Um punhado de versos recolhido no arquivo de Chico Xavier — Bilac, Augusto dos Anjos, Cármen Cinira — Uma súplica da cigarra morta — No rumo do impressionante.
PEDRO LEOPOLDO, † 23 (Do enviado especial do GLOBO, Clementino de Alencar) — Recolhido ao seu quarto de hotel, logo após ao primeiro encontro com Chico Xavier, na Coletoria, † o repórter entrega-se na tranquilidade da tarde à leitura daquele verdadeiro arquivo de mensagens de Além-Túmulo que o médium lhe deixara em mãos.
Nossos olhos correm, a um tempo curiosos e ansiosos, sobre aquelas páginas incríveis que o caixeiro bisonho e humilde afirma ter recebido em transe do mundo das sombras invisíveis que ficam para lá dos limites das nossas percepções normais.
Prosadores e poetas, com cujo Espírito julgávamos ter perdido definitivamente todo o contato que não fosse o das obras que nos deixaram, ali de novo, e imprevistamente, nos falam numa linguagem que — mesmo sem perder, em muitos, as peculiaridades de estilo inconfundíveis — traz um reflexo de estranhas claridades e um mágico sabor de purificação.
São os vates familiares à nossa alma e ao nosso coração que voltam — verdade? ilusão? — ao alcance da nossa sensibilidade para, de novo alvoroçarem, como dantes na fase inesquecida de suas manifestações terrenas o mundo arcano de nossas emoções.
Bilac, Emílio, Hermes Fontes, Cruz e Souza, Antônio Nobre, Quental, Carmen Cinira, Augusto dos Anjos e outros, muitos outros, ali novamente cantam e sonham, sofrem e esperam, na expressão daquelas páginas ditas psicografadas depois de sua morte.
Devemos crer, nesse parnaso do Além?
Esqueçamos, por ora, as dúvidas. Fique para mais tarde a análise. Agora, deixemos cair, por momentos, sobre essas páginas, o olhar encantado da ilusão.
Jesus ou Barrabás? n
Aqui, damos com o nome de Bilac, ao pé de um soneto. O fecho parece-nos um pouco fraco, mas, no conjunto, encontramos ainda o ritmo solene do cantor da “Tarde” - Google Books.
“Jesus ou Barrabás?” é o título que encima os versos:
Sobre a fronte da turba há um sussurro abafado.
A multidão inteira, ansiosa, se congrega,
Surda à lição do amor, implacável e cega,
Para a consumação dos festins do pecado.
— “Crucificai-o!” — exclama… Um lamento lhe chega
Da Terra que soluça e do céu desprezado.
— “Jesus ou Barrabás?” — pergunta, inquire o brado
Da justiça sem Deus, que trêmula se entrega.
— “Jesus!… Jesus!… Jesus…” — e a resposta perpassa
Como um sopro cruel do Aquilão da desgraça,
Sem que o Anjo da paz amaldiçoe ou gema…
E debaixo do apodo e ensanguentada a face,
Toma da cruz da dor, para que a dor ficasse
Como a glória da vida e a vitória suprema.
Olavo Bilac
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“Dentro da noite” n
Depois, Augusto dos Anjos, sempre atormentado, complexo, profundo:
É noite. À Terra volvo. E, lúcido, entro
Em relação com o mundo onde concentro
O espírito na queixa atordoadora
Da prisioneira, da perpétua grade,
— A misérrima e pobre Humanidade,
Aterradoramente sofredora!
Ausculto a humana dor, que hórrida sinto,
Dalma quebrando o cárcere do instinto,
Buscando ávida a luz. Por mais que sonde,
Mais o enigma do mundo se lhe aviva,
Em diferenciação definitiva,
Mais a luz desejada se lhe esconde!
É o quadro mesológico, tremendo,
De tudo o que ficou no abismo horrendo
Da tenebrosa noite dos gemidos;
São os uivos dos instintos jamais fartos,
As dores espasmódicas dos partos,
A desgraça dos úteros falidos.
Augusto dos Anjos
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Queixa-se, depois, o poeta morto da tortura da hiperestesia que o faz ainda sentir a emanação “do ácido sulfídrico das tumbas” e o “Tóxico e o veneno”, dos “infortúnios da Terra”.
“Cármen Cinira! Cármen Cinira!” n
Ao fim desse drama de sensações tremendas que Augusto dos Anjos nos traça, chegamos, com alívio, ao estro delicado de Cármen Cinira:
“Cármen Cinira! Cármen Cinira!
Que é da minha cigarra cantadeira?
Embalde te procuro.
Por que cantaste assim a vida inteira,
Cigarra distraída do futuro?
Perturbada,
Aturdida,
Busco a mim mesma aqui nestoutra vida…”
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Sente, então, a poetisa que outra existência se revela após a Terra. E, dirigindo-se ao Senhor:
“Eu te agradeço a paz que já me deste,
Mas eis que ainda te imploro comovida,
Porque me sinto em fraca segurança;
Deixa que eu guarde ainda nesta vida
Meu escrínio de estrelas da Esperança.”
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Humberto…
E os olhos da ilusão continuam sofregamente a correr sobre aquelas páginas de confidência e de mistério…
Outros poetas passam outros tormentos e outras redenções. Depois os versos cessam, e a prosa esparrama-se sobre a folha branca.
Humberto…
Nosso olhar desprende-se do papel um momento e alonga-se pela janela afora, por sobre o casario, até ao dorso da colina distante, por onde descem à tarde os carreiros de Matozinhos.
Humberto de Campos…
Nas suas “Memórias inacabadas”, esse nos diz, falando pelas lembranças da sua adolescência:
“Eu tinha dezesseis anos e, desde os oito ou nove, a morte e as cousas de além da morte constituíam a minha constante preocupação”.
E mais adiante:
“O que me afligia e atordoava não era todavia, o pavor do Inferno católico, o castigo na outra vida, a privação possível da bem-aventurança assegurada aos que tivessem fé. Os meus tormentos neste mundo já eram tantos que pouco me preocupavam os do outro. O que me perturbava e desorientava era o conhecimento, que eu tomara, da situação miserável do homem na Terra e no Universo. Eu tinha crescido na certeza de que o Homem era o Rei das coisas criadas, e de que tudo girava, no mundo, em torno dele. E eis que, lendo os mestres, conversando com os espíritos culminantes do meu século, verificava que os mais esclarecidos, os mais fortes, eram, em relação aos fenômenos da Vida e da Morte, tão ignorantes quanto eu! De que tinham servido, então, os milênios rolados desde a origem das cousas para o abismo dos Tempos? Que tinham feito filósofos e cientistas, homens de pesquisa e homens de meditação, que eu, chegando tão tarde no planeta, lançava, ainda e debalde, o grito surdo do meu espírito, pedindo a todos os ventos uma voz enérgica e segura que me desvendasse a Verdade?”
O ciclo da sua vida terrena encerrou-se, não faz muito. A morte já lhe fez a sua revelação. E agora, aqui o temos de novo a falar-nos do seio dos mistérios sombrios que lhe inquietavam as cismas daqueles anos distantes.
Nossos olhos recolhem-se, caem outra vez sobre o papel e leem:
Judas Iscariotes
(Comunicação mediúnica, recebida em P. Leopoldo, no dia 19 de abril de 1935) n
Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. † A antiga capital da Judeia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além, descansa Getsêmani, † onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia; acolá, está o Gólgota sagrado, e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Cedron silencioso, † como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, † quisessem esconder das vistas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.
Foi assim, numa destas noites, que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.
Os Espíritos podem vibrar em contato direto com a História. Buscando uma relação mais íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e, no meio das fatalidades que pesam sobre o império morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Cedron, não longe talvez do lugar sagrado onde o Salvador esteve com os discípulos, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se cativante simpatia.
— Sabe quem é este? — murmurou alguém aos meus ouvidos. — Este é Judas…
— Judas?
— Sim. Os Espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se repentinamente transportados aos tempos idos. Então, mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho…
Aquela figura de homem magnetizava-me. Não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. Meu atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração ligaram-se, para que eu o entrevistasse, procurando ouvi-lo:
— O senhor é de fato o ex-filho de Iscariotes? — perguntei.
— Sim, sou Judas — respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. — Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada meditando no juízo dos homens transitórios…
— É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento a respeito da sua personalidade, na tragédia da condenação de Jesus?
— Em parte… Os escribas que redigiram os Evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que, acima dos meus atos, predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galileia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer às aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sinedrim † desejava o reino do Céu, pelejando por Jeová a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas, com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas ideias socialistas do Mestre; porém, o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória com o seu desprendimento das riquezas. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder, já que em seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei, então, uma revolta surda, como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica, como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, † o Grande, depois de vencer Maxêncio † às portas de Roma, o que, aliás, apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
— E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
— Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica, submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma, aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial [v. Joana d’Arc], onde, imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição, deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência…
— E está hoje meditando nos dias que se foram… — pensei com tristeza.
— Sim… estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas, que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus passos divinos. Vejo-o ainda na cruz, entregando a Deus o seu Destino… Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que o abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que o ampararam no doloroso transe. Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor. Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra… Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência, no tribunal dos suplícios redentores.
Quanto ao Divino Mestre — continuou Judas com os seus prantos —, infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque, se recebi trinta moedas vendendo-o aos seus algozes, há muito séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo, a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado…
— É verdade — concluí — e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-lo.
Judas afastou-se, tomando a direção do Santo Sepulcro, e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Cedron rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto. — Humberto de Campos.
No rumo do impressionante
A essa, segue-se outra crônica, intitulada “Na mansão dos mortos”, que enviaremos depois. [v. Cap. 10]
A noite já chegara. Fechamos a pasta. O fotógrafo apanhou a máquina; saímos, rumo à casa de Chico Xavier.
E ali, à luz fraca de sua residência pobre, ele nos fez a narrativa impressionante da sua vida e da sua iniciação espírita.
Clementino de Alencar
[1] Essa mensagem foi publicada originalmente em 1931 pela FEB e é a 1ª do 48º capítulo do
livro “Parnaso de Além-Túmulo”
[2] Essa mensagem foi publicada originalmente em 1931 pela FEB e é a 10ª do 15º capítulo do
livro “Parnaso de Além-Túmulo”
[3] Excertos da poesia Era uma vez, publicado no livro Parnaso de Além-Túmulo
[4] Aqui reproduzimos o texto que foi revisado, posteriormente, pelo Autor espiritual, para o lançamento dos livros “Palavras do Infinito” (LAKE, São Paulo, SP, 1ª edição, 1935) e Crônicas de Além-Túmulo (FEB, Rio, RJ, 1ª edição, 1937.) (Nota do org.)