1. — Pode o Espiritismo ser considerado uma revelação? Neste caso, qual o seu caráter? 2 Em que se funda a sua autenticidade? 3 A quem e de que maneira foi ela feita? 4 É a Doutrina Espírita uma revelação, no sentido teológico da palavra, ou por outra, é, no seu todo, o produto do ensino oculto vindo do Alto? 5 É absoluta ou suscetível de modificações? 6 Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria por efeito impedi-los de fazer uso das suas faculdades, pois que lhes pouparia o trabalho da investigação? 7 Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis e superiores à Humanidade? 8 Qual a utilidade da moral que pregam, se essa moral não é diversa da do Cristo, já conhecida? Quais as verdades novas que eles nos trazem? 9 Precisará o homem de uma revelação? E não poderá achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto é mister para se conduzir na vida? Tais as questões sobre que importa nos fixemos.
2. — Definamos primeiro o sentido da palavra revelação. 2 Revelar, do latim revelare, cuja raiz, velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu e, figuradamente, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. 3 Em sua acepção vulgar mais genérica, essa palavra se emprega a respeito de qualquer coisa ignota que é divulgada, de qualquer ideia nova que nos põe ao corrente do que não sabíamos.
4 Deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se que há para a Humanidade uma revelação incessante; a astronomia revelou o mundo astral, que não conhecíamos; a geologia revelou a formação da Terra; a química, a lei das afinidades; a fisiologia, as funções do organismo, etc.; 5 Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier foram reveladores.
3. — A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. 2 Revelar um segredo é tornar conhecido um fato; se é falso, já não é um fato e, por consequência, não existe revelação. 3 Toda revelação desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a Deus, não podendo Deus mentir, nem se enganar, ela não pode emanar dele: deve ser considerada produto de uma concepção humana.
4. — Qual o papel do professor diante dos seus discípulos, senão o de um revelador? 2 O professor lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam tempo, nem possibilidade de descobrir por si mesmos, 3 porque a Ciência é obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trazem, cada qual, o seu contingente de observações aproveitáveis àqueles que vêm depois. 4 O ensino é, portanto, na realidade, a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feitas por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que, se assim não fora, as teriam ignorado sempre.
5. — Mas, o professor não ensina senão o que aprendeu: é um revelador de segunda ordem; 2 o homem de gênio ensina o que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; traz a luz que pouco a pouco se vulgariza. 3 Que seria da Humanidade sem a revelação dos homens de gênio, que aparecem de tempos a tempos?
4 Mas, quem são esses homens de gênio? E, por que são homens de gênio? Donde vieram? Que é feito deles? 5 Notemos que na sua maioria denotam, ao nascer, faculdades transcendentes e alguns conhecimentos inatos, que com pouco trabalho desenvolvem. 6 Pertencem realmente à Humanidade, pois nascem, vivem, e morrem como nós. Onde, porém, adquiriram esses conhecimentos que não puderam aprender durante a vida? 7 Dir-se-á, com os materialistas, que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Neste caso, não teriam mais mérito que um legume maior e mais saboroso do que outro.
8 Dir-se-á, como certos espiritualistas, que Deus lhes deu uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição igualmente ilógica, pois que tacharia Deus de parcial. 9 A única solução racional do problema está na preexistência da alma e na pluralidade das vidas. 10 O homem de gênio é um Espírito que tem vivido mais tempo; que, por conseguinte, adquiriu e progrediu mais do que aqueles que estão menos adiantados. 11 Encarnando, traz o que sabe e, como sabe muito mais do que os outros e não precisa aprender, é chamado homem de gênio. 12 Mas seu saber é fruto de um trabalho anterior e não resultado de um privilégio. 13 Antes de renascer, era ele, pois, Espírito adiantado: reencarna para fazer que os outros aproveitem do que já sabe, ou para adquirir mais do que possui.
14 Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelos esforços da sua inteligência; mas, entregues às próprias forças, só muito lentamente progrediriam, se não fossem auxiliados por outros mais adiantados, como o estudante o é pelos professores. 15 Todos os povos tiveram homens de gênio, surgidos em diversas épocas, para dar-lhes impulso e tirá-los da inércia.
6. — Desde que se admite a solicitude de Deus para com as suas criaturas, por que não se há de admitir que Espíritos capazes, por sua energia e superioridade de conhecimento, de fazerem que a Humanidade avance, encarnem pela vontade de Deus, com o fim de ativarem o progresso em determinada sentido? Por que não admitir que eles recebam missões, como um embaixador as recebe do seu soberano? Tal o papel dos grandes gênios. 2 Que vêm eles fazer, senão ensinar aos homens verdades que estes ignoram e ainda ignorariam durante largos períodos, a fim de lhes dar um ponto de apoio mediante o qual possam elevar-se mais rapidamente? 3 Esses gênios, que aparecem através dos séculos como estrelas brilhantes, deixando longo traço luminoso sobre a Humanidade, são missionários ou, se o quiserem, messias. 4 O que de novo ensinam aos homens, quer na ordem física, quer na ordem filosófica, são revelações. 5 Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão suscitá-los para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos cujas ideias atravessam os séculos.
7. — No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz mais particularmente das coisas espirituais que o homem não pode descobrir por meio da inteligência, nem com o auxílio dos sentidos e cujo conhecimento lhe dão Deus ou seus mensageiros, quer por meio da palavra direta, quer pela inspiração. 2 Neste caso, a revelação é sempre feita a homens predispostos, designados sob o nome de profetas ou messias, isto é, enviados ou missionários, incumbidos de transmiti-la aos homens. 3 Considerada debaixo deste ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame, nem discussão.
8. — Todas as religiões tiveram seus reveladores e estes, embora longe estivessem de conhecer toda a verdade, tinham uma razão de ser providencial, porque eram apropriados ao tempo e ao meio em que viviam, ao caráter particular dos povos a quem falavam e aos quais eram relativamente superiores. 2 Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram de agitar os espíritos e, por isso mesmo, de semear os germes do progresso, que mais tarde haviam de desenvolver-se, ou se desenvolverão à luz brilhante do Cristianismo. 3 É, pois, injusto se lhes lance anátema em nome da ortodoxia, porque dia virá em que todas essas crenças tão diversas na forma, mas que repousam realmente sobre um mesmo princípio fundamental — Deus e a imortalidade da alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, logo que a razão triunfe dos preconceitos.
4 Infelizmente, as religiões hão sido sempre instrumentos de dominação; 5 o papel de profeta há tentado as ambições secundárias e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias, que, valendo-se do prestígio deste nome, exploram a credulidade em proveito do seu orgulho, da sua ganância, ou da sua indolência, achando mais cômodo viver à custa dos iludidos. 6 A religião cristã não pôde evitar esses parasitas. A tal propósito, chamamos particularmente a atenção para o capítulo XXI de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Haverá falsos Cristos e falsos profetas”.
9. — Haverá revelações diretas de Deus aos homens? Essa é uma questão que não ousaríamos resolver, nem afirmativamente, nem negativamente, de maneira absoluta. 2 O fato não é radicalmente impossível, porém, nada nos dá dele prova certa. 3 O que não padece dúvida é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição se imbuem do seu pensamento e podem transmiti-lo. 4 Quanto aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica a que pertencem e o grau a que chegaram de saber, esses podem tirar dos seus próprios conhecimentos as instruções que ministram, ou recebe-las de Espíritos mais elevados, mesmo dos mensageiros diretos de Deus, os quais, falando em nome de Deus, têm sido às vezes tomados pelo próprio Deus.
