Existência
de Deus. (1-7.) — Da natureza divina. (8-19.)
— A Providência. (20-30.)
— A visão de Deus. (31-37.) |
1. — Sendo Deus a causa primária de todas as coisas, a origem de tudo o que existe, a base sobre que repousa o edifício da Criação, é também o ponto que importa consideremos antes de tudo.
2. — Constitui princípio elementar que pelos seus efeitos é que se julga de uma causa, mesmo quando ela se conserve oculta.
2 Se, fendendo os ares, um pássaro é atingido por mortífero grão de chumbo, deduz-se que hábil atirador o alvejou, ainda que este último não seja visto. 3 Nem sempre, pois; se faz necessário vejamos uma coisa, para sabermos que ela existe. 4 Em tudo, observando os efeitos é que se chega ao conhecimento das causas.
3. — Outro princípio igualmente elementar e que, de tão verdadeiro, passou a axioma é o de que todo efeito inteligente tem que decorrer de uma causa inteligente.
2 Se perguntassem qual o construtor de certo mecanismo engenhoso, que pensaríamos de quem respondesse que ele se fez a si mesmo? 3 Quando se contempla, uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que há de tê-la produzido um homem de gênio, porque só uma alta inteligência poderia concebê-la. Reconhece-se, no entanto, que ela é obra de um homem, por se verificar que não está acima da capacidade humana; mas, a ninguém acudirá a ideia de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante, nem, ainda menos, que é trabalho de um animal, ou produto do acaso.
4. — Em toda parte se reconhece a presença do homem pelas suas obras. 2 A existência dos homens antediluvianos não se provaria unicamente por meio dos fósseis humanos: provou-a também, e com muita certeza, a presença, nos terrenos daquela época, de objetos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo bastarão para lhe atestar a presença. 3 Pela grosseria ou perfeição do trabalho, reconhecer-se-á o grau de inteligência ou de adiantamento dos que o executaram. 4 Se, pois, achando-vos numa região habitada exclusivamente por selvagens, descobrirdes uma estátua digna de Fídias, não hesitareis em dizer que, sendo incapazes de tê-la feito os selvagens, ela é obra de uma inteligência superior à destes.
5. — Pois bem! lançando o olhar em torno de si, sobre as obras da Natureza, notando a providência, sabedoria, a harmonia que presidem a essas obras, reconhece o observador não haver nenhuma que não ultrapasse os limites da mais portentosa inteligência humana. 2 Ora, desde que o homem não as pode produzir, é que elas são produto de uma inteligência superior à humanidade, a menos se sustente que há efeitos sem causa.
6. — A isto opõem alguns o seguinte raciocínio:
2 As obras ditas da Natureza são produzidas por forças materiais que atuam mecanicamente, em virtude das leis de atração e repulsão; 3 as moléculas dos corpos inertes se agregam e desagregam sob o império dessas leis. 4 As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito daquelas mesmas leis; 5 cada indivíduo se assemelha ao de quem ele proveio; 6 o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração se acham subordinados a causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. 7 O mesmo se dá com os animais. 8 Os astros se formam pela atração molecular e se movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da gravitação. 9 Essa regularidade mecânica no emprego das forças naturais não acusa a ação de qualquer inteligência livre. 10 O homem movimenta o braço quando quer e como quer; aquele porém, que o movimentasse no mesmo sentido, desde o nascimento até a morte, seria um autômato; ora as forças orgânicas da Natureza são puramente automáticas.
11 Tudo isso é verdade; mas, essas forças são efeitos que hão de ter uma causa e ninguém pretende que elas constituam a divindade. 12 Elas são materiais e mecânicas; não são de si mesmas inteligentes, também isto é verdade, mas, são postas em ação, distribuídas, apropriadas às necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. 13 A aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente, que denota uma causa inteligente. 14 Um pêndulo se move com automática regularidade e é nessa regularidade que lhe está o mérito. É toda material a força que o faz mover-se e nada tem de inteligente. Mas que seria esse pêndulo, se uma inteligência não houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego daquela força, para faze-lo andar com precisão? Do fato de não estar a inteligência no mecanismo do pêndulo e do de que ninguém a vê, seria racional deduzir-se que ela não existe? Apreciamo-la pelos seus efeitos.
15 A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo lhe atesta a inteligência e o saber. Quando um relógio vos dá, no momento preciso, a indicação de que necessitais, já vos terá vindo à mente dizer: aí está um relógio bem inteligente?
16 Outro tanto ocorre com o mecanismo do Universo: Deus não se mostra, mas se revela pelas suas obras.
7. — A existência de Deus é, pois, uma realidade comprovada não só pela revelação, como pela evidência material dos fatos. 2 Os povos selvagens nenhuma revelação tiveram; entretanto, creem instintivamente na existência de um poder sobre-humano; eles veem coisas que estão acima das possibilidades do homem e deduzem que essas coisas provêm de um ente superior à Humanidade. Não demonstram raciocinar com mais lógica do que os que pretendem que tais coisas se fizeram a si mesmas?
8. — Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. 2 Para compreendê-lo, ainda nos falta o sentido próprio, que só se adquire por meio da completa depuração do Espírito. 3 Mas, se não pode penetrar na essência de Deus, o homem, desde que aceite como premissa a sua existência, pode, pelo raciocínio, chegar a conhecer-lhe os atributos necessários, porquanto, vendo o que ele absolutamente não pode ser, sem deixar de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser.
4 Sem o conhecimento dos atributos de Deus, impossível seria compreender-se a obra da Criação; 5 esse o ponto de partida de todas as crenças religiosas e é por não se terem reportado a isso, como ao farol capaz de as orientar, que a maioria das religiões errou em seus dogmas. 6 As que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos deuses; as que não lhe atribuíram soberana bondade fizeram dele um Deus cioso, colérico, parcial e vingativo.
9. — Deus é a suprema e soberana inteligência. 2 É limitada a inteligência do homem, pois que não pode fazer, nem compreender tudo o que existe; a de Deus, abrangendo o infinito, tem que ser infinita. 2 Se a supuséssemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer o que o primeiro não faria e assim por diante, até ao infinito.
10. — Deus é eterno, isto é, não teve começo e não terá fim. 2 Se tivesse tido princípio, houvera saído do nada; 3 ora, não sendo o nada coisa alguma, coisa nenhuma pode produzir; 4 ou, então, teria sido criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. 5 Se lhe supuséssemos um começo ou fim, poderíamos conceber uma entidade existente antes dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, ao infinito.
11. — Deus é imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, nenhuma estabilidade teriam as leis que regem o Universo.
12. — Deus é imaterial, isto é, a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria; 2 de outro modo, não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria.
3 Deus carece de forma apreciável pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. 4 Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais conhecendo além de si mesmo, toma a si próprio por termo de comparação para tudo o que não compreende. 5 São ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e envolto num manto; elas têm o inconveniente de rebaixar o Ente supremo até às mesquinhas proporções da humanidade; 6 daí a lhe emprestarem as paixões humanas e a fazerem-no um Deus colérico e cioso não vai mais que um passo.
13. — Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo, sempre se poderia conceber uma entidade mais poderosa e assim por diante, até chegar-se ao ser cuja potencialidade nenhum outro ultrapassasse, e esse então, é que seria Deus.
14. — Deus e soberanamente justo e bom. 2 A providencial sabedoria das leis divinas se revela nas mais pequeninas coisas, como nas maiores, não permitindo essa sabedoria que se duvide da sua justiça, nem da sua bondade.
3 O fato de ser infinita uma qualidade, exclui a possibilidade de uma qualidade contrária, porque esta a apoucaria ou anularia. 4 Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais insignificante parcela de malignidade, nem o ser infinitamente mau conter a mais insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de um negro absoluto, com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco absoluto com a mais pequenina mancha preta.
5 Deus, pois, não poderia ser simultaneamente bom e mau, porque então, não possuindo qualquer dessas duas qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas ao seu capricho e para nenhuma haveria estabilidade. 6 Não poderia ele, por conseguinte, deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau; ora, como suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua bondade e da sua solicitude, concluir-se-á que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar de ser Deus, ele necessariamente tem de ser infinitamente bom.
7 A soberana bondade implica a soberana justiça, porquanto, se ele procedesse injustamente ou com parcialidade numa só circunstância que fosse, ou com relação a uma só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e, em consequência, já não seria soberanamente bom.
15. — Deus é infinitamente perfeito. 2 É impossível conceber-se Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, faz-se mister que ele seja infinito em tudo.
3 Sendo infinitos, os atributos de Deus não são suscetíveis nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. 4 Se lhe tirassem a qualquer dos atributos a mais mínima parcela, já não haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais perfeito.
16. — Deus é único. 2 A unicidade de Deus é consequência do fato de serem infinitas as suas perfeições. 3 Não poderia existir outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao poder desse outro e, então, não seria Deus. 4 Se houvesse entre ambos igualdade absoluta, isso equivaleria a existir, de toda eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder. Confundidos assim, quanto à identidade, não haveria, em realidade, mais que um único Deus. 5 Se cada um tivesse atribuições especiais, um não faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade perfeita entre eles, pois que nenhum possuiria a autoridade soberana.
17. — A ignorância do princípio de que são infinitas as perfeições de Deus foi que gerou o politeísmo, culto adotado por todos os povos primitivos, que davam o atributo de divindade a todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes à humanidade; 2 mais tarde, a razão os levou a reunir essas diversas potências numa só. 3 Depois, à proporção que os homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos, retiraram dos símbolos, que haviam criado, a crença que implicava a negação desses atributos.
18. — Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser que o excedesse no que quer que fosse, ainda que apenas na grossura de um cabelo, é que seria o verdadeiro Deus; 2 para que tal não se dê, indispensável se torna que ele seja infinito em tudo.
3 É assim que, comprovada pelas suas obras a existência de Deus, por simples dedução lógica se chega a determinar os atributos que o caracterizam.
19. — Deus é, pois, a inteligência suprema e soberana, é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não pode ser diverso disso.
2 Tal o eixo sobre que repousa o edifício universal; 3 esse o farol cujos raios se estendem por sobre o Universo inteiro, única luz capaz de guiar o homem na pesquisa da verdade; orientando-se por essa luz, ele nunca se transviará. 4 Se, portanto, o homem há errado tantas vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado.
5 Tal também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas; para apreciá-las, dispõe o homem de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar a si mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que tenda não tanto a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade.
6 Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há de verdadeiro o que não se afaste, nem um til, das qualidades essenciais da Divindade. 7 A religião perfeita será aquela de cujos artigos de fé nenhum esteja em oposição àquelas qualidades; aquela cujos dogmas todos suportem a prova dessa verificação sem nada sofrerem.
20. — A providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. 2 Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo preside, mesmo às coisas mais mínimas; é nisto que consiste a ação providencial.
3 “Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, imiscuir-se em pormenores ínfimos, preocupar-se com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo?” — Esta a interrogação que a si mesmo dirige o incrédulo, concluindo por dizer que, admitida a existência de Deus, só se pode admitir, quanto à sua ação, que ela se exerça sobre as leis gerais do Universo; que este funcione de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais toda criatura se acha submetida na esfera de suas atividades, sem que haja mister a intervenção incessante da Providência.”
21. — No estado de inferioridade em que ainda se encontram, só muito dificilmente podem os homens compreender que Deus seja infinito; vendo-se limitados e circunscritos, eles o imaginam também circunscrito e limitado; imaginando-o circunscrito, figuram-no quais eles são, à imagem e semelhança deles.
2 Os quadros em que o vemos com traços humanos não contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele adoram mais a forma que o pensamento. 3 Para a maioria, é ele um soberano poderoso, sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus; 4 tendo restritas suas faculdades e percepções, não compreendem que Deus possa e se digne de intervir diretamente nas pequeninas coisas.
22. — Impotente para compreender a essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais do que uma ideia aproximativa, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que, ao menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece impossível.
