As cartas que Paulo endereça às comunidades e indivíduos constituem um dos mais importantes conjuntos de textos do Novo Testamento. Desde a antiguidade, foram objeto de estudo e reflexão, sendo considerados, por alguns, como basilares para o entendimento e a prática do Cristianismo. Basta que nos lembremos que Marcião de Sinope (85 d.C. a 160 d.C.), † o primeiro a propor um conjunto de textos canônicos, incluía na sua relação, exclusivamente, dez das cartas de Paulo e uma versão resumida do Evange1ho de Lucas. Sem adentrarmos nas ideias que Marcião defendia, muitas delas bastante controversas; e que o levariam a constituir um isolado número de seguidores, a sua iniciativa refletia dois importantes aspectos do Cristianismo nascente. O primeiro, a necessidade cada vez maior, em função da diversidade de textos que começavam a surgir, de se indicar quais seriam mais fiéis à proposta do Evangelho e portanto, deveria ser objeto de estudo e reflexão dos cristão e, o segundo, a importância das cartas de Paulo.
A natureza das cartas de Paulo precisa ser compreendida nas suas características próprias, a fim de que a sua contribuição para o Cristianismo de ontem e de hoje possa ser compreendida e resgatada. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, embora contenham elementos importantes da doutrina cristã, expostos com todo o vigor da inteligência e bagagem que a condição de doutor da lei conferiam a Paulo, esses escritos são, sobretudo, cartas. Nesse sentido, a motivação principal está relacionada menos com a construção de tratados teológicos do que com elementos da vivência e da prática cristã, exceção feita, talvez, à epístola aos Hebreus e parte a endereçada aos Romanos. Os temas que surgem são, frequentemente, relacionados ao dia a dia das comunidades: o uso da liberdade, abordado emGálatas; a organização das comunidades, orientada em Tito e I Timóteo; as expectativas em relação ao retorno de Jesus em I e II Tessalonicenses; o retorno de um escravo fugitivo ao seu senhor, no quase bilhete a Filêmon; as condutas no lar e na família em II Timóteo e Efésios, são alguns exemplos de temáticas e das motivações desses textos. Como não poderia deixar de ser, encontraremos, também, nessas cartas, registros da vida de Paulo e de seus companheiros de trabalho; de pessoas com quem ele convivia; do confronto com os adversários; de suas viagens e desafios pelas várias localidades por onde passou, compreendendo, assim, um importante registro biográfico do convertido de Damasco e do Cristianismo enquanto movimento nascente.
As características e conteúdos das cartas de Paulo deixam entrever que o Cristianismo, nos seus primórdios, era constituído por pessoas que buscavam seguir Jesus, mas que, como é natural, traziam suas dúvidas, suas ideias próprias, nem sempre concordantes com a proposta do Mestre, interesses louváveis ou não e entendimento mais ou menos limitado da Boa-Nova. Lidar com toda essa diversidade, a partir das bases cristãs, e prover orientações que levassem o Evangelho ao coração, à mente e às ações das pessoas nas diversas posições, dentro e fora da comunidade, era, e ainda é, o objetivo desses textos. Além disso, o fato de Paulo escrever tanto para comunidades quanto para indivíduos, reflete a realidade de que a proposta, trazida e vivida por Jesus, só pode ser efetivamente internalizada, na conjugação dessas duas dimensões, social e individual.
Muito embora tenha como pano de fundo a cultura e os aspectos sociais do Império Romano do primeiro século, o conteúdo dessas cartas possui aplicabilidade em contextos muito mais amplos e atemporais. Isso porque os maiores desafios da compreensão e da prática da Boa-Nova são encontrados no campo dos nossos sentimentos, ideias e relações. Por isso, esses textos permanecem como fundamentais para todos aqueles que pretendem reviver a mensagem do Cristo em si mesmos e nos ambientes em que se encontram, no ontem, no hoje e no amanhã.
A ordem em que as cartas aparecem no Novo Testamento não reflete sua cronologia, mas, principalmente, o tamanho de cada texto, divididos em três grupos: as cartas endereças às
comunidades, as endereçadas a indivíduos e a carta aos Hebreus. Para demonstrar isso, o gráfico a seguir apresenta a quantidade de versículos de cada uma das cartas de Paulo, na ordem em que aparecem no Novo Testamento.
GRÁFICO 1 - Quantidade de versículos das Cartas de Paulo.
É importante destacar, também, que Paulo é o autor que possui a maior parte de escritos incluídos no Novo Testamento, tanto em número (14 dos 27 textos são a ele atribuídos), quanto em quantidade de versículos. Dos 7.947 versículos do Novo Testamento, 2.335 são atribuídos a Paulo, compreendendo 29,4% do Novo Testamento. O segundo autor é Lucas, com 27,1% e o terceiro é João com 17,7% (considerando o Evangelho de João, suas cartas e o Apocalipse).
Como cada carta possui elementos próprios, incluímos, antes dos comentários de Emmanuel, pequenas introduções, com os seguintes objetivos: a) familiarizar o leitor com alguns aspectos do texto e dos debates existentes sobre ele; b) apresentar, resumidamente, alguns pontos que a perspectiva espírita e o material disponibilizado por Emmanuel agregam ao entendimento e ao debate sobre os textos; c) despertar no leitor o interesse de ler, reler e estudar essas cartas. Este último, o mais importante. Muito mais poderia ser escrito, contudo, isso fugiria ao propósito do presente trabalho.
Paulo de Tarso e seus colaboradores encarnados e desencarnados foram responsáveis pelo mais extenso trabalho de divulgação da mensagem de Jesus no primeiro século. O testemunho dessas almas abnegadas, que abriram mão de todos os interesses pessoais em prol de levar a Boa-Nova aos corações e mentes dos seus contemporâneos, deu origem ao primeiro movimento de disseminação do Evangelho. Por isso, qualquer que seja a corrente religiosa que tenha a pretensão de fazer reviver a mensagem de Jesus, em qualquer época da Humanidade, terá, nessas cartas, um testemunho e um contributo precioso para orientar as suas atividades, com bases em uma comunhão de pensamentos com o próprio Cristo. n
A nossa gratidão a esses Espíritos que, através do suor e trabalho, do sacrifício e da exemplificação, nos possibilitaram compreender o sentido da frase: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” n
Fac-símile do comentário mais antigo a fazer parte da coleção O Evangelho por Emmanuel, referente a Jo 10:30, publicado em novembro de 1940 na revista Reformador.
N.E.: Essa mensagem foi publicada no 4º volume da coleção, mas, dado ao seu conteúdo e significação, optamos por incluí-la também no início de cada volume.
[1] Ver: Introdução à primeira carta aos Tessalonicenses.
[2] Gálatas, 2:20
Saulo Cesar Ribeiro da Silva