5 As comunicações deste gênero nada têm de estranho para quem conhece os fenômenos espíritas e a maneira pela qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os desencarnados. 6 As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: pela simples inspiração, pela audição da palavra, pela visibilidade dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, quer em sonho, quer em estado de vigília do que há muitos exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os Povos. 7 É, pois, rigorosamente exato dizer-se que quase todos os reveladores são médiuns inspirados, audientes ou videntes; daí, entretanto, não se deve concluir que todos os médiuns sejam reveladores, nem, ainda menos, intermediários diretos da divindade ou dos seus mensageiros.
10. — Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de
transmiti-la; 2
mas, sabe-se hoje que nem todos os Espíritos são perfeitos e que existem
muitos que se apresentam sob falsas aparências, 3
o que levou São João a dizer: “Não acrediteis em todos os Espíritos;
vede antes se os Espíritos são de Deus.” (I João,
capítulo IV, v. 1.)
4 Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras como as há apócrifas e mentirosas. 5 O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. 6 Toda revelação eivada de erros ou sujeita a modificações não pode emanar de Deus. 7 É assim que a lei do Decálogo tem todos os caracteres de sua origem, enquanto que as outras leis mosaicas, fundamentalmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. 8 Com o abrandarem-se os costumes do povo, essas leis por si mesmas caíram em desuso, ao passo que o Decálogo ficou sempre de pé, como farol da Humanidade. 9 O Cristo fez dele a base do seu edifício, abolindo as outras leis. 10 Se estas fossem obra de Deus, seriam conservadas intactas. 11 O Cristo e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram a face ao mundo e nisso está a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana careceria de tal poder.
11. — Importante revelação se opera na época atual e mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. 2 Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento; mas ficara até aos nossos dias, de certo modo, como letra morta, isto é, sem proveito para a Humanidade. 3 A ignorância das leis que regem essas relações o abafara sob a superstição; o homem era incapaz de tirar daí qualquer dedução salutar; 4 estava reservado à nossa época desembaraçá-lo dos acessórios ridículos, compreender-lhe o alcance e fazer surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro.
12. — O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra.
13. — Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. 2 Participa da primeira, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje que estão aptos a compreende-las. 3 Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; 4 por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, 5 por não renunciarem ao raciocínio e ao livre arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; 6 enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; 7 porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. 8 Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.
14. — Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. 2 Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências e busca as aplicações úteis. 3 Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. 4 Não foram os fatos que vieram a posteriori confirmar a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. 5 É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. 6 As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas.
15. — Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular, de que seguramente ninguém houvera suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram mortos. 2 Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos.” Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que os observássemos. 3 Tendo-se visto Espíritos incertos, quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações ordinárias, deduziu-se a regra. 4 A multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía uma das fases da vida espírita; ela tem permitido estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. 5 Foi assim que a teoria nasceu da observação. O mesmo se deu com relação a todos os outros princípios da Doutrina.
16. — Assim como a Ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual; 2 ora, como este último princípio é uma das forças da Natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um não pode estar completo sem o conhecimento do outro. 3 O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente; 4 a Ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, faltariam apoio e comprovação. 5 O estudo das leis da matéria tinha que preceder o da espiritualidade, porque a matéria é que primeiro fere os sentidos. 6 Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria abortado, como tudo quanto surge antes do tempo.
17. — Todas as ciências se encadeiam e sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras, à proporção que acham ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores. 2 A Astronomia, uma das primeiras cultivadas, conservou os erros da infância, até ao momento em que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a Química, nada podendo sem a Física, teve de acompanhá-la de perto, para depois marcharem ambas de acordo, amparando-se uma à outra. A Anatomia, a Fisiologia, a Zoologia, a Botânica, a Mineralogia, só se tornaram ciências sérias com o auxílio das luzes que lhes trouxeram a Física e a Química. À Geologia nascida ontem, sem a Astronomia, a Física, a Química e todas as outras, teriam faltado elementos de vitalidade; ela só podia vir depois daquelas.
18. — A Ciência moderna abandonou os quatro elementos primitivos dos antigos e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; 2 mas, a matéria, por si só, é inerte; carecendo de vida, de pensamento, de sentimento, precisa estar unida ao princípio espiritual. 3 O Espiritismo não descobriu, nem inventou este princípio; mas, foi o primeiro a demonstrar-lhe, por provas inconcussas, a existência; estudou-o, analisou-o e tornou-lhe evidente a ação. 4 Ao elemento material, juntou ele o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, esses os dois princípios, as duas forças vivas da Natureza. 5 Pela união indissolúvel deles, facilmente se explica uma multidão de fatos até então inexplicáveis. n
6 O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do Universo, toca forçosamente na maior parte das ciências; só podia, portanto, vir depois da elaboração delas; nasceu pela força mesma das coisas, pela impossibilidade de tudo se explicar com o auxílio apenas das leis da matéria.
19. — Acusam o Espiritismo de parentesco com a magia e a feitiçaria; porém, esquecem que a Astronomia tem por irmã mais velha a astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós; que a química é filha da alquimia, com a qual nenhum homem sensato ousaria hoje ocupar-se. 2 Ninguém nega, entretanto, que na astrologia e na alquimia estivesse o gérmen das verdades de que saíram as ciências atuais. 3 Apesar das suas ridículas fórmulas, a alquimia encaminhou a descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades; a astrologia se apoiava na posição e no movimento dos astros, que ela estudara; mas, na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do Universo, os astros eram, para o vulgo, seres misteriosos, aos quais a superstição atribuía uma influência moral e um sentido revelador. 4 Quando Galileu, Newton e Kepler tornaram conhecidas essas leis, quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas criaturas acharam indiscreto, os planetas apareceram como simples mundos semelhantes ao nosso e todo o castelo do maravilhoso desmoronou.
5 O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à magia e à feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação dos Espíritos, como a Astrologia no movimento dos astros; 6 mas, ignorantes das leis que regem o mundo espiritual, misturavam, com essas relações, práticas e crenças ridículas, com as quais o moderno Espiritismo, fruto da experiência e da observação, há feito justiça. 7 Certamente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior do que a que existe entre a Astronomia e a Astrologia, a Química e a Alquimia; querer confundi-las, é provar não saber delas nem a primeira palavra.
20. — O simples fato de poder o homem comunicar-se com os seres do mundo espiritual traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância, quanto a ele hão de voltar todos os homens, sem exceção. 2 O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar, generalizando-se, profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que tão grande influência exerceu sobre as relações sociais. 3 É uma revolução completa a operar-se nas ideias, revolução tanto maior, tanto mais poderosa, quanto não se circunscreve a um povo, nem a uma casta, visto que atinge simultaneamente, pelo coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.
4 Razão há, pois, para que o Espiritismo seja considerado a terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas revelações diferem e qual o laço que as liga entre si.
21. — MOISÉS, como profeta, revelou aos homens a existência de um Deus único, Soberano Senhor e Orientador de todas as coisas; promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da verdadeira fé. Como homem, foi o legislador do povo pelo qual essa primitiva fé, purificando-se, havia de espalhar-se por sobre a Terra.
22. — O CRISTO, tomando da antiga lei o que é eterno e divino e rejeitando
o que era transitório, puramente disciplinar e de concepção humana,
acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não falara,
assim como a das penas e recompensas que aguardam o homem, depois da
morte. (Vede: Revista Espírita, março de 1861: A
lei de Moisés e a lei do Cristo; e setembro de 1861: A
pena de Talião.)
