deus, como, neste passo, afirma positivamente o contrário: considera-se inferior a Deus em bondade. Ora, declarar que Deus lhe está acima, pelo poder e pelas qualidades morais, é dizer que ele não é Deus. As passagens que seguem apoiam as que citamos e também são bastante explícitas.
“Não tenho falado por mim mesmo; meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu,
por mandamento seu, o que devo dizer e como devo falar; — e sei
que o seu mandamento é a vida eterna; o que, pois, eu digo é segundo
o que meu Pai me ordenou que o diga.” (S.
João, 12:49 e 50.)
“Jesus lhes respondeu: Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou.
— Aquele que quiser fazer a vontade de Deus reconhecerá se a minha
doutrina é dele, ou se falo por mim mesmo. — Aquele que fala por impulso
próprio procura a sua própria glória, mas o que procura a glória daquele
que o enviou é veraz, não há nele injustiça” (S.
João, 7:16 a 18.)
“Aquele que não me ama não guarda a minha palavra, e a palavra que tendes
ouvido não é minha, mas de meu Pai que me enviou.” (S.
João, 14:24.)
“Não credes que estou em meu Pai e que meu Pai está em mim? O que vos digo
não o digo de mim mesmo; meu Pai que mora em mim, faz ele próprio as
obras que eu faço.” (S.
João, 14:10.)
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. — Pelo que
respeita ao dia e a hora ninguém o sabe, nem os anjos que estão no céu,
nem mesmo o filho, mas somente o Pai.” (S.
Marcos, 13:32; S.
Mateus, 24:35 e 36.)
“Jesus então lhes disse: Quando houverdes elevado ao alto o Filho do homem,
conhecereis o que eu sou, porquanto nada faço de mim mesmo; mas,
digo o que meu Pai me ensinou; e aquele que me enviou está comigo
e não me deixou só, porque faço sempre o que lhe é agradável.”
(S.
João, 8:28 e 29.)
“Desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade
daquele que me enviou.” (S. João,
6:38.)
“Nada posso fazer de mim mesmo. Julgo segundo ouço e o meu juízo é justo,
porque não procuro satisfazer à minha vontade, mas à vontade daquele
que me enviou.” (S.
João, 5:30.)
“Mas, de mim, tenho um testemunho maior que o de João, porquanto as obras que
meu Pai me deu o poder de fazer, as obras, digo, que eu faço
dão testemunho de mim, que foi meu Pai que me enviou.” (S. João,
5:36.)
“Mas, agora procurais dar-me morte, a mim que vos tenho dito a verdade que
aprendi de Deus; é o que Abraão não fez.” (S.
João, 8:40.)
Desde que ele nada diz de si mesmo; que a doutrina que prega não é sua, que ela lhe veio de Deus, que lhe ordenou viesse dá-la a conhecer; que não faz senão o que Deus lhe deu o poder de fazer; que a verdade que ensina ele a aprendeu de Deus, a cuja vontade se acha sujeito, é que ele não é Deus, mas, apenas, seu enviado, seu messias e seu subordinado.
Fora-lhe impossível recusar, de maneira mais positiva, qualquer assimilação sua a Deus, nem determinar o seu papel principal em termos mais precisos. Não há nos trechos acima pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, que só à força de interpretações se possam descobrir. São pensamentos expressos em seu sentido próprio, sem ambiguidade.
Se objetarem que Deus, por não ter querido dar-se a conhecer na pessoa de Jesus, provocou uma ilusão acerca da sua individualidade, poder-se-ia perguntar em que se funda semelhante opinião, quem tem autoridade para lhe sondar o fundo do pensamento e para lhe dar as palavras um sentido contrário ao que elas exprimem. Pois que, em vida de Jesus, ninguém o considerava como sendo Deus; que todos, ao contrário, o consideravam um messias, se ele não quisesse que o conhecessem qual era, bastar-lhe-ia nada dizer. Das suas afirmações espontâneas, deve-se concluir que ele não era Deus, ou que, se o era, voluntariamente e sem utilidade, fez uma afirmação falsa.
É de notar-se que S. João, o Evangelista sobre cuja autoridade mais buscaram apoiar-se os instituidores do dogma da divindade do Cristo, é precisamente o que oferece os mais numerosos e mais positivos argumentos em contrário. É do que pode convencer-se qualquer pessoa, lendo as passagens seguintes, que nada acrescentam, é certo, às provas já citadas, mas as corroboram porque de tais passagens ressalta evidente a dualidade e a desigualdade das duas entidades:
“Por esse motivo, os judeus perseguiam a Jesus e queriam matá-lo, isto é, porque
fizera tais coisas em dia de sábado. — Mas, Jesus lhes disse: “Meu
Pai obra até ao presente e eu também obro.” (João,
5:16 e 17.)
“Porquanto o Pai a ninguém julga; mas deu ao Filho todo o poder de julgar, a fim de que todos honrem ao Filho, como honram ao Pai. Aquele que não honra ao Filho, não honra ao Pai que o enviou.”
“Em verdade, em verdade, digo-vos que aquele que ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não cai na condenação; antes, já passou da morte à vida.”
“Em verdade, em verdade, digo-vos que a hora vem, e ela já veio, em que os
mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a escutarem viverão;
pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter
a vida em si mesmo — e lhe deu o poder de julgar, porque ele
é o Filho do homem.” (João,
5:22 a 27.)
“E o Pai que me enviou há dado, ele próprio, testemunho de mim. Nunca jamais
lhe ouvistes a voz, nem vistes a face. — E a sua palavra não permanecerá
em vós porque não credes no que ele enviou.” (João,
5:37 e 38.)
“Quando eu julgasse, o meu julgamento seria digno de fé, porquanto não estou
só; meu Pai que me enviou está comigo.” (João,
8:16.)
“Havendo Jesus dito estas coisas, elevou os olhos ao céu e disse: “Meu Pai, a hora é vinda; glorifica a teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. — Como lhe deste poder sobre todos os homens, a fim de que ele dê a vida eterna a todos os que lhe deste. — Ora a vida eterna consiste em te conhecer a ti que és O ÚNICO DEUS verdadeiro e a Jesus-Cristo que tu enviaste.