2 Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos; 3 sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente, por meio tão só das forças materiais; se, porém, o supusermos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e sentirá.
23. — As propriedades do fluido perispirítico dão-nos disso uma ideia. 2 Ele não é de si mesmo inteligente, pois que é matéria, mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do Espírito.
3 Esse fluido não é o pensamento do Espírito; é, porém, o agente e o intermediário desse pensamento; 4 sendo quem o transmite, fica, de certo modo, impregnado do pensamento transmitido; 5 e, na impossibilidade em que nos achamos de o isolar, a nós nos parece que ele, o pensamento, faz corpo com o fluido, que com este se confunde, como sucede com o som e o ar, de maneira que podemos, a bem dizer, materializá-lo. 6 Assim como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.
24. — Seja ou não assim no que concerne ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente, quer por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão à nossa inteligência, figuremo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente que enche o universo infinito e penetra todas as partes da criação: a Natureza inteira mergulhada no fluido divino; 2 ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele, cada átomo desse fluido, se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude; nenhum ser haverá, por mais ínfimo que o suponhamos, que não esteja saturado dele. 3 Achamo-nos então, constantemente, em presença da Divindade; nenhuma das nossas ações lhe podemos subtrair ao olhar; o nosso pensamento está em contato ininterrupto com o seu pensamento, havendo, pois, razão para dizer-se que Deus vê os mais profundos refolhos do nosso coração. 4 Estamos nele, como ele está em nós, segundo a palavra do Cristo. ( † )
5 Para estender a sua solicitude a todas as criaturas, não precisa Deus lançar o olhar do alto da imensidade; 6 as nossas preces, para que ele as ouça, não precisam transpor o espaço, nem ser ditas com voz retumbante, pois que, estando de contínuo ao nosso lado, os nossos pensamentos repercutem nele. 7 Os nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.
25. — Longe de nós a ideia de materializar a Divindade; a imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa de uma comparação apropriada a dar de Deus uma ideia mais exata do que os quadros que o apresentam debaixo de uma figura humana; destina-se ela a fazer compreensível a possibilidade que tem Deus de estar em toda parte e de se ocupar com todas as coisas.
26. — Temos constantemente sob as vistas um exemplo que nos permite fazer ideia do modo por que talvez se exerça a ação de Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, conseguintemente, do modo por que lhe chegam as mais sutis impressões de nossa alma. Esse exemplo tiramo-lo de certa instrução que a tal respeito deu um Espírito.
27. — O homem é um pequeno mundo, que tem como diretor o Espírito e como dirigido o corpo. 2 Nesse universo, o corpo representará uma criação cujo Deus seria o Espírito. (Compreendei bem que aqui há uma simples questão de analogia e não de identidade.) 3 Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos, as articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode dizer, localizadas em pontos especiais do referido corpo; se bem seja considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e diferente, a ninguém é lícito supor que se possam produzir movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que ocorra. 4 Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito as sente todas, distingue, analisa, assina a cada uma a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido perispirítico.
5 “Análogo fenômeno ocorre entre Deus e a Criação. 6 Deus está em toda parte, na Natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo; 7 todos os elementos da Criação se acham em relação constante com ele, como todas as células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual; 8 não há, pois, razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam de maneira idêntica, num e noutro caso.
9 “Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. 10 Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito ressente todas as manifestações, as distingue e localiza. 11 As diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada um o que lhe diz respeito.
12 “Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador.” (Quinemant — Sociedade Espírita de Paris, 1867.)
28. — Compreendemos o efeito: já é muito; 2 do efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela do efeito; 3 escapa-nos, porém, a sua essência íntima, como a da causa de uma imensidade de fenômenos. 4 Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. 5 Será então racional neguemos o princípio divino, por que não o compreendemos?