23. — A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera ele a Divindade. 2 Esta já não é o Deus terrível, ciumento, vingativo, de Moisés; 3 o Deus cruel e implacável, que rega a terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos, e que castiga aqueles que poupam as vítimas; 4 já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro pela falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere os filhos pelas faltas dos pais; 5 mas, um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio de mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um segundo as suas obras; 6 já não é o Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa contra o Deus dos outros povos; mas, o Pai comum do gênero humano, que estende a sua proteção por sobre todos os seus filhos e os chama todos a si; 7 já não é o Deus que recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas, sim, um Deus que diz aos homens: “A vossa verdadeira pátria não é neste mundo, mas no reino celestial, lá onde os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados…” 8 Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena se retribua olho por olho, dente por dente; mas, o Deus de misericórdia, que diz: “Perdoai as ofensas, se quereis ser perdoados fazei o bem em troca do mal; não façais o que não quereis vos façam.” 9 Já não é o Deus mesquinho e meticuloso, que impõe, sob as mais rigorosas penas, o modo como quer ser adorado, que se ofende pela inobservância de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento e que se não honra com a forma. 10 Enfim, já não é o Deus que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.
24. — Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas e o objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é conforme à ideia que elas dão de Deus. 2 As religiões que fazem de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com atos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têm um Deus parcial e cioso são intolerantes e mais ou menos meticulosas na forma, por crerem-no mais ou menos contaminado das fraquezas e ninharias humanas.
25. — Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que ele atribui à Divindade. 2 Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e misericordioso, ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a condição indeclinável da salvação, dizendo: Amai a Deus sobre todas as coisas e o vosso próximo como a vós mesmos; nisto estão toda a lei e os profetas; não existe outra lei. ( † ) 3 Sobre esta crença, assentou o princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da fraternidade universal. 4 Mas, fora possível amar o Deus de Moisés? Não; só se podia temê-lo.
5 Esta revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, de par com a da imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações mútuas dos homens, impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida presente sob outro aspecto e tinha, por isso mesmo, de reagir contra os costumes e as relações sociais. 6 É esse incontestavelmente, por suas consequências, o ponto capital da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida suficientemente e, contrista dize-lo, é também o ponto de que mais a Humanidade se tem afastado, que mais há desconhecido na interpretação dos seus ensinos.
26. — Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que vos digo
ainda não as compreendeis e muitas outras teria a dizer, que não compreenderíeis;
por isso é que vos falo por parábolas; mais tarde, porém, enviar-vos-ei
o Consolador, o Espírito de Verdade, que restabelecerá todas as coisas
e vo-las explicará todas.” (São
João, caps. XIV, XVI.)
2 Se o Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é que julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, até que os homens chegassem ao estado de compreendê-las. 3 Como ele próprio o confessou, seu ensino era incompleto, pois anunciava a vinda daquele que o completaria; 4 previra, pois, que suas palavras não seriam bem interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; 5 em suma, que desfariam o que ele fez, uma vez que todas as coisas hão de ser restabelecidas: ora, só se restabelece aquilo que foi desfeito.
27. — Por que chama ele Consolador ao novo messias? Este nome, significativo e sem ambiguidade, encerra toda uma revelação. 2 Assim, ele previa que os homens teriam necessidade de consolações, o que implica a insuficiência daquelas que eles achariam na crença que iam fundar. 3 Talvez nunca o Cristo fosse tão claro, tão explícito, como nestas últimas palavras, às quais poucas pessoas deram atenção bastante, provavelmente porque evitaram esclarecê-las e aprofundar-lhes o sentido profético.
28. — Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais não o compreenderiam; 2 há muitas coisas que teriam parecido absurdas no estado dos conhecimentos de então. 3 Completar o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, não no de ajuntar-lhe verdades novas, porque tudo nele se encontra em estado de gérmen, faltando-lhe só a chave para se apreender o sentido das palavras.
29. — Mas, quem toma a liberdade de interpretar as Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as necessárias luzes, senão os teólogos?
2 Quem o ousa? Primeiro, a Ciência, que a ninguém pede permissão para dar a conhecer as leis da Natureza e que salta sobre os erros e os preconceitos. 3 — Quem tem esse direito? Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar com a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado. 4 Quanto às luzes especiais, necessárias, sem contestar as dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média, e, em particular, os Pais da Igreja, eles, contudo, não o eram bastante para não condenarem como heresia o movimento da Terra e a crença nos antípodas; 5 e, mesmo sem ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram anátema à teoria dos períodos de formação da Terra?
6 Os homens só puderam explicar as Escrituras com o auxílio do que sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da Natureza, mais tarde reveladas pela Ciência; eis por que os próprios teólogos, de muito boa-fé, se enganaram sobre o sentido de certas palavras e fatos do Evangelho. 7 Querendo a todo custo encontrar nele a confirmação de uma ideia preconcebida, giraram sempre no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de modo que só viam o que queriam ver. 8 Por muito instruídos que fossem, eles não podiam compreender causas dependentes de leis que lhes eram desconhecidas.
9 Mas, quem julgará das interpretações diversas e muitas vezes contraditórias, fora do campo da teologia? — O futuro, a lógica e o bom-senso. 10 Os homens, cada vez mais esclarecidos, à medida que novos fatos e novas leis se forem revelando, saberão separar da realidade os sistemas utópicos; 11 ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o Espiritismo revela outras; todas são indispensáveis à inteligência dos Textos Sagrados de todas as religiões, desde Confúcio e Buda até o Cristianismo. 12 Quanto à teologia, essa não poderá judiciosamente alegar contradições da Ciência, visto como também ela nem sempre está de acordo consigo mesma.
30. — O ESPIRITISMO, partindo das próprias palavras do Cristo, como este partiu das de Moisés, é consequência direta da sua doutrina.
2 À ideia vaga da vida futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e povoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um corpo, uma consistência, uma realidade à ideia.
3 Ele define os laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte.
4 Pelo Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por que está na Terra, por que sofre temporariamente e vê por toda parte a justiça de Deus.
5 Ele sabe que a alma progride incessantemente, através de uma série de existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que a aproxima de Deus.
6 Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais, com idêntica aptidão para progredir, em virtude do seu livre arbítrio; 7 que todas são da mesma essência e que não há entre elas diferença, senão quanto ao progresso realizado; 8 que todas têm o mesmo destino e alcançarão a mesma meta, mais ou menos rapidamente, pelo trabalho e boa vontade.
9 Ele sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas do que outras; 10 que Deus a nenhuma criou privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras para progredirem; 11 que não há seres perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; 12 que os que se designam pelo nome de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no espaço, como o praticavam na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; 13 que os anjos ou Espíritos puros não são seres à parte na Criação, mas Espíritos que chegaram à meta, depois de terem percorrido a estrada do progresso; 14 que, por essa forma, não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande lei de unidade que rege o Universo e que todos os seres gravitam para um fim comum que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos das suas próprias obras.
31. — Pelas relações que hoje pode estabelecer com aqueles que deixaram a Terra, possui o homem não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como também compreende a solidariedade que liga os vivos aos mortos deste mundo e os deste mundo aos dos outros planetas. 2 Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em suas migrações, aprecia-lhes as alegrias e as penas; sabe a razão por que são felizes ou infelizes e a sorte que lhes está reservada, conforme o bem ou o mal que fizerem. 3 Essas relações iniciam o homem na vida futura, que ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança: é um fato positivo, uma certeza matemática. 4 Desde então, a morte nada mais tem de aterrador, por lhe ser a libertação, a porta da verdadeira vida.
32. — Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a desdita, na vida espiritual, são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; 2 que cada qual sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas, ou, por outra, que é punido no que pecou; 3 que essas consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; 4 que, por conseguinte, o culpado sofreria eternamente, se persistisse no mal, mas que o sofrimento cessa com o arrependimento e a reparação; 5 ora, como depende de cada um o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do livre arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como o doente sofre, pelos seus excessos, enquanto não lhes põe termo.
33. — Se a razão repele, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas, muitas vezes infligidas por uma única falta; 2 a dos suplícios do inferno, que não podem ser minorados nem sequer pelo arrependimento mais ardente e mais sincero, 3 a mesma razão se inclina diante dessa justiça distributiva e imparcial, que leva tudo em conta, que nunca fecha a porta ao arrependimento e estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.
34. — A pluralidade das existências, cujo princípio o Cristo estabeleceu no Evangelho, sem todavia defini-lo como a muitos outros, é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo, pois que lhe demonstra a realidade e a necessidade para o progresso. 2 Com esta lei, o homem explica todas as aparentes anomalias da vida humana; as diferenças de posição social; as mortes prematuras que, sem a reencarnação, tornariam inúteis à alma as existências breves; a desigualdade de aptidões intelectuais e morais, pela ancianidade do Espírito que mais ou menos aprendeu e progrediu, e traz, nascendo, o que adquiriu em suas existências anteriores (N.º 5).
35. — Com a doutrina da criação da alma no instante do nascimento, vem-se a cair no sistema das criações privilegiadas; 2 os homens são estranhos uns aos outros, nada os liga, os laços de família são puramente carnais; não são de nenhum modo solidários no passado em que não existiam; 3 com a doutrina do nada após a morte, todas as relações cessam com a vida; os seres humanos não são solidários no futuro. 4 Pela reencarnação, são solidários no passado e no futuro e, como as suas relações se perpetuam, tanto no mundo espiritual como no corporal, a fraternidade tem por base as próprias leis da Natureza; o bem tem um objetivo e o mal consequências inevitáveis.
36. — Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. 2 De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. 3 Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.
4
Os homens não nascem inferiores e subordinados senão pelo corpo; pelo
Espírito são iguais e livres. Daí o dever de tratar os inferiores com
bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que é nosso subordinado
hoje, pode ter sido nosso igual ou nosso superior, talvez um parente
ou um amigo e, por nossa vez poderemos vir a ser subordinado daquele
a quem comandamos. [O texto do indicador 4 foi
transcrito do artigo correspondente da Revista
Espírita.]
37. — Tirai ao homem o Espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada, sem finalidade, nem responsabilidade; sem outro freio além da lei civil e própria a ser explorada como um animal inteligente. 2 Nada esperando depois da morte, nada obsta a que aumente os gozos do presente; se sofre, só tem a perspectiva do desespero e o nada como refúgio. 3 Com a certeza do futuro, com a de encontrar de novo aqueles a quem amou e com o temor de tornar a ver aqueles a quem ofendeu, todas as suas ideias mudam. 4 O Espiritismo, ainda que só fizesse forrar o homem à dúvida relativamente à vida futura, teria feito mais pelo seu aperfeiçoamento moral do que todas as leis disciplinares, que o detêm algumas vezes, mas que o não transformam.
38. — Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado original não seria somente inconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pela falta de um só, seria também um contrassenso, e tanto menos justificável quanto, segundo essa doutrina, a alma não existia na época a que se pretende fazer que a sua responsabilidade remonte. 2 Com a preexistência, o homem traz, ao renascer, o gérmen das suas imperfeições, dos defeitos de que se não corrigiu e que se traduzem pelos instintos naturais e pelos pendores para tal ou tal vício. 3 É esse o seu verdadeiro pecado original, cujas consequências naturalmente sofre, mas com a diferença capital de que sofre a pena das suas próprias faltas, e não das de outrem; 4 e com a outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, animadora e soberanamente equitativa, de que cada existência lhe oferece os meios de se redimir pela reparação e de progredir, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, 5 e assim, até que, suficientemente purificado, não necessite mais da vida corporal e possa viver exclusivamente a vida espiritual, eterna e bem-aventurada.
6 Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu intelectualmente traz ideias inatas; identificado com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculos e, por assim dizer, sem pensar. 7 Aquele que é obrigado a combater as suas más tendências vive ainda em luta; o primeiro já venceu, o segundo procura vencer. 8 Existe, pois, a virtude original, como existe o saber original, e o pecado ou, antes, o vício original.
39. — O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a ação deles sobre a matéria. 2 Demonstrou a existência do perispírito, suspeitado desde a Antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma, depois da destruição do corpo tangível. 3 Sabe-se hoje que esse invólucro é inseparável da alma, forma um dos elementos constitutivos do ser humano, é o veículo da transmissão do pensamento e, durante a vida do corpo, serve de laço entre o Espírito e a matéria. 4 O perispírito representa importantíssimo papel no organismo e numa multidão de afecções, que se ligam à fisiologia, assim como à psicologia.
40. — O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos horizontes à Ciência e dá a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos até então, por falta de conhecimento da lei que os rege; 2 fenômenos negados pelo materialismo, por se prenderem à espiritualidade, e qualificados como milagres ou sortilégios por outras crenças. 3 Tais são, entre muitos, os fenômenos da vista dupla, da visão a distância, do sonambulismo natural e provocado, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. 4 Demonstrando que esses fenômenos repousam em leis naturais, como os fenômenos elétricos, e em que condições normais se podem reproduzir, o Espiritismo derroca o império do maravilhoso e do sobrenatural e, conseguintemente, a fonte da maior parte das superstições. 5 Se faz se creia na possibilidade de certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, também impede que se creia em muitas outras, das quais ele demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.
41. — O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho, vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas novas leis da Natureza, que revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; 2 elucida os pontos obscuros do ensino cristão, de tal sorte que aqueles para quem eram ininteligíveis certas partes do Evangelho, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem e admitem, sem dificuldade, com o auxílio desta doutrina, veem melhor o seu alcance e podem distinguir entre a realidade e a alegoria; 3 o Cristo lhes parece maior: já não é simplesmente um filósofo, é um Messias divino.
42. — Demais, se considerarmos o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as ações da vida, 2 por tornar quase tangíveis as consequências do bem e do mal, 3 pela força moral, a coragem e as consolações que dá nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro, 4 pela ideia de ter cada um perto de si os seres a quem amou, a certeza de os rever, a possibilidade de confabular com eles, 5 enfim, pela certeza de que tudo quanto se fez, quanto se adquiriu em inteligência, sabedoria, moralidade, até à última hora da vida, não fica perdido, que tudo aproveita ao adiantamento do Espírito, 6 reconhecesse que o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador anunciado. 7 Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa da sua vinda se acha por essa forma cumprida, porque, de fato, é ele o verdadeiro Consolador. n
43. — Se a estes resultados adicionarmos a rapidez prodigiosa da propagação do Espiritismo, apesar de tudo quanto fazem por abatê-lo, não se poderá negar que a sua vinda seja providencial, visto como ele triunfa de todas as forças e de toda a má-vontade dos homens. 2 A facilidade com que é aceito por grande número de pessoas, sem constrangimento, apenas pelo poder da ideia, prova que ele corresponde a uma necessidade, qual a de crer o homem em alguma coisa para encher o vácuo aberto pela incredulidade e que, portanto, veio no momento preciso.
44. — São em grande número os aflitos; não é, pois, de admirar que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de preferência as que desesperam, porque aos deserdados, mais do que aos felizes do mundo, é que o Espiritismo se dirige. 2 O doente vê chegar o médico com maior satisfação do que aquele que está bem de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o médico.
