1 O ato do Messias, lavando os pés de seus discípulos, ( † ) encontrou certa incompreensão da parte de Simão Pedro. O velho pescador não concordava com semelhante ato de extrema submissão. E, chegada a sua vez, obtemperou, resoluto:
— Nunca me lavareis os pés, Mestre; meus companheiros estão sendo ingratos e duros neste instante, deixando-vos praticar esse gesto, como se fôsseis um escravo vulgar.
2 Em seguida a essas palavras, lançou à assembleia um olhar de reprovação e desprezo, enquanto Jesus lhe respondia:
— Simão, não queiras ser melhor que os teus irmãos de apostolado, em nenhuma circunstância da vida. Em verdade, assevero-te que, sem o meu auxílio, não participarás com meu Espírito das alegrias supremas da redenção.
3 O antigo pescador de Cafarnaum aquietou-se um pouco, fazendo calar a voz de sua generosidade quase infantil.
Terminada a lição e retomando o seu lugar à mesa, o Mestre parecia meditar gravemente. Logo após, todavia, dando a entender que sua visão espiritual devassava os acontecimentos do futuro, sentenciou:
— Aproxima-se a hora do meu derradeiro testemunho! Sei, por antecipação, que todos vós estareis dispersados nesse instante supremo. É natural, porquanto ainda não estais preparados senão para aprender. Antes, porém, que eu parta, quero deixar-vos um novo mandamento, o de amar-vos uns aos outros como eu vos tenho amado; ( † ) que sejais conhecidos como meus discípulos, não pela superioridade no mundo, pela demonstração de poderes espirituais, ou pelas vestes que envergueis na vida, mas pela revelação do amor com que vos amo, pela humildade que deverá ornar as vossas almas, pela boa disposição no sacrifício próprio.
4 Vendo que Jesus repetia, mais uma vez, aquelas recomendações de despedida, Pedro, dando expansão ao seu temperamento irrequieto, adiantou-se, indagando:
— Afinal, Senhor, para onde ides?
O Mestre lhe lançou um olhar sereno, fazendo-lhe sentir o interesse que lhe causava a sua curiosidade e redarguiu:
— Ainda não te encontras preparado para seguir-me. O testemunho é de sacrifício e de extrema abnegação e somente mais tarde entrarás na posse da fortaleza indispensável.
5 Simão, no entanto, desejando provar por palavras aos companheiros o valor da sua dedicação, acrescentou, com certa ênfase, no propósito de se impor à confiança do Messias:
— Não posso seguir-vos? Acaso, Mestre, podereis duvidar de minha coragem? Então, não sou um homem? Por vós darei a minha própria vida.
6 O Cristo sorriu e ponderou:
— Pedro, a tua inquietação se faz credora de novos ensinamentos. A experiência te ensinará melhores conclusões, porque, em verdade, te afirmo que esta noite o galo não cantará sem que me tenhas negado por três vezes. ( † )
— Julgais-me, então, um Espírito mau e endurecido a esse ponto? — Indagou o pescador, sentindo-se ofendido. — Não, Pedro, — adiantou o Mestre, com doçura, — não te suponho ingrato ou indiferente aos meus ensinos. Mas vais aprender, ainda hoje, que o homem do mundo é mais frágil do que perverso.
7 Pedro não quis acreditar nas afirmações do Messias e tão logo se verificara a sua prisão, no pressuposto de demonstrar o seu desassombro e boa disposição para a defesa do Evangelho do Reino, atacou com a espada um dos servos do sumo-sacerdote de Jerusalém, compelindo o Mestre a mais severas observações. Consoante as afirmativas de Jesus, o colégio dos apóstolos se dispersara naquele momento de supremas resoluções. A humildade com que o Cristo se entregava desapontara a alguns deles, que não conseguiam compreender a transcendência daquele Reino de Deus, sublimado e distante.
8 Pedro e João, observando que a detenção do Mestre pelos emissários do Templo era fato consumado, combinaram, entre si, acompanhar, de longe, o grupo que se afastava, conduzindo o Messias. Debalde, procuraram os demais companheiros que, receosos da perseguição, haviam debandado.
Ambos, no entanto, desejavam prestar a Jesus o auxílio necessário. Quem sabe poderiam encontrar um recurso de salvá-lo? Era mister certificar-se de todas as ocorrências. Mobilizariam suas humildes relações em Jerusalém, a favor do Mestre querido. Compreendiam a extensão do perigo e as ameaças que lhes pesavam sobre a fronte. De instante a instante, eram surpreendidos por homens do povo que, em palestra de caminho, acusavam a Jesus de feiticeiro e herético.
9 A noite caíra sobre a cidade.
Os dois discípulos observaram que a expedição de servos e soldados chegava à residência de Caifás, onde o Cristo foi recolhido a uma cela úmida, cujas grades davam para um pátio extenso.
O prisioneiro fora trancafiado, por entre zombarias e impropérios. Ao grupo reduzido, juntava-se agora a massa popular, então em pleno alvoroço festivo, nas comemorações da Páscoa. ( † ) O pátio amplo foi invadido por uma aluvião de pessoas alegres.
10 Pedro e João compreenderam que as autoridades do Templo imprimiam caráter popular ao movimento de perseguição ao Messias, vingando-se de sua vitória na entrada triunfal em Jerusalém, ( † ) como uma nova esperança para o coração dos desalentados e oprimidos.
Depois de ligeiro entendimento, o filho de Zebedeu voltou a Betânia, ( † ) a fim de colocar a mãe de Jesus ao corrente dos fatos, enquanto Pedro se misturava à aglomeração, de maneira a observar em que poderia ser útil ao Messias.
11 O ambiente estava já preparado pelo farisaísmo para os tristes acontecimentos do dia imediato. Em todas as rodas, falava-se do Cristo como de um traidor ou revolucionário vulgar. Alguns comentadores mais exaltados o denunciavam como ladrão. Ridicularizava-se o seu ensinamento, zombava-se de sua exemplificação e não faltavam os que diziam, em voz alta, que o Profeta Nazareno havia chegado à cidade chefiando um bando de salteadores.
12 O velho pescador de Cafarnaum sentiu a hostilidade com que teria de lutar, a fim de socorrer o Messias, e experimentou um frio angustioso no coração. Sua resolução parecia vencida. A alma ansiosa se deixava dominar por dúvidas e aflições. Começou a pensar nos seus familiares, em suas necessidades comuns, nas convenções de Jerusalém, que ele não poderia afrontar sem pesados castigos. Com o cérebro fervilhando de expectativas e cogitações de defesa própria, penetrou no pátio extenso, onde se adensava a multidão.
Para logo, uma das servas da casa se aproximou dele e exclamou, surpreendida:
— Não és tu um dos companheiros deste homem? — Indagou, designando a cela onde Jesus se achava encarcerado.
O pescador refletiu um momento e, reconhecendo que o instante era decisivo, respondeu, dissimulando a própria emoção:
— Estás enganada. Não sou.
13 O apóstolo ponderou aquela primeira negativa e pôs-se a considerar que semelhante procedimento, aos seus olhos, era o mais razoável, porquanto tinha de empregar todas as possibilidades ao seu alcance, a favor de Jesus.
Fingindo despreocupação, o irmão de André se dirigiu a uma pequena aglomeração de populares, onde cada qual procurava esquivar-se ao frio intenso da noite, aquentando-se junto de um braseiro. Novamente um dos circunstantes, reconhecendo-o, o interpelou nestes termos:
— Então, vieste socorrer o teu Mestre?
— Que Mestre? — Perguntou o pescador de Cafarnaum, entre receoso e assustado. — Nunca fui discípulo desse homem.
14 Fornecida essa explicação, todo o grupo se sentiu à vontade para comentar a situação do prisioneiro. Longas horas passaram-se para Simão Pedro, que tinha o coração a duelar-se com a própria consciência, naqueles instantes penosos em que fora chamado ao testemunho. A noite ia adiantada, quando alguns servidores vieram servir bilhas de vinho. Um deles, encarando o discípulo com certo espanto, exclamou de súbito:
— É este!… É bem aquele discípulo que nos atacou a espada, entre as árvores do horto!…
Simão ergueu-se, pálido, e protestou:
— Estás enganado, amigo! Vê que isso não seria possível!…
15 Logo que pronunciou sua derradeira negativa, os galos da vizinhança cantaram em vozes estridentes, anunciando a madrugada.
Pedro recordou as palavras do Mestre e sentiu-se perturbado por infinita angústia. Levantou-se cambaleante e, voltando-se instintivamente para a cela em que o Mestre se achava prisioneiro, viu o semblante sereno de Jesus a contemplá-lo através das grades singelas.
16 Presa de indizível remorso, o apóstolo retirou-se, envergonhado de si mesmo. Dando alguns passos, alcançou os muros exteriores, onde se deteve a chorar amargamente. Ele, que fora sempre homem ríspido e resoluto, que condenara invariavelmente os transviados da verdade e do bem, que nunca conseguira perdoar às mulheres mais infelizes, ali se encontrava, abatido como uma criança, em face de sua própria falta. Começava a entender a razão de certas experiências dolorosas de seus irmãos em humanidade. Em seu espírito como que desabrochava uma fonte de novas considerações pelos infortunados da vida. Desejava, ansiosamente, ajoelhar-se ante o Messias e suplicar-lhe perdão para a sua queda dolorosa.
17 Através do véu de lágrimas que lhe obscurecia os olhos, Simão Pedro experimentou uma visão consoladora e generosa. Figurou-se-lhe que o Mestre vinha vê-lo, em Espírito, na solidão da noite, trazendo nos lábios aquele mesmo sorriso sereno de todos os dias. Ante a emoção confortadora e divina, Pedro ajoelhou-se e murmurou:
— Senhor, perdoai-me!
Mas, nesse instante, nada mais viu, na confusão de seus angustiados pensamentos. Luar alvíssimo enfeitava de luz as vielas desoladas. Foi aí que o antigo pescador refletiu mais austeramente, lembrando as advertências amigas de Jesus, quando lhe dizia: — “Pedro, o homem do mundo é mais frágil do que perverso!…”
Humberto de Campos
(Irmão X)