29. — Nada obsta a que se admita, para o princípio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a irradiar incessantemente, inundando o Universo com seus eflúvios, como o Sol com a sua luz. 2 Mas onde esse foco? É o que ninguém pode dizer. 3 Provavelmente, não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação, sendo também provável que percorra constantemente as regiões do espaço sem-fim. 4 Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, em Deus há de ser sem limites essa faculdade. 5 Enchendo Deus o Universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as partes onde a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, donde o poder dizer-se que está em toda parte e em parte nenhuma.
30. — Diante desses problemas insondáveis, cumpre que a nossa razão se humilhe. 2 Deus existe: disso não poderemos duvidar; 3 é infinitamente justo e bom: essa a sua essência; 4 a tudo se estende a sua solicitude: compreendemo-lo; 5 só o nosso bem, portanto, pode ele querer, donde se segue que devemos confiar nele: é o essencial; 6 quanto ao mais, esperemos que nos tenhamos tornado dignos de o compreender.
31. — Se Deus está em toda parte, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Tais as perguntas que se formulam todos os dias.
2 À primeira é fácil responder; por serem limitadas as percepções dos nossos órgãos visuais, elas os tornam inaptos à visão de certas coisas, mesmo materiais. 3 É assim que alguns fluidos nos fogem totalmente à visão e aos instrumentos de análise; entretanto, não duvidamos da existência deles. 4 Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força.
32. — Os nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas de essência espiritual; unicamente com a visão espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; 2 somente a nossa alma, portanto, pode ter a percepção de Deus. 3 Dar-se-á que ela o veja logo após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos podem instruir. 4 Por elas sabemos que a visão de Deus constitui privilégio das mais purificadas almas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório terrestre, se encontram no grau de desmaterialização necessária a tal efeito. 5 Uma comparação vulgar o tornará facilmente compreensível.
33. — Uma pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz difusa, percebe que está fazendo sol. Se entra a subir a montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro se irá tornando mais claro, a luz cada vez mais viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Só depois que se haja elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja perfeitamente límpido, ela o contemplará em todo o seu esplendor.
2 O mesmo se dá com a alma. O envoltório perispirítico, conquanto nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela, verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções. 3 Ele, porém, se espiritualiza, à proporção que a alma se eleva em moralidade. 4 As imperfeições da alma são quais camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão; cada imperfeição de que ela se desfaz é uma mácula a menos; todavia, só depois de se haver depurado completamente é que goza da plenitude das suas faculdades.
34. — Sendo Deus a essência divina por excelência, unicamente os Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização o podem perceber. 2 Pelo fato de não o verem, não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes dele do que os outros; 3 esses Espíritos, como os demais, como todos os seres da Natureza, se encontram mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós o estamos na luz; 4 o que há é que as imperfeições daqueles Espíritos são vapores que os impedem de vê-lo; quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer; 5 para isso, não lhes é preciso subir, nem procurá-lo nas profundezas do infinito; desimpedida a visão espiritual das belidas que a obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se achem, mesmo da Terra, porquanto Deus está em toda parte.
35. — O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada vez algumas impurezas. 2 Com o abandonar o seu invólucro corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara; não o veem, mas compreendem-no melhor: a luz é menos difusa. 3 Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes proíbe respondam a uma dada pergunta não é que Deus lhes apareça, ou dirija a palavra, para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo, não; eles, porém, o sentem; recebem os eflúvios do seu pensamento, como nos sucede com relação aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos.
36. — Nenhum homem, conseguintemente, pode ver a Deus com os olhos da carne. 2 Se essa graça fosse concedida a alguns, só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. 3 Tal privilégio, aliás, exclusivamente pertenceria a almas de eleição, encarnadas em missão, que não em expiação. 4 Mas, como os Espíritos da mais elevada categoria refulgem de ofuscante brilho, pode dar-se que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma pelo seu soberano.
37. — Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um foco de resplendente luz? 2 A linguagem humana é impotente para dizê-lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de nos facultar uma ideia de tal coisa; somos quais cegos de nascença a quem procurassem inutilmente fazer compreendessem o brilho do Sol. 3 A nossa linguagem é limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a dos povos mais civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência muito restrita para os compreender e a nossa vista, por muito fraca, ficaria deslumbrada.