3 Vós que combateis o Espiritismo, se quereis que o abandonemos para vos seguir, dai-nos mais e melhor do que ele, curai com maior segurança as feridas da alma. 4 Dai mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; fazei do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; porém, não julgueis vencê-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das chamas do inferno, ou com a inútil contemplação perpétua.
45. — A primeira revelação teve a sua personificação em Moisés, a segunda no Cristo, a terceira não a tem em indivíduo algum. 2 As duas primeiras foram individuais, a terceira coletiva; aí está um caráter essencial de grande importância. 3 Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como privilégio a pessoa alguma; ninguém, por consequência, pode inculcar-se como seu profeta exclusivo; foi espalhada simultaneamente, por sobre a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a mais alta da escala, conforme esta predição registrada pelo autor dos Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, disse o Senhor; derramarei o meu espírito sobre toda a carne; os vossos filhos e filhas profetizarão, os mancebos terão visões, e os velhos, sonhos.” (Atos, capítulo II, vv. 17 e 18). 4 Ela não proveio de nenhum culto especial, a fim de servir um dia, a todos, de ponto de ligação. n
46. — As duas primeiras revelações, sendo fruto do ensino pessoal, ficaram forçosamente localizadas, isto é, apareceram num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou pouco a pouco; mas, foram precisos muitos séculos para que atingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o invadirem inteiramente.
2 A terceira tem isto de particular: não estando personificada em um só indivíduo, surgiu simultaneamente em milhares de pontos diferentes, que se tornaram centros ou focos de irradiação. 3 Multiplicando-se esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabarão por cobrir toda a superfície do globo.
4 Essa uma das causas da rápida propagação da doutrina. 5 Se ela tivesse surgido num só ponto, se fosse obra exclusiva de um homem, houvera formado seitas em torno dela; e talvez decorresse meio século sem que ela atingisse os limites do país onde começara, ao passo que, após dez anos, já estende raízes de um polo a outro.
47. — Esta circunstância, inaudita na história das doutrinas, lhe dá
força excepcional e irresistível poder de ação; 2
de fato, se a perseguirem num ponto, em determinado país, será materialmente
impossível que a persigam em toda parte e em todos os países. 3
Em contraposição a um lugar onde lhe embaracem a marcha, haverá mil
outros em que florescerá. 4
Ainda mais: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la nos Espíritos,
que são a fonte donde ela promana. 5
Ora, como os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre, se, por
um acaso impossível, conseguissem sufocá-la em todo o globo, ela reapareceria
pouco tempo depois, porque repousa sobre um fato que está na Natureza
e não se podem suprimir as leis da Natureza. 6
Eis aí o de que se devem persuadir aqueles que sonham com o aniquilamento
do Espiritismo. (Revista Espírita, fevereiro de 1865: Da
perpetuidade do Espiritismo.)
48. — Entretanto, disseminados os centros, poderiam ainda permanecer por muito tempo isolados uns dos outros, confinados como estão alguns em países longínquos. Faltava entre eles uma ligação, que os pusesse em comunhão de ideias com seus irmãos em crença, informando-os do que se fazia algures. 2 Esse traço de união, que na Antiguidade teria faltado ao Espiritismo, hoje existe nas publicações que vão a toda parte, condensando, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensino dado universalmente sob formas múltiplas e nas diversas línguas.
49. — As duas primeiras revelações só podiam resultar de um ensino direto; como os homens não estivessem ainda bastante adiantados a fim de concorrerem para a sua elaboração, elas tinham que ser impostas pela fé, sob a autoridade da palavra do Mestre.
2 Contudo, notam-se entre as duas bem sensível diferença, devida ao progresso dos costumes e das ideias, se bem que feitas ao mesmo povo e no mesmo meio, mas com dezoito séculos de intervalo. 3 A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e se impõe ao povo pela força. 4 A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceita e só se impõe pela persuasão; foi controvertida desde o tempo do seu fundador, que não desdenhava de discutir com os seus adversários.
50. — A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e madureza intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida, não se resigna a representar papel passivo; em que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre exame. 2 Os Espíritos não ensinam senão justamente o que é mister para guiá-lo no caminho da verdade, mas abstém-se de revelar o que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à sua custa. 3 Fornecem-lhe o princípio, os materiais; cabe-lhe a ele aproveitá-los e pô-los em obra (N.º 15).
51. — Tendo sido os elementos da revelação espírita ministrados simultaneamente em muitos pontos, a homens de todas as condições sociais e de diversos graus de instrução, é claro que as observações não podiam ser feitas em toda parte com o mesmo resultado; 2 que as consequências a tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos, em suma, a conclusão sobre que haviam de firmar-se as ideias não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. 3 Ora, cada centro isolado, circunscrito dentro de um círculo restrito, não vendo as mais das vezes senão uma ordem particular de fatos, não raro contraditórios na aparência, geralmente provindo de uma mesma categoria de Espíritos e, ao demais, embaraçados por influências locais e pelo espírito de partido, se achava na impossibilidade material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz de conjugar as observações isoladas a um princípio comum. 4 Apreciando cada qual os fatos sob o ponto de vista dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião especial dos Espíritos que se manifestassem, bem cedo teriam surgido tantas teorias e sistemas, quantos fossem os centros, todos incompletos por falta de elementos de comparação e exame. 5 Numa palavra, cada qual se teria imobilizado na sua revelação parcial, julgando possuir toda a verdade, ignorando que em cem outros lugares se obtinha mais ou melhor.
52. — Além disso, convém notar que em parte alguma o ensino espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão grande número de observações, a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais, que impossível era acharem-se reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias.
2 Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e observação como, em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objeto é repartida por diversos operários.
3 A revelação fez-se assim parcialmente em diversos lugares e por uma multidão de intermediários e é dessa maneira que prossegue ainda, pois que nem tudo foi revelado. 4 Cada centro encontra nos outros centros o complemento do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a Doutrina Espírita.
5 Era, pois, necessário grupar os fatos espalhados, para se lhes apreender a correlação, reunir os documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os assuntos, para as comparar, analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. 6 Vindo as comunicações de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era preciso apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, 7 distinguir as ideias sistemáticas individuais ou isoladas das que tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas, 8 afastar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica, 9 utilizar igualmente os erros, as informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo invisível e formar com isso um todo homogêneo. 10 Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração, independente de qualquer ideia preconcebida, de todo prejuízo de seita, resolvido aceitar a verdade tornada evidente, embora contrária às opiniões pessoais. 11 Este centro se formou por si mesmo, pela força das coisas e sem desígnio premeditado. n
53. — De todas essas coisas, originou-se dupla corrente de ideias: umas, dirigindo-se das extremidades para o centro; as outras encaminhando-se do centro para a circunferência. 2 Desse modo, a doutrina caminhou rapidamente para a unidade, mau grado à diversidade das fontes donde promanou; os sistemas divergentes ruíram pouco a pouco, devido ao isolamento em que ficaram, diante do ascendente da opinião da maioria, em a qual não encontraram repercussão simpática. 3 Desde então, uma comunhão de ideias se estabeleceu entre os diversos centros parciais. Falando a mesma linguagem espiritual, eles se entendem e estimam, de um extremo a outro do mundo.