“Eu te tenho glorificado na terra; acabei a obra de que me encarregaste. — E tu, meu Pai, glorifica-me, pois, agora também em ti mesmo dessa glória que tive em ti antes que o mundo fosse.
“Dentro em pouco já não estarei no mundo; mas, quanto a eles, estão ainda no mundo, e eu regresso a ti. Pai santo, conservo em teu nome os que me deste, a fim de que eles sejam como nós.”
“Dei-lhes a tua palavra e o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como eu próprio não sou do mundo.”
“Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade mesma. — Assim como me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo — e me santifico a mim mesmo por eles, a fim de que também eles sejam santificados na verdade.”
“Não peço apenas por eles, mas também pelos que em mim hão de crer pela palavra deles; — a fim de que estejam todos unidos, como tu, meu Pai, estás em mim e eu em ti; que eles, do mesmo modo, sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste.”
“Meu Pai, desejo que, lá onde eu estou, os que tu me deste também estejam comigo, a fim de que contemplem a minha glória, glória que me deste, porque me amaste antes da criação do mundo.”
“Pai justo, o mundo não te há conhecido; eu, porém, te tenho conhecido; e estes
conheceram que tu me enviaste. — Fiz que eles conhecessem o teu
nome, e ainda farei que o conheçam, a fim de que o amor com que me
tens amado esteja neles e eu próprio neles esteja.” (João,
17:1 a 5, 11
a 14, 17
a 26: Prece de Jesus.)
“É por isto que meu Pai me ama, porque deixo a vida para a retomar. — Ninguém
ma arrebata; sou eu que a deixo de mim mesmo; tenho o poder de a deixar
e tenho o poder de a retomar. É o mandamento que recebi do meu Pai.”
(João,
10:17 e 18.)
“Tiraram a pedra e Jesus, erguendo os olhos para o céu, disse estas palavras:
Meu Pai, rendo-te graças por me haveres exalçado. — Eu, de mim,
sabia que tu me exalçarias sempre; mas, digo isto para esta gente que
me cerca, a fim de que creia que foste tu que me enviaste.” (Morte
de Lázaro: São
João, 11:41 e 42.)
“Não mais vos falarei, porquanto o príncipe do mundo vai vir, embora nada
haja em mim que lhe pertença, mas para que o mundo conheça que amo
a meu Pai e que faço o que meu Pai me ordena.” (João,
14:30 e 31.)
“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu, que
tenho guardado os mandamentos de meu Pai, permaneço no seu amor.”
(João,
16:10.)
“Então, soltando grande brado, Jesus disse: Meu Pai, às tuas mãos entrego
o meu ser. E, tendo pronunciado essas palavras, expirou.” (S.
Lucas, 23:46.)
Se Jesus, ao morrer, entrega sua alma às mãos de Deus, é que ele tinha uma alma distinta de Deus, submissa a Deus. Logo, ele não era Deus.
As palavras que se seguem indiciam, da parte de Jesus, certa fraqueza humana, certa apreensão quanto aos sofrimentos e a morte que lhe vão ser infligidos, o que contrasta com a natureza divina que lhe atribuem. Elas, porém, demonstram, ao mesmo tempo, uma submissão de inferior para superior.
“Então, chegou Jesus a um lugar chamado Getsêmani e disse a seus discípulos:
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali orar.” — E, tendo levado consigo
Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a estar
em grande aflição. — Disse-lhes então: Minha alma se acha em
mortal tristeza; ficai aqui e velai comigo. — E, indo para um pouco
mais longe, prosternou-se com o rosto em terra e orou dizendo: Meu
Pai, se for possível, faze de mim se afaste este cálice; entretanto,
não seja como eu quero, mas como tu queiras. — Veio em seguida
ter com os seus discípulos e, achando-os adormecidos, disse a Pedro:
Pois que não pudestes velar uma hora comigo? — Vigiai e orai; a fim
de não cairdes em tentação. O Espírito é pronto mas a carne é fraca.
— Foi-se de novo, para orar segunda vez, dizendo: Meu Pai, se esse
cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade.”
(Jesus no Jardim das Oliveiras: S.
Mateus, 26:36 a 42.)
“Então, disse-lhes: Minha alma está numa tristeza de morte; ficai aqui e velai.
— E, tendo-se afastado um pouco, prosternou-se em terra, rogando que,
se fosse possível, aquela hora se afastasse dele. — Dizia: Abba,
meu Pai, tudo te é possível, transporta para longe de mim este cálice;
mas, que se faça a tua vontade e não a minha.” (São
Marcos, 14:34 a 36.)
“Em chegando àquele lugar, disse-lhes: Orai, a fim de não sucumbirdes à tentação.
— E, tendo-se afastado deles cerca de um arremesso de pedra, ajoelhou-se,
dizendo: Meu Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; entretanto,
não se faça a minha vontade, mas a tua. — Então, apareceu-lhe
um anjo do céu a fortalece-lo. — Havendo entrado em agonia, redobrava
suas preces. — Veio-lhe um suor de gotas de sangue, que corria até ao
chão.” (S.
Lucas, 22:40 a 44.)
“Pela hora nona, soltou Jesus um grande brado, dizendo: “Eli! Eli! Lamma Sabachtani?
que quer dizer: Meu Deus! Meu Deus! por que me abandonastes?”
(S.
Mateus, 27:46.)
“E, pela hora nona, lançou Jesus um grande brado, dizendo: Meu Deus, Meu
Deus! por que me abandonastes?” (S.
Marcos, 15:34.)
As passagens que vamos transcrever poderiam deixar alguma dúvida e dar ensejo a crer-se numa identificação de Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que não poderiam prevalecer contra os termos precisos das que precedem, trazem consigo a devida retificação.
“Perguntaram-lhe: Quem és tu então? Jesus lhes respondeu: Sou o princípio
de todas as coisas, eu que vos falo. — Tenho muitas coisas a dizer-vos;
mas, aquele que me enviou é verdadeiro e eu não digo senão o
que dele aprendi.” (S.
João, 8:25 e 26.)
“O que meu Pai me deu é maior do que todas as coisas e ninguém o pode arrebatar
das mãos de meu Pai. Meu Pai e eu somos um.” (S.
João, 10:29 e 30.)
