O evangelho segundo Mateus é o primeiro dos 27 textos que compõem o Novo Testamento. Esses escritos não eram reunidos em um conjunto como os temos hoje em nossas bíblias. n Isso só ocorreu a partir de um processo relativamente longo e complexo denominado canonização. Entretanto, desde quando surgiram as primeiras listas e menções ao que deveria ser lido e estudado nas comunidades primitivas, Mateus aparece quase sempre em primeiro lugar.
Os originais desse evangelho, assim como de todo o Novo Testamento, não sobreviveram até os nossos dias. O que temos hoje de mais próximo dos primeiros escritos são cópias feitas principalmente em grego koinè (comum), que datam, salvo pequenos fragmentos de manuscritos, do século II em diante.
Acredita-se que a redação final do Evangelho segundo Mateus tenha ocorrido por volta do ano 70 e que o seu compilador tenha utilizado como fontes outros textos mais antigos que transitavam em sua época, como: o evangelho de Marcos ou uma versão primitiva dele; um conjunto de ditos de Jesus denominado na atualidade como fonte Q, da qual não temos nenhum manuscrito; e outras histórias e relatos transmitidos por escrito e pela tradição oral.
O autor
Embora as tradições antigas atribuam ao apóstolo Mateus a autoria desse evangelho, nenhuma indicação existe no texto que possa atestar essa afirmação de maneira direta. O nome Mateus aparece uma única vez nesse evangelho, referindo-se ao coletor de impostos que recebe o chamado de Jesus (9.9). Esse coletor de impostos nos evangelhos de Marcos (Mc 2.14) e Lucas (Lc 5.27) é chamado de Levi, razão pela qual acredita-se que Mateus e Levi sejam a mesma pessoa. Humberto de Campos, no livro Boa Nova, relata que havia um grau de parentesco entre esse apóstolo e Jesus. n É possível considerar que Mateus, em decorrência da cultura e dos recursos que o cargo de coletor de impostos lhe conferia, tenha sido um dos mais habilitados a registrar os ensinos e fatos sobre a vida de Jesus.
É interessante notar que Emmanuel, no livro Paulo e Estêvão, relata que quando Paulo de Tarso, após seu encontro com Jesus na estrada para Damasco, recebe a visita de Ananias, este trazia “alguns pergaminhos amarelentos, nos quais conseguira reunir alguns elementos da tradição apostólica”. n Nesses pergaminhos, havia parte do que hoje conhecemos como O Evangelho segundo Mateus. Segundo o mesmo relato, “[…] somente na igreja do Caminho, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral das anotações de Levi”. n O quanto dessas anotações compõe o que chegou até nossos dias como Evangelho segundo Mateus é uma questão em aberto.
O texto que temos hoje foi, quase certamente, compilado por alguém que conhecia as tradições e práticas judaicas e destinado a um grupo que também possuía tal conhecimento. Isso porque, o compilador, em passagens como 15.2, em que Jesus é questionado sobre a razão pela qual os discípulos violam a tradição dos antigos, não lavando as mãos quando comem, não se preocupa em explicar a que tradições e hábitos se refere. É provável que o texto de Mateus não inclua essa explicação por supor que seus leitores estivessem familiarizados com tais práticas. Em Marcos (Mc 7.1 a 13), ao contrário, há uma explicação relativamente longa desses costumes. Outro ponto que apoia essa ideia é a presença de elementos específicos da linguagem semítica como, por exemplo, a expressão “reino dos Céus”, comumente utilizada para referir-se ao Altíssimo, cujo nome não deveria ser pronunciado. Ela aparece 27 vezes no Novo Testamento e todas elas nesse evangelho. Nas passagens paralelas dos evangelhos de Lucas e Marcos, essa expressão é substituída por “reino de Deus”.
Embora os manuscritos antigos não tenham divisões de capítulos e versículos e nem mesmo espaço entre as palavras, o texto que encontramos hoje está dividido em 28 capítulos. É o segundo texto mais longo dos quatro evangelhos, com 1.071 versículos, perdendo em tamanho apenas para o Evangelho segundo Lucas, com 1.151.
Características distintivas
Muito do que possuímos de relatos acerca da vida e ensinos de Jesus tem suas origens, exclusivamente, no evangelho de Mateus. Por exemplo: a narrativa da visita dos sábios do oriente por ocasião do nascimento de Jesus (2.1 a 12); a totalidade das bem aventuranças e outras partes do Sermão do Monte (5.3 e ss); a parábola do joio e do trigo e sua explicação por Jesus (13.24 a 30; 36 a 43); o episódio em que Pedro caminha sobre as águas (14.28-32); a ressurreição de muitos santos quando da crucificação de Jesus (27.52 a 53); e o fim trágico de Judas (27.3 a 10), são narrativas encontradas somente nesse evangelho.
É nele que encontramos o maior número de menções e referências ao Velho Testamento. Talvez por isso também tenha sempre figurado em primeiro lugar, representando uma ponte entre a mensagem de Jesus e a da primeira aliança. Essa ponte é bem evidenciada em dois aspectos:
Em primeiro lugar, Mateus apresenta Jesus como alguém que valoriza os costumes e leis judaicas, chegando a afirmar que “Não penseis que vim destruir a Lei ou os Profetas, não vim destruir mas cumprir” (5.17). Dessa forma, Jesus aparece como aquele que cumpre na sua integridade a fidelidade a Deus, sendo, portanto, o “filho do homem” modelo, que se mantém fiel onde outros falharam, demonstrando, ao mesmo tempo, a natureza dessa fidelidade e os resultados que dela decorrem.
Em segundo lugar, é nesse evangelho que vamos encontrar o maior número de citações do Velho Testamento, trazidas com o propósito de demonstrar que Jesus apresenta as qualidades daquele que era esperado como o Messias do povo judeu. n
Mateus também traz um duplo aspecto de particularismo e universalismo. Ao mesmo tempo em que ele reconhece as profundas vinculações da mensagem de Jesus para com o povo judeu (10.5-7), ele amplia seu alcance estendendo-a a todos os povos da Terra (28.19). O Cristo não é, portanto, somente o redentor do povo judeu, mas seus ensinos deverão ser ouvidos e praticados em todas as nações.
Por último, é possível reconhecer, nesse evangelho, traços marcantes de esperança e consolo para os pequenos e excluídos, para os que sofrem e choram. Jesus chega a se auto identificar com um deles e o bem que se lhes fizer é também a Ele que se o faz (25.40). Há, assim, uma importante revisão das expectativas que buscam estabelecer relações entre as conquistas materiais e as vitórias espirituais. É na Sua mensagem e exemplo que se encontra o caminho para o repouso das almas cansadas e sobrecarregadas (11.25 a 27). O Cristo que nasce é a esperança que se renova para toda a humanidade revelando o sentido profundo da profecia que diz: e ele se chamará Εμμανουήλ (Emmanuel), que traduzido significa Deus está conosco (1.23).
Saulo Cesar Ribeiro da Silva
[1] Nota do coordenador: A própria palavra bíblia deriva do vocábulo grego βίβλια (bíblia) que significa livros ou escritos.
[2] Nota do coordenador: Boa Nova, capítulo 5, “Os discípulos”.
[3] Nota do coordenador: Paulo e Estêvão, segunda parte, capítulo 1, “Rumo ao deserto”
[4] Nota do coordenador: Idem
[5] Nota do coordenador: Há certo consenso de que pelo menos dez citações de Mateus referem-se ao cumprimento de profecias existentes no Velho Testamento: 1.23; 2.15; 2.18; 2.23; 4.15-16; 8.17; 12.18-21; 13.55; 21.5 e 17.9 e 10.