Os
milagres no sentido teológico. (1-3.) — O Espiritismo
não faz milagres. (4-14.)
— Faz Deus milagres? (15-17.)
— O sobrenatural e as religiões. (18-19.) |
1. — Na acepção etimológica, a palavra milagre (de mirari, admirar) significa: admirável, coisa extraordinária, surpreendente. 2 A Academia definiu-a deste modo: Um ato do poder divino contrário às leis da Natureza, conhecidas.
3 Na acepção usual, essa palavra perdeu, como tantas outras, a significação primitiva. De geral, que era, se tornou de aplicação restrita a uma ordem particular de fatos. No entender das massas, um milagre implica a ideia de um fato extranatural; no sentido teológico, é uma derrogação das leis da Natureza, por meio da qual Deus manifesta o seu poder. Tal, com efeito, a acepção vulgar, que se tornou o sentido próprio, de modo que só por comparação e por metáfora a palavra se aplica às circunstâncias ordinárias da vida.
4 Um dos caracteres do milagre propriamente dito é o ser inexplicável, por isso mesmo que se realiza com exclusão das leis naturais; é tanto essa a ideia que se lhe associa, que, se um fato milagroso vem a encontrar explicação, se diz que já não constitui milagre, por muito espantoso que seja. 5 O que, para a Igreja, dá valor aos milagres é, precisamente, a origem sobrenatural deles e a impossibilidade de serem explicados; ela se firmou tão bem sobre esse ponto, que o assimilarem-se os milagres aos fenômenos da Natureza constitui para ela uma heresia, um atentado contra a fé, tanto assim que excomungou e até queimou muita gente por não ter querido crer em certos milagres.
6 Outro caráter do milagre é o ser insólito, isolado, excepcional; logo que um fenômeno se reproduz, quer espontânea, quer voluntariamente, é que está submetido a uma lei e, desde então, seja ou não seja conhecida a lei, já não pode haver milagres.
2. — Aos olhos dos ignorantes, a Ciência faz milagres todos os dias. Se um homem, que se ache realmente morto, for chamado à vida por intervenção divina, haverá verdadeiro milagre, por ser esse um fato contrário às leis da Natureza. Mas, se em tal homem houver apenas aparências de morte, se lhe restar uma vitalidade latente e a Ciência, ou uma ação magnética, conseguir reanimá-lo, para as pessoas esclarecidas ter-se-á dado um fenômeno natural, mas, para o vulgo ignorante, o fato passará por miraculoso. 2 Lance um físico, do meio de certas campinas, um papagaio elétrico e faça que o raio caia sobre uma árvore e certamente esse novo Prometeu será tido por armado de diabólico poder; 3 houvesse, porém, Josué detido o movimento do Sol, ou, antes, da Terra e teríamos aí o verdadeiro milagre, porquanto nenhum magnetizador existe dotado de bastante poder para operar semelhante prodígio.
4 Foram fecundos em milagres os séculos de ignorância, porque se considerava sobrenatural tudo aquilo cuja causa não se conhecia. À proporção que a Ciência revelou novas leis, o círculo do maravilhoso se foi restringindo; mas, como a Ciência ainda não explorara todo o vasto campo da Natureza, larga parte dele ficou reservada para o maravilhoso.
3. — Expulso do domínio da materialidade, pela Ciência, o maravilhoso
se encastelou no da espiritualidade, onde encontrou o seu último refúgio.
2
Demonstrando que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, ( † )
força que incessantemente atua em concorrência com a força material,
o Espiritismo faz que voltem ao rol dos efeitos naturais os que dele
haviam saído, porque, como os outros, também tais efeitos se acham sujeitos
a leis. 3
Se for expulso da espiritualidade, o maravilhoso já não terá razão de
ser e só então se poderá dizer que passou o tempo dos milagres. (n.º 18.) n
4. — O Espiritismo, pois, vem, a seu turno, fazer o que cada ciência fez; no seu advento: revelar novas leis e explicar, conseguintemente, os fenômenos compreendidos na alçada dessas leis.
2 Esses fenômenos, é certo, se prendem à existência dos Espíritos e à intervenção deles no mundo material e isso é, dizem, o em que consiste o sobrenatural; mas, então, fora mister se provasse que os Espíritos e suas manifestações são contrárias às leis da Natureza; que aí não há, nem pode haver, a ação de uma dessas leis.
3 O Espírito mais não é do que a alma sobrevivente ao corpo; é o ser principal, pois que não morre, ao passo que o corpo é simples acessório sujeito à destruição. 4 Sua existência, portanto, é tão natural depois, como durante a encarnação; está submetido às leis que regem o princípio espiritual, como o corpo o está às que regem o princípio material; 5 mas, como estes dois princípios têm necessária afinidade, como reagem incessantemente um sobre o outro, como da ação simultânea deles resultam o movimento e a harmonia do conjunto, segue-se que a espiritualidade e a materialidade são duas partes de um mesmo todo, tão natural uma quanto a outra, não sendo, pois, a primeira uma exceção, uma anomalia na ordem das coisas.
5. — Durante a sua encarnação, o Espírito atua sobre a matéria por intermédio do seu corpo fluídico ou perispírito, dando-se o mesmo quando ele não está encarnado. 2 Como Espírito e na medida de suas capacidades, faz o que fazia como homem; apenas, por já não ter o corpo carnal para instrumento, serve-se, quando necessário, dos órgãos materiais de um encarnado, que vem a ser o a que se chama médium. 3 Procede então como um que, não podendo escrever por si mesmo, se vale de um secretário, ou que, não sabendo uma língua, recorre a um intérprete. O secretário e o intérprete são os médiuns de um encarnado, do mesmo modo que o médium é o secretário ou o intérprete de um Espírito.
6. — Já não sendo o mesmo que no estado de encarnação o meio em que atuam os Espíritos e os modos por que atuam, diferentes são os efeitos, que parecem sobrenaturais unicamente porque se produzem com o auxílio de agentes que não são os de que nos servimos; desde, porém, que esses agentes estão na Natureza e as manifestações se dão em virtude de certas leis, nada há de sobrenatural, ou de maravilhoso. 2 Antes de se conhecerem as propriedades da eletricidade, os fenômenos elétricos passavam por prodígios para certa gente; desde que se tornou conhecida a causa, desapareceu o maravilhoso. 3 O mesmo ocorre com os fenômenos espíritas, que não são mais aberrantes das leis naturais do que os fenômenos elétricos, acústicos, luminosos e outros, que serviram de fundamento a uma imensidade de crenças supersticiosas.
7. — Entretanto, dir-se-á, admitis que um Espírito pode levantar uma
mesa e mantê-la no espaço sem ponto de apoio; não está aí uma derrogação
da lei da gravidade? — Sim, da lei conhecida; conhecem-se, porém, todas
as leis? 2
Antes que se houvesse experimentado a força ascensional de alguns gazes,
quem diria que uma pesada máquina, transportando muitos homens, poderia
triunfar da força de atração? Ao vulgo, isso não pareceria maravilhoso,
diabólico? 3
Aquele que se houvera proposto, há um século, a transmitir uma mensagem
a 500 léguas e receber a resposta dentro de alguns minutos, teria passado
por louco; se o fizesse, teriam acreditado estar o diabo às suas ordens,
porquanto, então, só o diabo era capaz de andar tão depressa; hoje,
no entanto, não só se reconhece possível o fato, como ele parece naturalíssimo.
4
Por que, pois, um fluido desconhecido careceria da propriedade de contrabalançar,
em dadas circunstâncias, o efeito da gravidade, como o hidrogênio contrabalança
o peso do balão? É, efetivamente, o que sucede, no caso de que se trata.
(O
Livro dos Médiuns, 2ª Parte, Cap. IV.)
8. — Uma vez que estão no quadro dos da Natureza, os fenômenos espíritas se hão produzido em todos os tempos; mas, precisamente, porque não podiam ser estudados pelos meios materiais de que dispõe a ciência vulgar, permaneceram muito mais tempo do que outros no domínio do sobrenatural, donde o Espiritismo agora os tira.
2 Baseado em aparências inexplicadas, o sobrenatural deixa livre curso à imaginação que, a vagar pelo desconhecido, gera as crenças supersticiosas. Uma explicação racional, fundada nas leis da Natureza, reconduzindo o homem ao terreno da realidade, fixa um ponto de parada aos transviamentos da imaginação e destrói as superstições.
3 Longe de ampliar o domínio do sobrenatural, o Espiritismo o restringe até aos seus limites extremos e lhe arrebata o último refúgio. 4 Se é certo que ele faz crer na possibilidade de alguns fatos, não menos certo é que, por outro lado, impede a crença em diversos outros, porque demonstra, no campo da espiritualidade, a exemplo da Ciência no da materialidade, o que é possível e o que não o é. 5 Todavia, como não alimenta a pretensão de haver dito a última palavra seja sobre o que for, nem mesmo sobre o que é da sua competência, ele não se apresenta como absoluto regulador do possível e deixa de parte os conhecimentos reservados ao futuro.
9. — Os fenômenos espíritas consistem nos diferentes modos de manifestação da alma ou Espírito, quer durante a encarnação, quer no estado de erraticidade. 2 É pelas manifestações que produz que a alma revela sua existência, sua sobrevivência e sua individualidade; 3 julga-se dela pelos seus efeitos; sendo natural a causa, o efeito também o é. 4 São esses efeitos que constituem objeto especial das pesquisas e do estudo do Espiritismo, a fim de chegar-se a um conhecimento tão completo quanto possível, assim da natureza e dos atributos da alma, como das leis que regem o princípio espiritual.
10. — Para os que negam a existência do princípio espiritual independente, que negam, por conseguinte, a da alma individual e sobrevivente, a Natureza toda está na matéria tangível; 2 todos os fenômenos que concernem à espiritualidade são, para esses negadores, sobrenaturais e, portanto, quiméricos; 3 não admitindo a causa, não podem eles admitir os efeitos e, quando estes são patentes, os atribuem à imaginação, à ilusão, à alucinação e se negam a aprofundá-los; 4 daí, a opinião preconcebida em que se acastelam e que os torna inaptos a apreciar judiciosamente o Espiritismo, porque parte do princípio de negação de tudo o que não seja material.
11. — Do fato, porém, de o Espiritismo admitir os efeitos, que são corolário da existência da alma, não se segue que admita todos os efeitos qualificados de maravilhosos e que se proponha a justificá-los e dar-lhes crédito; 2 que se faça campeão de todos os devaneios, de todas as utopias, de todas as excentricidades sistemáticas, de todas as lendas miraculosas; fora preciso conhecê-lo muito pouco, para pensar assim. 3 Seus adversários julgam opor-lhe um argumento irreplicável, quando, depois de haverem feito eruditas pesquisas sobre os convulsionários de Saint-Médard, ( † ) sobre os fanáticos das Cévennes, ( † ) ou sobre os religiosos de Loudun, † chegaram a descobrir fatos patentes de embuste, que ninguém contesta; mas, essas histórias serão, porventura, o Evangelho do Espiritismo? 4 Já terão seus adeptos negado que o charlatanismo haja explorado em proveito próprio alguns fatos; que a imaginação os tenha criado; que o fanatismo os haja exagerado muitíssimo? 5 Ele é tão solidário com as extravagâncias que se cometam em seu nome, como a Ciência o é com os abusos da ignorância e a verdadeira religião com os abusos do fanatismo. 6 Muitos críticos julgam do Espiritismo pelos contos de fadas e pelas lendas populares, ficções daqueles contos. O mesmo seria julgar da História pelos romances históricos ou pelas tragédias.
12. — Os fenômenos espíritas são as mais das vezes espontâneos e se produzem sem nenhuma ideia preconcebida da parte das pessoas com quem eles se dão e que, em regra, são as que neles menos pensam; 2 alguns há que, em certas circunstâncias, podem ser provocados pelos agentes denominados médiuns; 3 no primeiro caso, o médium é inconsciente do que se produz por seu intermédio; no segundo, age com conhecimento de causa, donde a classificação de médiuns conscientes e médiuns inconscientes. 4 Estes últimos são os mais numerosos, e se encontram com frequência entre os mais obstinados incrédulos que, assim, praticam o Espiritismo sem o saberem, nem quererem. 5 Por isso mesmo, os fenômenos espontâneos revestem capital importância, visto não se poder suspeitar da boa-fé dos que os obtêm. 6 Dá-se aqui o que se dá com o sonambulismo que, em certos indivíduos, é natural e involuntário, enquanto que noutros é provocado pela ação magnética. n
7 Resultem, porém, ou não esses fenômenos de um ato da vontade, a causa primária é exatamente a mesma e não se afasta uma linha das leis naturais. 8 Os médiuns, portanto, nada absolutamente produzem de sobrenatural; por conseguinte, nenhum milagre fazem; 9 as próprias curas instantâneas não são mais milagrosas do que os outros efeitos, dado que resultam da ação de um agente fluídico, que desempenha o papel de agente terapêutico, cujas propriedades não deixam de ser naturais por terem sido ignoradas até agora. 10 É, pois, totalmente impróprio o epíteto de taumaturgos que a crítica ignorante dos princípios do Espiritismo há dado a certos médiuns. 11 A qualificação de milagres emprestada, por comparação, a esta espécie de fenômenos, somente pode induzir em erro sobre o verdadeiro caráter deles.
13. — A intervenção de inteligências ocultas nos fenômenos espíritas não os torna mais milagrosos do que todos os outros fenômenos devidos a agentes invisíveis, porque esses seres ocultos que povoam os espaços são uma das forças da Natureza, força cuja ação é incessante sobre o mundo material, tanto quanto sobre o mundo moral.
2 Esclarecendo-nos acerca dessa força, o Espiritismo faculta a elucidação de uma imensidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio e que, por isso, passaram por prodígios nos tempos idos; 3 do mesmo modo que o magnetismo, ele revela uma lei, senão desconhecida, pelo menos mal compreendida; ou, melhor dizendo, conheciam-se os efeitos, porque eles em todos os tempos se produziram, porém não se conhecia a lei e foi o desconhecimento desta que gerou a superstição. 4 Conhecida essa lei, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. 5 Eis por que tanto operam um milagre os espíritas quando fazem que uma mesa se mova sozinha, ou que os mortos escrevam, como um milagre opera o médico, quando faz que um moribundo reviva, ou o físico, quando faz que o raio caia. 6 Aquele que pretendesse, com o auxílio desta ciência, fazer milagres seria ou um ignorante do assunto, ou um enganador de tolos.
14. — Pois que o Espiritismo repudia toda pretensão às coisas miraculosas, haverá, fora dele, milagres, na acepção usual desta palavra?
2 Digamos, primeiramente, que, dos fatos reputados milagrosos, ocorridos antes do advento do Espiritismo e que ainda no presente ocorrem, a maior parte, senão todos, encontram explicação nas novas leis que ele veio revelar; esses fatos, portanto, se compreendem, embora sob outro nome, na ordem dos fenômenos espíritas e, como tais, nada têm de sobrenatural. 3 Fique, porém, bem entendido que nos referimos aos fatos autênticos e não aos que, com a denominação de milagres, são produto de uma indigna trampolinice, com o fito de explorar a credulidade; tampouco nos referimos a certos fatos lendários que podem ter tido, originariamente, um fundo de verdade, mas que a superstição ampliou até ao absurdo. Sobre esses fatos é que o Espiritismo projeta luz, fornecendo meios de apartar do erro a verdade.
15. — Quanto aos milagres propriamente ditos, Deus, visto que nada lhe é impossível, pode faze-los. Mas, fá-los? Ou, por outras palavras; derroga as leis que dele próprio emanaram?
2 Não cabe ao homem prejulgar os atos da Divindade, nem os subordinar à fraqueza do seu entendimento. Contudo, em face das coisas divinas, temos, para critério do nosso juízo, os atributos mesmos de Deus. 3 Ao poder soberano reúne ele a soberana sabedoria, donde se deve concluir que não faz coisa alguma inútil.
4 Por que, então, faria milagres? Para atestar o seu poder, dizem; mas, o poder de Deus não se manifesta de maneira muito mais imponente pelo grandioso conjunto das obras da Criação, pela sábia previdência que essa Criação revela, assim nas partes mais gigantescas, como nas mais mínimas, e pela harmonia das leis que regem o mecanismo do Universo, do que por algumas pequeninas e pueris derrogações que todos os prestímanos sabem imitar? 5 Que se diria de um sábio mecânico que, para provar a sua habilidade, desmantelasse um relógio construído pelas suas mãos, obra-prima de ciência, a fim de mostrar que pode desmanchar o que fizera? Seu saber, ao contrário, não ressalta muito mais da regularidade e da precisão do movimento da sua obra?
6 Não é, pois, da alçada do Espiritismo a questão dos milagres; 7 mas, ponderando que Deus não faz coisas inúteis, ele emite a seguinte opinião: Não sendo necessário os milagres para a glorificação de Deus, nada no Universo se produz fora do âmbito das leis gerais. 8 Deus não faz milagres, porque, sendo, como são, perfeitas as suas leis, não lhe é necessário derrogá-las. 9 Se há fatos que não compreendemos, é que ainda nos faltam os conhecimentos necessários.
16. — Admitido que Deus houvesse alguma vez, por motivos que nos escapam, derrogado acidentalmente leis por ele estabelecidas, tais leis já não seriam imutáveis; 2 mesmo, porém, que semelhante derrogação seja possível, ter-se-á, pelo menos, de reconhecer que só ele, Deus, dispõe desse poder; sem se negar ao Espírito do mal a onipotência, não se pode admitir lhe seja dado desfazer a obra divina, operando, de seu lado, prodígios capazes de seduzir até os eleitos, pois que isso implicaria a ideia de um poder igual ao de Deus; é, no entanto, o que ensinam. 3 Se Satanás tem o poder de sustar o curso das leis naturais, que são obra de Deus, sem a permissão deste, mais poderoso é ele do que Deus; logo, Deus não possui a onipotência 4 e se, como pretendem, delega poderes a Satanás, para mais facilmente induzir os homens ao mal, falta-lhe a soberana bondade. 5 Em ambos os casos, há negação de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus.
6 Daí vem a Igreja distinguir os bons milagres, que procedem de Deus, dos maus milagres, que procedem de Satanás; mas, como diferençá-los? 7 Seja satânico ou divino um milagre, haverá sempre uma derrogação de leis emanadas unicamente de Deus; 8 se um indivíduo é curado por suposto milagre, quer seja Deus que o opere, quer Satanás, não deixará por isso de ter havido a cura. 9 Forçoso se torna fazer pobríssima ideia da inteligência humana para se pretender que semelhantes doutrinas possam ser aceitas nos dias de hoje.
10 Reconhecida a possibilidade de alguns fatos considerados miraculosos, há-se de concluir que, seja qual for a origem que se lhes atribua, eles são efeitos naturais de que se podem utilizar Espíritos desencarnados ou encarnados, como de tudo, como da própria inteligência e dos conhecimentos científicos de que disponham, para o bem ou para o mal, conforme neles preponderem a bondade ou a perversidade. 11 Valendo-se do saber que haja adquirido, pode um ser perverso fazer coisas que passem por prodígios aos olhos dos ignorantes; mas, quando tais efeitos dão em resultado um bem qualquer, fora ilógico atribuir-se-lhes uma origem diabólica.
17. — Mas, a religião, dizem, se apoia em fatos que nem explicados, nem explicáveis são. 2 Inexplicados, talvez; inexplicáveis, é questão muito outra. 3 Que sabe o homem das descobertas e dos conhecimentos que o futuro lhe reserva? Sem falar do milagre da Criação, o maior de todos sem contestação possível, já pertencente ao domínio da lei universal, não vemos reproduzirem-se hoje, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, os êxtases, as visões, as aparições, as percepções a distância, as curas instantâneas, as suspensões, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos esses conhecidos desde tempos imemoráveis, tidos outrora por maravilhosos e que presentemente se demonstra pertencerem à ordem das coisas naturais, de acordo com a lei constitutiva dos seres? 4 Os livros sagrados estão cheios de fatos desse gênero, qualificados de sobrenaturais; como, porém outros análogos e ainda mais maravilhosos se encontram em todas as religiões pagãs da Antiguidade, se a veracidade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não se saberia dizer qual a que devesse prevalecer.
18. — Pretender-se que o sobrenatural é o fundamento de toda religião, que ele é o fecho de abóbada do edifício cristão, é sustentar perigosa tese; 2 assentar exclusivamente as verdades do Cristianismo sobre a base do maravilhoso é dar-lhe fraco alicerce, cujas pedras facilmente se soltam. 3 Essa tese, de que se constituíram defensores eminentes teólogos, leva direito à conclusão de que, em breve tempo, já não haverá religião possível, nem mesmo a cristã, desde que se chegue a demonstrar que é natural o que se considerava sobrenatural, visto que, por mais que se acumulem argumentos, não se logrará sustentar a crença de que um fato é miraculoso, depois de se haver provado que não o é; 4 ora, a prova existe de que um fato não constitui exceção às leis naturais, logo que pode ser explicado por essas mesmas leis e que, podendo reproduzir-se por intermédio de um indivíduo qualquer, deixa de ser privilégio dos santos. 5 O de que necessitam as religiões não é do sobrenatural, mas do princípio espiritual, que erradamente costumam confundir com o maravilhoso e sem o qual não há religião possível.
6 O Espiritismo considera de um ponto mais elevado a religião cristã; dá-lhe base mais sólida do que a dos milagres: as imutáveis leis de Deus, a que obedecem assim o princípio espiritual, como o princípio material; essa base desafia o tempo e a Ciência, pois que o tempo e a Ciência virão sancioná-la.
7 Deus não se torna menos digno da nossa admiração, do nosso reconhecimento, do nosso respeito, por não haver derrogado suas leis, grandiosas, sobretudo, pela imutabilidade que as caracteriza. 8 Não se faz mister o sobrenatural, para que se preste a Deus o culto que lhe é devido; a Natureza não é de si mesma tão imponente, que dispense se lhe acrescente seja o que for para provar a suprema potestade? 9 Tanto menos incrédulos topará a religião, quanto mais a razão a sancionar em todos os pontos. 10 O Cristianismo nada tem que perder com semelhante sanção; ao contrário, só tem que ganhar. 11 Se alguma coisa o há prejudicado na opinião de muitas pessoas, foi precisamente o abuso do sobrenatural e do maravilhoso.
19. — Se tomarmos a palavra milagre em sua acepção etimológica, no sentido de coisa admirável, teremos milagres incessantemente sob as vistas; aspiramo-los no ar e calcamo-los aos pés, porque tudo então é milagre em a Natureza.
2 Querem dar ao povo, aos ignorantes, aos pobres de espírito uma ideia do poder de Deus? Mostrem-no na sabedoria infinita que preside a tudo, no admirável organismo de tudo o que vive, na frutificação das plantas, na apropriação de todas as partes de cada ser às suas necessidades, de acordo com o meio onde ele é posto a viver; 3 mostrem-lhes a ação de Deus na vergôntea de um arbusto, na flor que desabrocha, no Sol que tudo vivifica; 4 mostrem-lhes a sua bondade na solicitude que dispensa a todas as criaturas, por mais ínfimas que sejam, a sua previdência, na razão de ser de todas as coisas, entre as quais nenhuma inútil se conta, no bem que sempre decorre de um mal aparente e temporário. 5 Façam-lhes compreender, principalmente, que o mal real é obra do homem e não de Deus; 6 não procurem espavori-los com o quadro das penas eternas, em que acabam não mais crendo e que os levam a duvidar da bondade de Deus; antes, deem-lhes coragem, mediante a certeza de poderem um dia redimir-se e reparar o mal que hajam praticado; 7 apontem-lhes as descobertas da Ciência como revelações das leis divinas e não como obras de Satanás; 8 ensinem-lhes, finalmente, a ler no livro da Natureza, constantemente aberto diante deles; nesse livro inesgotável, em cada uma de cujas páginas se acham inscritas a sabedoria e a bondade do Criador; 9 eles, então, compreenderão que um Ser tão grande, que com tudo se ocupa, que por tudo vela, que tudo prevê, forçosamente dispõe do poder supremo. 10 Vê-lo-á o lavrador, ao sulcar o seu campo; e o desditoso, nas suas aflições, o bendirá dizendo: Se sou infeliz, é por culpa minha. 11 Então, os homens serão verdadeiramente religiosos, racionalmente religiosos, sobretudo, muito mais do que acreditando em pedras que suam sangue, ou em estátuas que piscam os olhos e derramam lágrimas.
[1]
[No original (Cap.
I, nº 18.)]
[2] O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, Cap. V. — Revista Espírita, dezembro de 1865: Como vem o Espiritismo vem sem ser procurado — Jovem camponesa, médium inconsciente; Idem, agosto de 1865: Padre Dégenettes, médium.