Quer isto dizer que seu Pai e ele são um pelo pensamento, pois que ele exprime o pensamento de Deus, pois que tem a palavra de Deus.
“Então, os judeus tomaram de pedras para lapidá-lo. — Jesus lhes disse: Muitas
obras boas tenho feito diante de vós, pelo poder de meu Pai. Por
qual delas quereis lapidar-me? — Os judeus lhe responderam: Não é por
nenhuma boa obra que te lapidamos; mas, por causa da tua blasfêmia,
porque, sendo, homem, tu te fazes Deus. — Jesus lhes replicou: Não está
escrito na vossa lei: Tenho dito que sois Deuses? — Ora, se ela
chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus era dirigida e não podendo
a Escritura ser destruída, como dizeis que blasfemo, eu a quem meu Pai
santificou e enviou ao mundo, porque disse que sou filho de Deus? —
Se não faço as obras de meu Pai, não me creiais; se, porém, as faço,
quando não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, a fim de saberdes
e crerdes que meu Pai está em mim e eu nele.” (S.
João, 10:31 a 38.)
Noutro capítulo, dirigindo-se a seus discípulos, diz:
“Nesse dia, reconhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós.”
(S.
João, 14:20.)
Destas palavras, não há concluir-se que Deus e Jesus são uma única entidade, pois, de outro modo, também se teria de concluir, das mesmas palavras, que os apóstolos e Deus eram um.
Palavras de Jesus depois de sua morte.
“Jesus lhe respondeu: Não me toques, porquanto ainda não subi a meu
Pai; vai, porém, ter com meus irmãos e dizei-lhes de minha parte:
Subo a meu Pai e vosso Pai, a MEU DEUS e vosso Deus.” (Aparição
a Maria Madalena: São
João, 20:17.)
“Mas, aproximando-se, Jesus lhes falou assim: Todo o poder me foi dado no
céu e na terra.” (Aparição aos Apóstolos: S. Mateus,
28:18.)
“Ora, sois testemunhas destas coisas. — Vou enviar-vos o dom de meu Pai,
que vos foi prometido.” (Aparição aos Apóstolos: S.
Lucas, 24:48 e 49.)
Tudo, pois, nas palavras de Jesus, quer as que ele disse em vida, quer as de depois de sua morte, acusa uma dualidade de entidades perfeitamente distintas, assim como o profundo sentimento da sua inferioridade e da sua subordinação em face do Ente supremo. Pela sua insistência em afirmá-lo espontaneamente, sem a isso ser constrangido ou provocado por quem quer que fosse, parece ter querido protestar de antemão contra o papel que, segundo a sua previsão, lhe seria atribuído. Se houvesse guardado silêncio sobre a sua personalidade, o campo teria ficado aberto a todas as suposições, como a todos os sistemas. A precisão, porém, da sua linguagem afasta todas as incertezas.
Que autoridade maior se pode pretender, do que a das suas próprias palavras? Quando ele diz categoricamente: eu sou ou não sou isto ou aquilo, quem ousaria arrogar-se o direito de desmenti-lo, embora para colocá-lo mais alto do que ele a si mesmo se coloca? Quem pode racionalmente pretender estar mais esclarecido do que ele sobre a sua própria natureza? Que interpretações podem prevalecer contra afirmações tão formais e multiplicadas como estas:
“Não vim de mim mesmo, mas aquele que me enviou é o único Deus verdadeiro. — Foi de sua parte que vim. — Digo o que vi junto a meu Pai. — Não me cabe a mim vo-lo conceder; isso será para aqueles a quem meu Pai o preparou. — Vou para meu Pai, porque meu Pai é maior do que eu. — Por que me chamas bom? Bom não há senão somente Deus. — Não tenho falado por mim mesmo; meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu, por mandamento seu, o que devo dizer. — A doutrina que prego não é minha, mas daquele — que me enviou. — A palavra que tendes ouvido não é minha, mas de meu Pai que me enviou. — Nada faço de mim mesmo; digo unicamente o que meu Pai me ensinou. — Nada posso fazer de mim mesmo. — Não cuido de fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. — Tenho-vos dito a verdade que aprendi de Deus. — Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou. — Tu que és o único Deus verdadeiro e Jesus-Cristo a quem enviaste. — Meu Pai, nas tuas mãos entrego a minha alma. — Meu Pai, se for possível, faze que de mim se afaste este cálice. — Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.”
Quando se leem tais palavras, fica-se a perguntar como há podido vir, sequer, à mente de alguém a ideia de atribuir-lhes sentido diametralmente oposto ao que elas exprimem tão claramente, de conceber uma identificação completa, de natureza e de poder, entre o Senhor e aquele que se declara seu servidor. Neste grande processo, que dura há quase quinze séculos, quais as peças de convicção? Os Evangelhos — não há outras — os quais, no ponto em litígio, não dão lugar a qualquer equívoco. A documentos autênticos, que não se podem contestar, sem arguir de falsa a veracidade dos evangelistas e do próprio Jesus, documentos que se apoiam em testemunhos oculares, que e que contrapõem? Uma doutrina teórica puramente especulativa, nascida, três séculos mais tarde, de uma polêmica travada sobre a natureza abstrata do Verbo, doutrina essa rigorosamente combatida durante muitos séculos e que só prevaleceu pela pressão de um poder civil absoluto.
Dupla natureza de Jesus.
Poder-se-ia objetar que, em virtude da dupla natureza de Jesus, suas palavras exprimiam seu sentir como homem e não como Deus. Sem, neste momento, examinarmos por que encadeamento de circunstâncias chegaram, muito mais tarde, a hipótese dessa dupla natureza, admitamo-la, por um instante, e vejamos se, em vez de elucidar a questão, ela não a complica ainda mais, ao ponto de torná-la insolúvel.
O que, em Jesus, haveria de humano era o corpo, a parte material. Deste ponto de vista, compreende-se que ele haja podido sofrer e tenha mesmo sofrido como homem. A alma, o Espírito, a mente, numa palavra, a parte espiritual do Ser é o que haveria nele de divino. Se ele sentia e sofria como homem, como Deus é que pensaria e falaria. Falava como homem ou como Deus? Eis uma questão importante, pela autoridade excepcional dos seus ensinamentos. Se falava como homem, suas palavras são passíveis de controvérsia; se falava como Deus, são indiscutíveis e temos de aceitá-las e de com elas conformar-nos, sob pena de deserção e de heresia. O mais ortodoxo será aquele que mais se aproximar delas.
Dir-se-á que, sob o seu envoltório corporal, Jesus não tinha consciência da sua natureza divina? Mas, se fosse assim, ele não teria, sequer, pensado como Deus, sua natureza divina houvera permanecido em estado latente; só a natureza humana teria presidido à sua missão, aos seus atos morais, como aos seus atos materiais. É, pois, impossível abstrair-se da sua natureza divina durante a sua vida, sem se lhe enfraquecer a autoridade.
Mas, se ele falou como Deus, por que esse incessante protesto contra a sua natureza divina que, em tal caso, ele não podia ignorar? Ter-se-ia então enganado, o que seria pouco divino, ou teria cientemente enganado o mundo, o que ainda o seria menos. Parece-nos difícil sair desse dilema.
Se se admitir que falou ora como homem, ora como Deus, a questão se complica, pela impossibilidade de distinguir-se o que vinha do homem e o que procedia de Deus.
Dado que ele tivesse motivos para dissimular sua verdadeira natureza durante a missão que desempenhava, o meio mais simples teria sido não falar dela, ou exprimir-se, como o fez noutras circunstâncias, de modo vago e parabólico, sobre os pontos cujo conhecimento estava reservado ao futuro. Ora, este não é aqui o caso, pois que as palavras acima nenhuma ambiguidade apresentam.
Enfim, se, apesar de todas estas considerações, ainda se pudesse supor que, quando vivo, ele ignorara a sua verdadeira natureza, outro tanto já não se pode admitir se desse, depois da sua ressurreição, visto que, quando aparece a seus discípulos, já não é o homem quem fala, é o Espírito desprendido da matéria, que já havia de ter recobrado a plenitude de suas faculdades espirituais e a consciência do seu estado normal, da sua identificação com a divindade. Entretanto, foi então que disse: Subo para meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus!
A subordinação de Jesus é ainda indicada pela qualidade mesma de mediador, que implica a existência de uma pessoa distinta. É ele quem intercede junto a seu Pai; quem se oferece em sacrifício para remissão dos pecadores. Ora, se ele é o próprio Deus, ou se fosse em tudo igual a este, não precisaria interceder, porquanto ninguém intercede junto a si mesmo.
Opinião dos Apóstolos.
Até aqui, apoiamo-nos exclusivamente nas palavras do Cristo, como único elemento peremptório de convicção, porque, fora daí, somente há opiniões pessoais.
De todas essas opiniões, as de maior valor são, incontestavelmente, as dos apóstolos, uma vez que estes o assistiram em sua missão e uma vez também que, se ele lhes houvesse dado instruções secretas, respeito à sua natureza, alguns traços dessas instruções se descobririam nos escritos deles. Tendo vivido na sua intimidade, melhor do que ninguém haviam eles de conhecê-lo. Vejamos, pois, de que maneira o consideraram.
“Oh! israelitas, escutai as palavras que vos vou dizer: Sabeis que Jesus
de Nazaré foi, um homem que Deus tornou célebre entre vós, pelas
maravilhas, prodígios e milagres que o mesmo Deus fez por seu intermédio
no meio de vós. — Entretanto, vós o crucificastes e lhe destes morte
pelas mãos dos maus, tendo-vos ele sido entregue por ordem expressa
da vontade de Deus e por decreto da sua presciência. — Mas, Deus
o ressuscitou, detendo as dores do inferno, por impossível que ele aí
permanecesse. — Porque David disse em seu nome: Eu tinha o Senhor presente
sempre diante de mim, a fim de que eu não fosse abalado. — É por isso
que o meu coração se rejubilou, que a minha língua cantou cânticos de
alegria e que a minha carne mesma repousara em esperança; — porque não
deixareis minha alma no inferno e não permitireis que o vosso Santo
experimente a corrupção. — Vós me fizestes conhecer o caminho da vida
e me enchereis da alegria que dá a vista do vosso semblante.” (Atos
dos Apóstolos, 2:22 a 28. Prédica de S. Pedro.)
“Depois então que foi elevado pelo poder de Deus e que recebeu o cumprimento
da promessa que o Pai lhe fizera de enviar o Santo Espírito, ele
espalhou esse Espírito Santo que agora vedes e ouvis; — porquanto David
não subiu ao céu. — Ora, ele próprio disse: O Senhor disse a meu
Senhor: senta-te à minha direita — até que eu haja reduzido teus
inimigos a te servirem de escabelo. — Que, pois, toda a Casa de Israel
saiba, com absoluta certeza, que Deus fez Senhor e Cristo a esse
Jesus que vós crucificastes.” (Atos
dos Apóstolos, 2:33 a 36. Prédica de S. Pedro.)
“Moisés disse a nossos pais: o Senhor vosso Deus vos suscitará dentre os vossos irmãos um profeta como eu. Escutai-o em tudo o que ele disser. — Quem não escutar esse profeta será exterminado do meio do povo.
“Foi por vós primeiramente que Deus suscitou seu Filho e vo-lo enviou
para vos abençoar, a fim de que cada um se convertesse da sua ma vida.”
(Atos
dos Apóstolos, 3:22, 23 e 26. Prédica de S. Pedro.)
“Declaramos a todos vós e a todo o povo de Israel que é pelo nome de Nosso
Senhor Jesus-Cristo de Nazaré, a quem crucificastes e que Deus
ressuscitou dentre os mortos; é por ele que este homem está agora
curado, como o vedes, diante de vós.” (Atos
dos Apóstolos, 4:10. Prédica de S. Pedro.)
“Os reis da terra se levantaram e os príncipes se uniram contra o Senhor
e contra o seu Cristo. — Herodes e Pôncio Pilatos com os
Gentios e o povo de Israel verdadeiramente se conluiaram contra o vosso
santo Filho Jesus, a quem consagrastes por vossa unção, para
fazer tudo o que o vosso poder e o vosso conselho haviam ordenado que
fosse feito.” (Atos
dos Apóstolos, 4:26 a 28. Prece dos Apóstolos.)
“Pedro e os outros apóstolos responderam: Cumpre obedecer antes a Deus do que
aos homens. — O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus que vós fizestes
morrer pendurando-o no madeiro. — Foi a ele que Deus elevou pela sua
destra, como sendo o príncipe e o salvador, para dar a Israel a
graça da penitência e a remissão dos pecados.” (Atos
dos Apóstolos, 5:29 a 31. Resposta dos Apóstolos ao sumo-sacerdote.)
“Foi esse Moisés que disse aos filhos de Israel: Deus vos suscitará dentre os vossos irmãos um profeta como eu, escutai-o.
“Mas, o Altíssimo não habita em templos feitos pelas mãos dos homens, segundo
esta palavra do profeta: — O céu é meu trono e a terra meu escabelo.
Que casa me edificareis, diz o Senhor? e qual poderia ser o lugar de
meu repouso?” (Atos
dos Apóstolos, 7:37, 48 e 49. Discurso de Estevão.)
“Mas, estando Estevão cheio do Espírito Santo e elevando os olhos ao céu, viu a glória de Deus e a Jesus que estava de pé à direita de Deus, e disse: Vejo abertos os céus e o Filho do homem que está de pé à direita de Deus.
“Então, lançando grandes brados e tapando os ouvidos, todos juntos se lançaram
sobre ele; e, tendo-o arrastado para fora dos muros da cidade, o lapidaram;
e as testemunhas, tomando-lhe as vestes, as puseram aos pés de um mancebo
chamado Saulo (mais tarde Paulo). — Enquanto o lapidavam, Estevão invocava
a Jesus, dizendo: Senhor Jesus, recebe meu Espírito.” (Atos
dos Apóstolos, 7:55 a 58. Martírio de Estevão.)
Estas citações comprovam claramente o caráter que os apóstolos atribuíam a Jesus. A ideia exclusiva que ressalta desses textos é a da sua subordinação a Deus, da constante supremacia de Deus, sem que coisa alguma aí revele um pensamento de assimilação qualquer, de natureza e de poder. Para eles, Jesus era um homem profeta, escolhido e abençoado por Deus. Não foi, pois, entre os apóstolos que teve origem a crença na divindade de Jesus. S. Paulo, que não conheceu a Jesus, mas que, de ardoroso perseguidor, se tornou o mais zeloso e o mais eloquente discípulo da nova fé e cujos escritos prepararam os primeiros formulários da religião cristã, não é menos explícito a respeito. Há nele o mesmo sentimento de dois seres distintos e da supremacia do Pai sobre o Filho.
“Paulo, servidor de Jesus-Cristo, apóstolo da vocação divina, escolhido e destinado
a anunciar o evangelho de Deus — que ele antes prometera por seus profetas
nas escrituras santas — no tocante a seu filho, que lhe nasceu, segundo
a carne, do sangue e da raça de David; — que foi predestinado a
ser filho de Deus, num soberano poder, segundo o Espírito de santidade,
pela ressurreição dentre os mortos; no tocante, digo, a Jesus-Cristo,
nosso Senhor; — por quem recebemos a graça do apostolado, para fazer
que obedeçam à fé todas as nações pela virtude do seu nome; — no rol
das quais também estais vós, como tendo sido chamados por Jesus-Cristo;
— a vós que estais em Roma, que sois queridos de Deus e chamados a ser
santos; que Deus, nosso Pai, e Jesus-Cristo, nosso Senhor, vos deem
a graça e a paz.” (Aos
Romanos, 1:1 a 7.)
“Estando assim justificados pela fé, tenhamos a paz com Deus por Jesus-Cristo, nosso Senhor.
“Porque, quando ainda estávamos nos langores do pecado, Jesus-Cristo morreu por ímpios como nós, no tempo destinado por Deus.
“Jesus-Cristo não deixou de morrer por nós no tempo destinado por Deus. Assim, estando agora justificados pelo seu sangue, seremos, com mais forte razão, isentados por ele da cólera de Deus.
“E não somente fomos reconciliados, como até nos glorificamos em Deus por Jesus-Cristo, nosso Senhor, por quem obtivemos essa reconciliação.
“Se muitos morreram pelo pecado de um só, a misericórdia e o dom de Deus se
derramaram, com mais forte razão, mais abundantemente sobre muitos pela
graça de um só homem, que é Jesus-Cristo.” (Aos Romanos,
5:1, 6, 9, 11, 15, 17.)
“Se somos filhos, somos também herdeiros, HERDEIROS de Deus e CO-HERDEIROS
de Jesus-Cristo, contanto, porém, que soframos com ele.” (Aos
Romanos, 8:17.)
“Se confessais de boca que Jesus-Cristo é o Senhor e se credes de coração que
Deus o ressuscitou dentre os mortos, sereis salvos.” (Aos
Romanos, 10:9.)
“Em seguida virá a consumação de todas as coisas, quando ele houver entregue
o seu reino a Deus e Pai e houver destruído todo império, toda dominação,
todo poder — porquanto Jesus-Cristo tem de reinar, até que seu Pai haja
posto sob seus pés todos os seus inimigos. — Ora, a morte será o último
inimigo a ser destruído, pois a Escritura diz que Deus tudo lhe pôs
debaixo dos pés e tudo lhe sujeitou, sendo indubitável que daí se deve
excetuar aquele que submeteu todas as coisas. — Quando, pois,
todas as coisas estiverem submetidas ao Filho, então o Filho estará,
ele mesmo, submetido àquele que lhe terá submetido todas as coisas,
a fim de que Deus seja tudo em todos.” (I
aos Coríntios, 15:24 a 28.)
“Mas, vemos que Jesus, que fora tomado, por um pouco de tempo, inferior aos anjos, foi coroado de glória e de honras, devido à morte que ele sofreu; Deus em sua bondade, tendo querido que ele morresse por todos — por ser ele bem digno de Deus, para quem e por quem são todas as coisas, quis que, por querer conduzir à glória muitos filhos, ele consumasse e aperfeiçoasse pelo sofrimento aquele que havia de ser o chefe e o autor da salvação deles.
“Assim, o que santifica e os que são santificados vêm todos de um mesmo princípio; por isso é que ele não se vexa de lhes chamar irmãos — dizendo: Anunciarei o teu nome aos meus irmãos; entoar-te-ei louvores no meio da assembleia do teu povo. — E, algures: porei nele a minha confiança. E, noutro lugar: eis-me aqui com os filhos que Deus me deu.
“Eis por que necessário se tornou que ele fosse em tudo semelhante a seus irmãos,
para ser, diante de Deus, um pontífice compassivo e fiel em seu
ministério, a fim de expiar os pecados do povo. — Pois, é das penas
e dos sofrimentos mesmos, pelos quais foi tentado e experimentado, que
ele tira a virtude e a força de socorrer os que também são tentados.”
(Aos
Hebreus, 2:9 a 13, 17, 18.)
“Portanto, meus santos irmãos, vós que tendes parte na vocação celeste, considerai
a Jesus, que é o apóstolo e o pontífice da religião que professamos;
— que é fiel àquele que o estabeleceu nesse cargo, como Moisés
lhe foi fiel em toda a sua casa; — porquanto ele foi julgado digno
de uma glória tanto maior do que a de Moisés, quanto aquele que edificou
a casa é mais estimável do que a própria casa; visto não haver casa
que não tenha sido construída por alguém. Ora, aquele que é o arquiteto
e o criador de todas as coisas é Deus.” (Aos
Hebreus, 3:1 a 4.)
Predição dos profetas, com relação a Jesus.
Além das afirmações de Jesus e da opinião dos apóstolos, há um testemunho cujo valor os crentes mais ortodoxos não poderiam contestar, pois que o apontam constantemente como artigo de fé: é o do próprio Deus, isto é, o dos profetas falando por inspiração e anunciando a vinda do Messias. Ora, aqui vão as passagens da Bíblia consideradas como predição desse grande acontecimento.
“Eu o vejo, porém não agora; olho-o, porém não de perto; uma estrela proveio
de Jacob e um cetro se elevou de Israel e traspassará os chefes de Moab
e destruirá todos os filhos de Seth.” (Números,
24:17.)
“Eu lhes suscitarei um profeta, como tu, dentre seus irmãos e porei
na sua boca as minhas palavras e ele dirá o que eu lhe houver ordenado.
E dar-se-á que aquele que não escutar as palavras que ele houver
dito em meu nome, a esse pedirei contas.” (Deuteronômio,
18:18 e 19.)
“Acontecerá, pois, quando chegarem os dias de te ires com teus pais, que farei
levantar-se a tua posteridade depois de ti, um de teus filhos, e
estabelecerei o seu reino. Ele me construirá uma casa e eu firmarei
o seu trono para sempre. Ser-lhe-ei pai e ele me será filho e
dele não retirarei a minha misericórdia, como a retirei daquele que
foi antes de ti, e o estabelecerei na minha casa e no meu reino para
sempre e seu trono se afirmará para sempre.” (Paralipomenos,
17:11 a 14.)
“Eis por que o Senhor mesmo vos dará um sinal: uma virgem ficará grávida e
parirá um filho e ele se chamará Emmanuel.” (Isaías,
7:14.)
“Pois o menino nos nasceu, o Filho nos foi dado e o império foi posto sobre
seus ombros e chamar-se-lhe-á, seu nome, o Admirável, o Conselheiro,
o Deus forte, o Poderoso, o Pai da Eternidade, o Príncipe da paz.” (Isaías,
9:5.)
“Aqui está meu servidor, eu o sustentarei; é meu eleito, minha alma pôs nele sua afeição; nele pus o meu Espírito; ele exercerá a justiça entre as nações.
“Ele absolutamente não se retirará, nem se precipitará, até que eu haja estabelecido
a justiça na terra e os seres se submeterão à sua lei.” (Isaías,
42:1 a 4.)
“Ele gozará do trabalho de sua alma e dele se fartará; e meu servo justo
a muitos justificará, pelo conhecimento que terão dele e ele próprio
lhes arrebatará as iniquidades.” (Isaías,
53:11.)
“Rejubila-te ao extremo, filha de Sião; solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém!
Eis que o teu rei a ti virá, justo e salvador humilde e montado num
jumento, sobre o potro de uma jumenta. E eu farei desaparecer os carros
de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém e o arco do combate também
desaparecerá e o rei falará de paz as nações. E sua dominação se estenderá
de um mar a outro mar e do rio aos extremos da terra.” (Zacarias,
9:9 e 10.)
“E ele (o Cristo) se manterá e governará pela força do Eterno e com a magnificência
do nome do Eterno seu Deus. E eles voltarão e agora ele será
glorificado até as extremidades da terra e será ele quem fará a paz.”
(Miqueias,
5:4.)
A distinção entre Deus e seu futuro enviado se acha aí caracterizada do modo mais formal. Deus o designa por seu servidor, conseguintemente por seu Subordinado. Nada há, em suas palavras, que implique a ideia de igualdade de poder, nem de consubstancialidade entre os dois seres. Ter-se-ia Deus enganado e teriam visto com mais exatidão do que ele os homens que vieram três séculos depois de Jesus-Cristo? Tal parece ser a pretensão deles.
O Verbo se fez carne.
“No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. — Ele estava no princípio com Deus. — Todas as coisas foram feitas por ele e nada do que foi feito o foi sem ele. — Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. — E a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam.
“Houve um homem enviado de Deus, que se chamava João. — Ele veio para servir de testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por ele — Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho daquele que era a luz.
“Aquele era a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. — Ele veio à sua casa e os seus não o receberam. — Mas, ele deu a todos que o receberam o poder de se tornarem filhos de Deus, aqueles que creem no seu nome, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo.
“E o Verbo foi feito carne e habitou entre nós e vimos a sua glória, qual a
que o Filho único havia de receber do Pai; e ele, digo, habitou entre
nós, cheio de graça e de verdade.” (João
1:1 a 14.)
Esta passagem dos Evangelhos é a única que, à primeira vista, parece encerrar implicitamente uma ideia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus; é também a que serviu de base, mais tarde, à controvérsia a tal respeito. A questão da divindade de Jesus surgiu gradativamente; nasceu das discussões levantadas a propósito das interpretações que alguns deram às palavras Verbo e Filho. Só no quarto século uma parte da Igreja a adotou, em princípio. Semelhante dogma resultou, pois, de decisão dos homens e não de uma revelação divina.
É de notar-se, antes de tudo, que as palavras acima citadas são de João e não de Jesus e que, ainda quando se admita que não tenham sido alteradas, elas não exprimem, na realidade, mais que uma opinião pessoal, uma indução, em que se depara com o misticismo habitual da sua linguagem; não poderiam, pois, prevalecer contra as reiteradas afirmações do próprio Jesus.
Mesmo, porém, aceitando-as tais quais são, elas não resolvem de modo algum a questão no sentido da divindade, porquanto se aplicariam igualmente a Jesus, criatura de Deus.
Com efeito, o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Tendo recebido diretamente de Deus a palavra com a missão de a revelar aos homens, ele a assimilou. A palavra divina, de que se penetrara, encarnou nele; ele a trouxe consigo ao nascer e assim é que João pode com razão dizer: O Verbo foi feito carne e habitou entre nós. Jesus podia, pois, ter sido encarregado de transmitir a palavra de Deus, sem ser o próprio Deus, como um embaixador transmite as palavras do seu soberano, sem ser o soberano. Segundo o dogma da divindade, é Deus quem fala; na outra hipótese, ele fala pela boca do seu enviado, o que nada tira à autoridade das suas palavras.
Mas, quem autoriza esta suposição, de preferência a outra? A única autoridade competente para decidir a questão é a das próprias palavras de Jesus, quando diz: “Não tenho falado por mim mesmo; aquele que me enviou foi quem me prescreveu, por seu mandamento, o que tenho de dizer. — A doutrina que prego não é minha, mas daquele que me enviou; a palavra que tendes ouvido não é palavra minha, mas de meu Pai que me enviou.” A ninguém fora possível exprimir-se com mais clareza e precisão.
A qualidade de Messias ou enviado, que lhe é atribuída em todo o curso dos Evangelhos, implica uma posição subordinada com relação àquele que ordena; o que obedece não pode ser igual ao que manda. João caracteriza esta posição secundária e, por conseguinte, estabelece a dualidade de entidades, quando diz: E vimos a sua glória, tal como o Filho único devia recebe-la do Pai, visto que aquele que recebe não pode ser o que dá e aquele que dá a gloria não pode ser o igual daquele que a recebe. Se Jesus é Deus, possui a glória por si mesmo e não a espera de ninguém; se Deus é Jesus são um único ser sob dois nomes diferentes, entre eles não poderia existir supremacia, nem subordinação. Ora, não havendo paridade absoluta de posições, segue-se que são dois seres distintos.
A qualificação de Messias divino não exprime que haja mais igualdade entre o mandatário e o mandante do que a de enviado real entre um rei e seu representante.
Jesus era um messias divino pelo duplo motivo de que de Deus é que tinha a sua missão e de que suas perfeições o punham em relação direta com Deus.
O Filho de Deus e o Filho do homem.
O título de Filho de Deus, longe de implicar igualdade, é, muito ao contrário, indício de uma submissão. Ora, ninguém é submetido a si mesmo, mas a alguém.
Para que Jesus fosse, em absoluto, igual a Deus fora preciso que ele existisse, como Deus, de toda a eternidade, isto é, que fosse incriado. Ora, o dogma diz que Deus o gerou desde toda a eternidade; mas quem diz gerou diz criou. Fosse ou não desde toda a eternidade, ele não deixa por isso de ser uma criatura e de estar, como tal, subordinada ao seu Criador. É a ideia que implicitamente se contém no termo Filho.
Nasceu Jesus no tempo? Ou, por outra: houve um tempo, na eternidade passada, em que ele não existia? ou é ele co-eterno com o Pai? Tais as sutilezas sobre que disputaram durante séculos. Em que autoridade se apoia a doutrina da co-eternidade, que passou ao estado de dogma? Na opinião dos homens que a engendraram. Mas, esses homens em que autoridade fundaram semelhante opinião? Não foi na de Jesus, pois que este se declara subordinado; não foi na dos profetas que o anunciam como o enviado e o servo de Deus. Em que documentos desconhecidos, mais autênticos do que os Evangelhos, encontraram eles tal doutrina? Parece que só na consciência e na superioridade de suas próprias luzes.
Deixemos, pois, essas discussões vãs, que a nada conduzem e cuja própria solução, fosse esta possível, não tornaria melhores os homens. Digamos que Jesus é Filho de Deus, como todas as criaturas, que ele chama a Deus Pai, como nós aprendemos a tratá-lo de nosso Pai. É o Filho bem-amado de Deus, porque, tendo alcançado a perfeição, que aproxima de Deus a criatura possui toda a confiança e toda a afeição de Deus. Ele se diz Filho único, não porque seja o único ser que haja chegado à perfeição, mas porque era o único predestinado a desempenhar aquela missão na Terra.
Se pode parecer que a qualificação de Filho de Deus apoia a doutrina da divindade, o mesmo já não se dá com a de Filho do homem, que também Jesus deu a si mesmo, em sua missão, e que constituiu objeto de muitos comentários.
Para lhe compreendermos o verdadeiro sentido, temos que remontar à Bíblia, onde a encontramos dada pelo próprio Deus ao profeta Ezequiel.
“Tal a imagem do Senhor, que me foi apresentada. Ao ver aquelas coisas, caí
de rosto em terra e ouvi uma voz que me falou assim: Filho do homem,
tem-te de pé e eu falarei contigo. — E, tendo-me falado dessa maneira,
o Espírito entrou em mim e me firmou nos pés e ouvi que me falava, dizendo:
Filho do homem, envio-te aos filhos de Israel, a um povo apóstata,
que se retirou de mim. Violaram até hoje, eles e seus pais, a aliança
que eu com eles fizera.” (Ezequiel,
2:1, 2, 3.)
“Filho do homem, eis que eles te prepararam grilhões; acorrentar-te-ão e dali
não sairás.” (Idem,
3:25.)
“O Senhor me dirigiu então a palavra, dizendo: — E tu, Filho do homem, ouve
o que diz o Senhor Deus a terra de Israel: o fim vem; vem esse fim nos
quatro cantos da terra.” (Idem,
7:1 e 2.)
“No décimo dia do décimo mês do nono ano, o Senhor me dirigiu a palavra, dizendo:
— Filho do homem, marca bem este dia em que o rei de Babilônia reuniu
suas tropas diante de Jerusalém.” (Idem,
24:1 e 2.)
“Disse-me ainda o Senhor estas palavras: — Filho do homem, vou ferir-vos com
uma chaga e tirar-vos o que há de mais agradável aos vossos olhos; mas,
não me fareis lamentações fúnebres; não chorareis e lágrimas não vos
correrão pelas faces. — Gemereis em segredo e não vos enlutareis, como
se faz pelos mortos; a vossa coroa se conservará presa à vossa cabeça
e tereis nos pés as vossas sandálias; não cobrireis o vosso rosto e
não comereis as viandas que se dão aos que se acham de luto. — Falei
então pela manhã ao povo e à tarde minha mulher morreu. No dia seguinte,
fiz o que Deus me ordenara.” (Idem,
24:15 a 18.)
“O Senhor ainda me falou e disse: — Filho do homem profetiza com referência
aos pastores de Israel; profetiza e dize aos pastores: Eis o que diz
o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos;
os pastores não apascentam seus rebanhos?” (Idem,
34:1 e 2.)
“Então, eu o ouvi que me falava, dentro da casa; e o homem que me estava próximo
disse: — Filho do homem, está aqui o lugar do meu trono, o lugar onde
porei meus pés e onde ficarei para sempre no meio dos filhos de Israel
e a casa de Israel não profanará mais o meu santo nome no futuro, nem
eles, nem seus reis, com as suas idolatrias com os sepulcros de seus
reis, nem com as nobres descendências.” (Idem,
43:6 e 7.)
“Porque, Deus não ameaça como o homem e não entra em furor como o Filho
do homem.” (Judith, 8:15.)
É evidente que a qualificação de Filho do homem quer aqui dizer: que nasceu do homem, por oposição ao que está fora da Humanidade. A última citação, tirada do livro de Judith, não permite dúvida quanto ao significado da expressão, usada em sentido muito literal. Deus somente assim designa a Ezequiel, certamente para lhe lembrar que, mau grado ao dom de profecia que lhe fora concedido, ele não deixava de pertencer a Humanidade e a fim de que não se considerasse de natureza excepcional.
Jesus dá a si mesmo essa qualificação com persistência notável, pois só em circunstâncias muito raras ele se diz Filho de Deus. Em sua boca, não pode ter ela outra significação, que não lembrar que também ele pertence a Humanidade, identificando-se desse modo aos profetas que o precederam e aos quais se comparou, aludindo à sua morte, quando disse: Jerusalém, que matas os profetas! A insistência com que ele se designa por filho do homem parece um protesto antecipado contra a qualidade que, segundo previa, lhe seria dada mais tarde, a fim de ficar bem determinado que essa qualidade não sairá de seus lábios.
É de notar-se que, durante essa interminável polêmica que apaixonou os homens por longa série de séculos e que ainda continua, que acendeu fogueiras e fez correr rios de sangue, o que se discutia era uma abstração, a natureza de Jesus, da qual se fizera a pedra angular do edifício, embora deste não falassem e hajam olvidado uma coisa, a que o Cristo disse ser toda a lei e os profetas: o amor de Deus e do próximo e a caridade, que ele estabeleceu como condição expressa da salvação. Aferraram-se a questão da afinidade de Jesus com Deus e emudeceram com relação às virtudes que ele recomendou e exemplificou.
O próprio Deus ficou apagado, ante a exaltação da personalidade do Cristo. No símbolo de Niceia, diz-se apenas: Cremos num só Deus, etc. Mas, como é esse Deus? Nenhuma menção ali há dos seus atributos essenciais: a soberana bondade e a soberana justiça. É que estas palavras teriam sido a condenação dos dogmas que consagram a sua parcialidade para com certas criaturas, a sua inexorabilidade, o seu ciúme, a sua cólera, o seu Espírito de vindita, e com que justificaram as crueldades cometidas em seu nome.
Se o símbolo de Niceia, que se tornou o fundamento da fé católica, estava conforme ao espírito do Cristo, por que o anátema com que ele termina? Não está aí uma prova de que ele é obra da paixão dos homens? A que se deve, aliás, a sua adoção? À pressão do imperador Constantino, que dele fez uma questão mais política, do que religiosa. Sem sua ordem, o concílio de Niceia não se houvera realizado; sem a intimidação que ele exerceu, é mais que provável que o arianismo levasse a melhor. Tudo, pois, dependeu da autoridade soberana de um homem, que não pertence à Igreja, que reconheceu, mais tarde, o erro político que cometera e que inutilmente procurou voltar atrás, conciliando os partidos. Unicamente daquela autoridade dependeu não haver arianos em vez de católicos e de não ser hoje o arianismo a ortodoxia e o catolicismo a heresia.
Após dezoito séculos de lutas e disputas vãs, no curso das quais foi posta inteiramente de lado a parte mais essencial do ensino do Cristo, a única que podia garantir a paz para a Humanidade, toda gente se acha cansada dessas discussões estéreis, que só a perturbações conduziram, gerando a incredulidade, e cujo objeto já não satisfaz a razão.
A opinião geral manifesta hoje uma tendência acentuada a voltar as ideias fundamentais da Igreja primitiva e a parte moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a única que pode tornar melhores os homens. Essa é clara, positiva e não pode abrir ensejo a nenhuma controvérsia. Se, desde o princípio, a Igreja houvesse tomado esse caminho, seria agora onipotente em vez de estar em declínio. Houvera congregado a imensa maioria dos homens, em lugar de ter sido esfacelada pelas facções.
Quando marcharem sob essa bandeira, os homens se darão as mãos fraternalmente, em vez de se anatematizarem e amaldiçoarem, por questões que quase nunca compreendem.
Aquela tendência da opinião é sinal de que chegou o momento de ser levada a questão para o verdadeiro terreno.
[1] Para completo desenvolvimento da questão dos milagres, veja-se A Gênese segundo o Espiritismo, caps. XIII e seguintes, onde se acham explicados, por meio das leis naturais, todos os milagres do Evangelho.