4 Sentiram-se assim mais fortes os espíritas, lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais firme, desde que não mais se viram insulados, desde que perceberam um ponto de apoio, um laço a prendê-los à grande família; 5 não mais lhes pareceram singulares, anormais, nem contraditórios os fenômenos que presenciavam, desde que puderam conjugá-los a leis gerais e descobrir um fim grandioso e humanitário em todo o conjunto. n
6 Mas, como se há de saber se um princípio é ensinado por toda parte, ou se apenas exprime uma opinião pessoal? Não estando os grupos independentes em condições de saber o que se diz alhures, necessário se fazia que um centro reunisse todas as instruções, para proceder a uma espécie de apuro das vozes e transmitir a todos a opinião da maioria. n
54. — Nenhuma ciência existe que haja saído prontinha do cérebro de um homem. Todas, sem exceção de nenhuma, são fruto de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como em um ponto conhecido, para chegar ao desconhecido. 2 Foi assim que os Espíritos procederam, com relação ao Espiritismo; daí o ser gradativo o ensino que ministram; 3 eles não enfrentam as questões, senão à medida que os princípios sobre que hajam de apoiar-se estejam suficientemente elaborados e amadurecida bastante a opinião para os assimilar. 4 É mesmo de notar-se que, de todas as vezes que os centros particulares têm querido tratar de questões prematuras, não obtiveram mais do que respostas contraditórias, nada concludentes. 5 Quando, ao contrário, chega o momento oportuno, o ensino se generaliza e se unifica na quase universalidade dos centros.
6 Há, todavia, capital diferença entre a marcha do Espiritismo e a das ciências; a de que estas não atingiram o ponto que alcançaram, senão após longos intervalos, ao passo que alguns anos bastaram ao Espiritismo, quando não a galgar o ponto culminante, pelo menos a recolher uma soma de observações bem grande para formar uma doutrina. 7 Decorre esse fato de ser inumerável a multidão de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus conhecimentos. 8 Resultou daí que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante longos anos, o foram quase ao mesmo tempo, em alguns anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem um todo.
9 Quis Deus fosse assim, primeiro, para que o edifício mais rapidamente chegasse ao ápice; em seguida, para que se pudesse, por meio da comparação, conseguir uma verificação, a bem dizer imediata e permanente, da universalidade do ensino, nenhuma de suas partes tendo valor, nem autoridade, a não ser pela sua conexão com o conjunto, devendo todos harmonizar-se, colocado cada um no devido lugar e vindo cada um na hora oportuna.
10 Não confiando a um único Espírito o encargo de promulgar a doutrina, quis Deus, também, que, assim o mais pequenino, como o maior, tanto entre os Espíritos, quanto entre os homens, trouxesse sua pedra para o edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa, que faltou a todas as doutrinas decorrentes de um tronco único.
11 Por outro lado, dispondo todo Espírito, como todo homem, apenas de limitada soma de conhecimentos, não estavam eles aptos, individualmente, a tratar ex-professo das inúmeras questões que o Espiritismo envolve. Essa ainda uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do Criador, não podia a doutrina ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium. Tinha que emergir da coletividade dos trabalhos, comprovados uns pelos outros. n
55. — Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. 2 Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. 3 As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que formaram de Deus.
4 O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. 5 Entendendo com todos os ramos da economia social [sociedade], aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria; 6 deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. 7 Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto; se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. n
56. — Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, uma vez que não difere da do Cristo? 2 Precisa o homem de uma revelação? Não pode achar em si próprio tudo o que lhe é necessário para conduzir-se?
3 Do ponto de vista moral, é fora de dúvida que Deus outorgou ao homem um guia, dando-lhe a consciência, que lhe diz: “Não faças a outrem o que não quererias te fizessem.” ( † ) 4 A moral natural está positivamente inscrita no coração dos homens; porém, sabem todos lê-la nesse livro? Nunca lhe desprezaram os sábios preceitos? 5 Que fizeram da moral do Cristo? Como a praticam mesmo aqueles que a ensinam? Não se tornou ela letra morta, uma bela teoria, boa para os outros e não para si? 6 Reprovareis que um pai repita a seus filhos dez vezes, cem vezes as mesmas instruções, desde que eles não as sigam? Por que haveria Deus de fazer menos do que um pai de família? 7 Por que não enviaria, de tempos a tempos, mensageiros especiais aos homens, para lhes lembrar os deveres e reconduzi-los ao bom caminho, quando deste se afastam; para abrir os olhos da inteligência aos que os trazem fechados, assim como os homens mais adiantados enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?
8 A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor. Mas, então, de que serve o ensino deles, se apenas repisam o que já sabemos? 9 Outro tanto se poderia dizer da moral do Cristo, que já Sócrates e Platão ensinaram quinhentos anos antes e em termos quase idênticos. 10 O mesmo se poderia dizer também das de todos os moralistas, que nada mais fazem do que repetir a mesma coisa em todos os tons e sob todas as formas. 11 Pois bem! os Espíritos vêm, muito simplesmente, aumentar o número dos moralistas com a diferença de que, manifestando-se por toda parte, tanto se fazem ouvir na choupana, como no palácio, assim pelos ignorantes, como pelos instruídos.
12 O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que se tinham da alma, de seu passado e de seu futuro, dando por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza. 13 Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem se reconhece solidário com todos os seres e compreende essa solidariedade; 14 a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.
15 Somente quando praticarem a moral do Cristo, poderão os homens dizer que não mais precisam de moralistas encarnados ou desencarnados. Mas, também, Deus, então, já não lhos enviará.
57. — Uma das questões mais importantes, entre as propostas no começo deste capítulo, é a seguinte: Que autoridade tem a revelação espírita, uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis?
2 A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos fechados; perde, porém, todo valor, desde que o homem concorra para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos. 3 Ora, as manifestações, nas suas inumeráveis modalidades, são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores, no sentido usual do termo; 4 ele lhes submete os dizeres ao cadinho da lógica e do bom-senso: desta maneira se benefícia dos conhecimentos especiais de que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar o uso da própria razão.
5 Sendo os Espíritos unicamente as almas dos homens, comunicando-nos com eles não saímos fora da Humanidade, circunstância capital a considerar-se. 6 Os homens de gênio, que foram fachos da Humanidade, vieram do mundo dos Espíritos e para lá voltaram, ao deixarem a Terra. 7 Dado que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, esses mesmos gênios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual, como o fizeram sob a forma corpórea; podem instruir-nos, depois de terem morrido, tal qual faziam quando vivos; apenas, são invisíveis, em vez de serem visíveis; essa a única diferença. 8 Não devem ser menores do que eram a experiência e o saber que possuem e, se a palavra deles, como homens, tinha autoridade, não na pode ter menos, somente por estarem no mundo dos Espíritos.
58. — Mas, nem só os Espíritos superiores se manifestam; fazem-no igualmente os de todas as categorias e preciso era que assim acontecesse, para nos iniciarmos no que respeita ao verdadeiro caráter do mundo espiritual, apresentando-se-nos este por todas as suas faces; 2 daí resulta serem mais íntimas as relações entre o mundo visível e o mundo invisível e mais evidente a conexidade entre os dois; 3 vemos assim mais claramente donde procedemos e para onde iremos: esse o objeto essencial das manifestações. 4 Todos os Espíritos, pois, qualquer que seja o grau de elevação em que se encontrem, alguma coisa nos ensinam; cabe-nos, porém, a nós, visto que eles são mais ou menos esclarecidos, discernir o que há de bom ou de mau no que nos digam e tirar, do ensino que nos deem, o proveito possível; 5 ora, todos, quaisquer que sejam, nos podem ensinar ou revelar coisas que ignoramos e que sem eles nunca saberíamos.
59. — Os grandes Espíritos encarnados são, sem contradita, individualidades poderosas, mas de ação restrita e de lenta propagação. 2 Viesse um só dentre eles, embora fosse Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, revelar, nos tempos modernos, aos homens, as condições do mundo espiritual, quem provaria a veracidade das suas asserções, nesta época de cepticismo? Não o tomariam por sonhador ou utopista? 3 Mesmo que fosse verdade absoluta o que dissesse, séculos se escoariam antes que as massas humanas lhe aceitassem as ideias. 4 Deus, em sua sabedoria, não quis que assim acontecesse; quis que o ensino fosse dado pelos próprios Espíritos, não por encarnados, a fim de que aqueles convencessem da sua existência a estes últimos e quis que isso ocorresse por toda a Terra simultaneamente, quer para que o ensino se propagasse com maior rapidez, quer para que, coincidindo em toda parte, constituísse uma prova da verdade, tendo assim cada um o meio de convencer-se a si próprio.
60. — Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente pronta, nenhuma ciência; 2 com relação ao que o homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue às suas próprias forças; isso sabem-no hoje perfeitamente os espíritas. 3 De há muito, a experiência há demonstrado ser errôneo atribuir-se aos Espíritos todo o saber e toda a sabedoria e supor-se que baste a quem quer que seja dirigir-se ao primeiro Espírito que se apresente para conhecer todas as coisas. 4 Saídos da Humanidade, eles constituem uma de suas faces; assim como na Terra, no Plano invisível também os há superiores e vulgares; muitos, pois, que, científica e filosoficamente, sabem menos do que certos homens; eles dizem o que sabem, nem mais, nem menos; 5 do mesmo modo que os homens, os Espíritos mais adiantados podem instruir-nos sobre maior poção de coisas, dar-nos opiniões mais judiciosas, do que os atrasados. 6 Pedir o homem conselhos aos Espíritos não é entrar em entendimentos com potências sobrenaturais; é tratar com seu iguais, com aqueles mesmos a quem ele se dirigiria neste mundo; a seus parentes, seus amigos, ou a indivíduos mais esclarecidos do que ele. 7 Disto é que importa se convençam todos e é o que ignoram os que, não tendo estudado o Espiritismo, fazem ideia completamente falsa da natureza do mundo dos Espíritos e das relações com o além-túmulo.
61. — Qual, então, a utilidade dessas manifestações, ou, se o preferirem, dessa revelação, uma vez que os Espíritos não sabem mais do que nós, ou não nos dizem tudo o que sabem?
2 Primeiramente, como já o declaramos, eles se abstém de nos dar o que podemos adquirir pelo trabalho; em segundo lugar, há coisas cuja revelação não lhes é permitida, porque o grau do nosso adiantamento não as comporta. 3 Afora isto, as condições da nova existência em que se acham lhes dilatam o círculo das percepções: eles veem o que não viam na Terra; libertos dos entraves da matéria, isentos dos cuidados da vida corpórea, apreciam as coisas de um ponto de vista mais elevado e, portanto, mais são; a perspicácia de que gozam abrange mais vasto horizonte; compreendem seus erros, retificam suas ideias e as desembaraçam dos prejuízos humanos.
4 É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos com relação à humanidade corpórea e daí vem a possibilidade de serem seus conselhos, segundo o grau de adiantamento que alcançaram, mais judiciosos e desinteressados do que os dos encarnados. 5 O meio em que se encontram lhes permite, ao demais, iniciar-nos nas coisas que ignoramos, relativas à vida futura e que não podemos aprender no meio em que estamos. 6 Até ao presente, o homem apenas formulara hipóteses sobre o seu porvir; tal a razão por que suas crenças a esse respeito se fracionaram em tão numerosos e divergentes sistemas, desde o nadismo até as concepções fantásticas do inferno e do paraíso. 7 Hoje, são as testemunhas oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo que nos vêm dizer em que se tornaram e só eles o podiam fazer. 8 Suas manifestações, conseguintemente, serviram para dar-nos a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do qual nem suspeitávamos e só esse conhecimento seria de capital importância, dado mesmo que nada mais pudessem os Espíritos ensinar-nos.
9 Se fordes a um país que ainda não conheçais, recusareis as informações que vos dê o mais humilde campônio que encontrardes? Deixareis de interrogá-lo sobre o estado dos caminhos, simplesmente por ser ele um camponês? Certamente não esperareis obter, por seu intermédio, esclarecimentos de grande alcance, mas, de acordo com o que ele é na sua esfera, poderá, sobre alguns pontos, informar-vos melhor do que um sábio, que não conheça o país. Tirareis das suas indicações deduções que ele próprio não tiraria, sem que por isso deixe de ser um instrumento útil às vossas observações, embora apenas servisse para vos informar acerca dos costumes dos camponeses. 10 Outro tanto se dá no que concerne às nossas relações com os Espíritos, entre os quais o menos qualificado pode servir para nos ensinar alguma coisa.
62. — Uma comparação vulgar tornará ainda melhor compreensível a situação.
2 Parte para destino longínquo um navio carregado de emigrantes. Leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vem-se a saber que esse navio naufragou. Nenhum vestígio resta dele, nenhuma notícia chega sobre a sua sorte. Acredita-se que todos os passageiros pereceram e o luto penetra em todas as suas famílias. Entretanto, a equipagem inteira, sem faltar um único homem, foi ter a uma ilha desconhecida, abundante e fértil, onde todos passam a viver ditosos, sob um céu clemente. Ninguém, todavia, sabe disso. Ora, um belo dia, outro navio aporta a essa terra e lá encontra sãos e salvos os náufragos. A feliz nova se espalha com a rapidez do relâmpago. Exclamam todos: “Não estão perdidos os nossos amigos!” E rendem graças a Deus. Não podem ver-se uns aos outros, mas correspondem-se; permutam demonstrações de afeto e, assim, a alegria substitui a tristeza.
3 Tal a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna. A última, semelhante ao segundo navio, nos traz a boa-nova da sobrevivência dos que nos são caros e a certeza de que a eles nos reuniremos um dia. Deixa de existir a dúvida sobre a sorte deles e a nossa. O desânimo a desfaz diante da esperança.
4 Mas, outros resultados fecundam essa revelação. Achando madura a Humanidade para penetrar o mistério do seu destino e contemplar, a sangue-frio, novas maravilhas, permitiu Deus fosse erguido o véu que ocultava o mundo invisível ao mundo visível. 5 Nada têm de extra-humanas as manifestações; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:
6 “Nós existimos, logo o nada não existe; eis o que somos e o que sereis; o futuro vos pertence, como a nós. 7 Caminhais nas treva, vimos clarear-vos o caminho e traçar-vos o roteiro; andais ao acaso, vimos apontar-vos a meta. 8 A vida terrena era, para vós, tudo, porque nada víeis além dela; vimos dizer-vos, mostrando a vida espiritual: a vida terrestre nada é. 9 A vossa visão se detinha no túmulo, nós vos desvendamos, para lá deste, um esplêndido horizonte. 10 Não sabíeis por que sofreis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus; 11 o bem nenhum fruto aparente produzia para o futuro; doravante, ele terá uma finalidade e constituirá uma necessidade; 12 a fraternidade, que não passava de bela teoria, assenta agora numa lei da Natureza. 13 Sob o domínio da crença de que tudo acaba com a vida, a imensidade é o vazio, o egoísmo reina soberano entre vós e a vossa palavra de ordem é: “Cada um por si”; 14 com a certeza do porvir, os espaços infinitos se povoam ao infinito, em parte alguma há o vazio e a solidão; 15 a solidariedade liga todos os seres, aquém e além da tumba; é o reino da caridade, sob a divisa: “Um por todos e todos por um.” 16 Enfim, ao termo da vida, dizíeis eterno adeus aos que vos são caros; agora, dir-lhe-eis: “Até breve!”
17 Tais, em resumo, os resultados da revelação nova, que veio encher o vácuo que a incredulidade cavara, levantar os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva do nada e imprimir a todas as coisas uma razão de ser. 18 Carecerá de importância esse resultado, apenas porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da Ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem trabalho? 19 Nem só, entretanto, à vida futura dizem respeito os frutos que o homem deve colher dela; ele os saboreará na Terra, pela transformação que estas novas crenças hão de necessariamente operar no seu caráter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por conseguinte, nos hábitos e nas relações sociais. 20 Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, elas preparam o do bem, que é o reino de Deus, anunciado pelo Cristo. n
[1] A palavra elemento não é empregada aqui no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constitutiva de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem parte ativa na economia [organização] do Universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram no cálculo de uma população; que o elemento religioso, entra na educação; ou que na Argélia existem o elemento árabe e o elemento europeu.
[2] Muitos
pais deploram a morte prematura dos filhos, para cuja educação fizeram
grandes sacrifícios, e dizem consigo mesmos que tudo foi em pura perda.
À luz do Espiritismo, porém, não lamentam esses sacrifícios e estariam
prontos a faze-los, mesmo tendo a certeza de que veriam morrer seus
filhos, porque sabem que se estes não a aproveitam na vida presente,
essa educação servirá, primeiro que tudo, para o seu adiantamento espiritual;
e, mais, que serão aquisições novas para outra existência e que, quando
voltarem a este mundo, terão um patrimônio intelectual que os tornará
mais aptos a adquirirem novos conhecimentos. Tais essas crianças que
trazem, ao nascer, ideias inatas que sabem, por assim dizer, sem precisarem
aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de ver os filhos
aproveitarem da educação que lhes deram, gozá -la-ão certamente mais
tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez sejam eles de novo
os pais desses mesmos filhos, que se apontam como afortunadamente dotados
pela natureza e que devem as suas aptidões a uma educação precedente;
assim também, se os filhos se desviam para o mal, pela negligência dos
pais, estes podem vir a sofrer mais tarde desgostos e pesares que àqueles
suscitarão em nova existência. (O
Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo V, n.º 21: Mortes prematuras.)
[3] O nosso papel pessoal, no grande movimento de ideias que se prepara pelo Espiritismo e que começa a operar-se, é o de um observador atento, que estuda os fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as consequências. Confrontamos todos os que nos têm sido possível reunir, comparamos e comentamos as instruções dadas pelos Espíritos em todos os pontos do globo e depois coordenamos metodicamente o conjunto; em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos nossos trabalhos valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe da doutrina, nem procurarmos impor as nossas ideias a quem quer que seja. Publicando-as, usamos de um direito comum e aqueles que as aceitaram o fizeram livremente. Se essas ideias acharam numerosas simpatias, é porque tiveram a vantagem de corresponder às aspirações de avultado número de criaturas, mas disso não colhemos vaidade alguma, dado que a sua origem não nos pertence. O nosso maior mérito é a perseverança e a dedicação à causa que abraçamos. Em tudo isso, fizemos o que outro qualquer poderia ter feito como nós, razão pela qual nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profeta ou messias, nem, ainda menos, de nos apresentarmos como tal.
[4] O Livro dos Espíritos, a primeira obra que levou o Espiritismo a ser considerado de um ponto de vista filosófico, pela dedução das consequências morais dos fatos; que considerou todas as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que ela suscita, foi, desde o seu aparecimento, o ponto para onde convergiram espontaneamente os trabalhos individuais. É notório que da publicação desse livro data a era do Espiritismo filosófico, até então conservado no domínio das experiências curiosas. Se esse livro conquistou as simpatias da maioria é que exprimia os sentimentos dela, correspondia às suas aspirações e encerrava também a confirmação e a explicação racional do que cada um obtinha em particular. Se estivesse em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, teria caído no descrédito e no esquecimento. Ora, qual foi aquele ponto de convergência? De certo não foi o homem, que nada vale por si mesmo, que morre e desaparece; mas, a ideia, que não fenece quando emana de uma fonte superior ao homem.
Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações, os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?…
[5] Significativo testemunho, tão notável quão tocante, dessa comunhão de ideias que se estabeleceu entre os espíritas, pela conformidade de suas crenças, são os pedidos de preces que nos chegam dos mais distantes países, desde o Peru até as extremidades da Ásia, feitos por pessoas de religiões e nacionalidades diversas e as quais nunca vimos. Não é isso um prelúdio da grande unificação que se prepara? Não é a prova de que por toda parte o Espiritismo lança raízes fortes?
Digno de nota é que, de todos os grupos que se tem formado com a intenção premeditada de abrir cisão, proclamando princípios divergentes, do mesmo modo que de todos quantos, apoiando-se em raízes de amor próprio ou outras quaisquer, para não parecer que se submetem à lei comum, se consideraram fortes bastante para caminhar sozinhos, possuidores de luzes suficientes para prescindirem de conselhos, nenhum chegou a construir uma ideia que fosse preponderante e viável. Todos se extinguiram ou vegetaram na sombra. Nem de outro modo poderia ser, dado que, para se exalçarem, em vez de se esforçarem por proporcionar maior soma de satisfações, rejeitavam princípios da doutrina, precisamente o que de mais atraente há nela, o que de mais consolador ela contêm e de mais racional. Se houvessem compreendido a força dos elementos morais que lhe constituíram a unidade, não se teriam embalado com ilusões quiméricas. Ao contrário, tomando como se fosse o Universo o pequeno círculo que constituíam, não viram nos adeptos mais do que uma camarilha facilmente derrubável por outra camarilha. Era equivocar-se de modo singular, no tocante aos caracteres essenciais da doutrina e semelhante erro só decepções podia acarretar. Em lugar de romperem a unidade, quebraram o único laço que lhes podia dar força e vida. (Veja-se: Revista Espírita, abril de 1866: O Espiritismo sem os Espíritos e, O Espiritismo independente.)
[6] Esse o objeto das nossas publicações, que se podem considerar o resultado de um trabalho de apuro. Nelas, todas as opiniões são discutidas, mas as questões somente são apresentadas em forma de princípios, depois de haverem recebido a consagração de todas as comprovações, as quais, só elas, lhes podem imprimir força de lei e permitir afirmações. Eis por que não preconizamos levianamente nenhuma teoria e é nisso exatamente que a doutrina, decorrendo do ensino geral, não representa produto de um sistema preconcebido. É também donde tira a sua força e o que lhe garante o futuro.
[7] Veja-se, em O Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, item II; e Revista Espírita, de abril de 1864: Autoridade da Doutrina Espírita — Controle universal do ensino dos Espíritos.
[8] Diante de declarações tão nítidas e tão categóricas, quais as que se contêm neste capítulo, caem por terra todas as alegações de tendências ao absolutismo e a autocracia dos princípios, bem como todas as falsas assimilações que algumas pessoas prevenidas ou mal informadas emprestam à doutrina. Não são novas, aliás, estas declarações; temo-las repetido muitíssimas vezes nos nossos escritos, para que nenhuma dúvida persista a tal respeito. Elas, ao demais, assinalam o verdadeiro papel que nos cabe, único que ambicionamos: o de mero trabalhador.
[9] A anteposição do artigo à palavra Cristo (do grego Cristos, ungido), empregada em sentido absoluto, é mais correta, atento que essa palavra não é o nome do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Dir-se-á, pois: Jesus era Cristo; era o Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo, ao passo que se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus-Cristo, as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: o Buda; Gautama conquistou a dignidade de Buda por suas virtudes e austeridades. Diz-se: a vida do Buda, do mesmo modo que: o exército do Faraó e não de Faraó: Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei.