O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice |  Princípio  | Continuar

Boa nova — Humberto de Campos


25

A última ceia

1 Reunidos os discípulos em companhia de Jesus, no primeiro dia das festas da Páscoa, ( † ) como de outras vezes, o Mestre partiu o pão com a costumeira ternura. ( † ) Seu olhar, contudo, embora sem trair a serenidade de todos os momentos, apresentava misterioso fulgor, como se sua alma, naquele instante, vibrasse ainda mais com os Altos Planos do invisível.
Os companheiros comentavam com simplicidade e alegria os sentimentos do povo, enquanto o Mestre meditava, silencioso.

2 Em dado instante, tendo-se feito longa pausa entre os amigos palradores, o Messias acentuou com firmeza impressionante:
— Amados, é chegada a hora em que se cumprirá a profecia da Escritura. ( † ) Humilhado e ferido, terei de ensinar em Jerusalém a necessidade do sacrifício próprio, para que triunfe definitivamente a verdade. O mundo há conhecido apenas uma espécie de vitória, tão passageira quanto as edificações do egoísmo ou do orgulho humano. Os homens têm aplaudido, em todos os tempos, as tribunas douradas, as marchas retumbantes dos exércitos que se glorificaram com despojos sangrentos, os grandes ambiciosos que dominaram à força o espírito inquieto das multidões; entretanto, eu vim de meu Pai a fim de ensinar como triunfam os que tombam no mundo, cumprindo um sagrado dever de amor, como mensageiros de um mundo melhor, onde reinam o bem e a verdade. Minha vitória é a dos que sabem ser derrotados entre os homens, para triunfarem com Deus, na divina construção de suas obras, imolando-se, com alegria, para glória de uma vida maior.

3 Ante a resolução expressa naquelas palavras firmes, os companheiros se entreolharam, ansiosos.
O Messias continuou:
— Não vos perturbeis com as minhas afirmativas, porque, em verdade, um de vós outros me há de trair!… As mãos, que eu acariciei, voltam-se agora contra mim. Todavia, minh’alma está pronta para execução dos desígnios de meu Pai.

4 A pequena assembleia fez-se lívida. Com exceção de Judas, que entabulara negociações particulares com os doutores do Templo, faltando apenas o ato do beijo, a fim de consumar-se a sua defecção, ninguém poderia contar com as palavras amargas do Messias. Penosa sensação de mal-estar se estabelecera entre todos. O filho de Iscariote fazia o possível por dissimular as suas angustiosas impressões, quando os companheiros se dirigiam ao Cristo com perguntas angustiadas:
— Quem será o traidor? — Disse Filipe, com estranho fulgor nos olhos.
— Serei eu? — Exclamou André, ingenuamente.
— Mas, afinal, — objetou Tiago, filho de Alfeu, em voz alta, — onde está Deus que não conjura semelhante perigo?

5 Jesus, que se mantivera em silêncio ante as primeiras interrogações, ergueu o olhar para o filho de Cleofas e advertiu:
— Tiago, faze calar a voz de tua pouca confiança na sabedoria que nos rege os destinos. Uma das maiores virtudes do discípulo do Evangelho é a de estar sempre pronto ao chamado da Providência Divina. Não importa onde e como seja o testemunho de nossa fé. O essencial é revelarmos a nossa união com Deus, em todas as circunstâncias. É indispensável não esquecer a nossa condição de servos de Deus, para bem lhe atendermos ao chamado, nas horas de tranquilidade ou de sofrimento.

6 A esse tempo, havendo-se o Messias calado de novo, João interveio, perguntando:
— Senhor, compreendo a vossa exortação e rogo ao Pai a necessária fortaleza de ânimo; mas, por que motivo será justamente um dos vossos discípulos o traidor de vossa causa? Já nos ensinastes que, para se eliminarem do mundo os escândalos, outros escândalos se tornam necessários; contudo, ainda não pude atinar com a razão de um possível traidor em nosso próprio colégio de edificação e de amizade.

7 Jesus pousou no interlocutor os olhos serenos e acentuou:
— Em verdade, cumpre-me afirmar que não me será possível dizer-vos tudo agora; entretanto, mais tarde enviarei o Consolador, que vos esclarecerá em meu nome, como agora vos falo em nome de meu Pai.

8 E, detendo-se um pouco a refletir, continuou para o discípulo em particular:
— Ouve, João: os desígnios de Deus, se são insondáveis, também são invariavelmente justos e sábios. O escândalo desabrochará em nosso próprio círculo bem-amado, mas servirá de lição a todos aqueles que vierem depois de nossos passos, no divino serviço do Evangelho. Eles compreenderão que para atingirem a porta estreita da renúncia redentora hão de encontrar, muitas vezes, o abandono, a ingratidão e o desentendimento dos seres mais queridos. Isso revelará a necessidade de cada qual firmar-se no seu caminho para Deus, por mais espinhoso e sombrio que ele seja.
O apóstolo impressionara-se vivamente com as derradeiras palavras do Mestre e passou a meditar sobre seus ensinos.


9 As sensações de estranheza perduravam em toda a assembleia. Jesus, então, levantou-se e, oferecendo a cada companheiro um pedaço de pão, exclamou:
— Tomai e comei! Este é o meu corpo. ( † )
Em seguida, servindo a todos de uma pequena bilha de vinho, acrescentou:
— Bebei! Porque este é o meu sangue, dentro do Novo Testamento, a confirmar as verdades de Deus.

10 Os discípulos lhe acolheram a suave recomendação, naturalmente surpreendidos; Simão Pedro, sem dissimular a sua incompreensão do símbolo, interrogou:
— Mestre, que vem a ser isso?
— Amados, — disse Jesus, com emoção, — está muito próximo o nosso último instante de trabalho em conjunto e quero reiterar-vos as minhas recomendações de amor, feitas desde o primeiro dia do apostolado. Este pão significa o do banquete do Evangelho; este vinho é o sinal do espírito renovador dos meus ensinamentos. Constituirão o símbolo de nossa comunhão perene, no sagrado idealismo do amor, com que operaremos no mundo até o último dia. Todos os que partilharem conosco, através do tempo, desse pão eterno e desse vinho sagrado da alma, terão o espírito fecundado pela luz gloriosa do Reino de Deus, que representa o objetivo santo dos nossos destinos.

11 Ponderando a intensidade do esforço a ser empregado e aludindo às multidões espirituais que se conservam sob a sua amorosa direção, fora dos Círculos da carne, nas Esferas mais próximas da Terra, o Cristo acrescentou:
— Imenso é o trabalho da redenção, mesmo porque tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; mas o Reino nos espera com a sua eternidade luminosa!…
Altamente tocados pelas suas exortações solenes, porém, maravilhados ainda mais com as promessas daquele reinado venturoso e sem-fim, que ainda não podiam compreender claramente, a maioria dos discípulos começou a discutir as aspirações e conquistas do futuro.

12 Enquanto Jesus se entretinha com João, em observações afetuosas, os filhos de Alfeu examinavam com Tiago as possíveis realizações dos tempos vindouros, antecipando opiniões sobre qual dos companheiros poderia ser o maior de todos, quando chegasse o Reino com as suas inauditas grandiosidades. Filipe afirmava a Simão Pedro que depois do triunfo deveriam entrar em Nazaré para revelar aos doutores e aos ricos da cidade a sua superioridade espiritual. Levi dirigia-se a Tomé e lhe fazia sentir que, verificada a vitória, se lhes constituía uma obrigação a marcha para o Templo ilustre, onde exigiriam, n seus poderes supremos. Tadeu esclarecia que o seu intento era dominar os mais fortes e impenitentes do mundo, para que aceitassem, de qualquer modo, a lição de Jesus.

13 O Mestre interrompera a sua palestra íntima com João, e os observava. As discussões iam acirradas. As palavras “maior de todos” soavam insistentemente aos seus ouvidos. Parecia que os componentes do sagrado colégio estavam na véspera da divisão de uma conquista material e, como os triunfadores do mundo, cada qual desejava a maior parte da presa. Com exceção de Judas, que se fechava num silêncio sombrio, quase todos discutiam com veemência. Sentindo-lhes a incompreensão, o Mestre pareceu contemplá-los com entristecida piedade.


14 Nesse instante, os apóstolos observaram que ele se erguia. Com espanto de todos, despiu a túnica singela e cingiu-se com uma toalha em torno dos rins, à moda dos escravos mais ínfimos, a serviço dos seus senhores. E como se fossem dispensáveis as palavras, naquela hora decisiva de exemplificação, tomou de um vaso de água perfumada e, ajoelhando-se, começou a lavar os pés dos discípulos. Ante o protesto geral em face daquele ato de suprema humildade, Jesus repetiu o seu imorredouro ensinamento:
— Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque eu o sou. ( † ) Se eu, Senhor e Mestre, vos lavo os pés, deveis igualmente lavar os pés uns aos outros no caminho da vida, porque no Reino do Bem e da Verdade o maior será sempre aquele que se fez sinceramente o menor de todos. ( † )


Humberto de Campos

(Irmão X)


[1] Em outras edições impressas desse livro, a palavra “exigiriam” foi substituída, indevidamente, a nosso ver, por “exibiriam”.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir