1. — Numa comunicação intitulada: O Espiritismo e a literatura contemporânea, publicada no último número da Revista Espírita, o Espírito do Sr. Allan Kardec se felicitava por ver a literatura e a Ciência entrarem mais abertamente nas vias do Espiritismo filosófico. Com efeito, alguns autores aceitam um certo número de nossas convicções e as popularizam em seus escritos; outros se servem dos nossos ensinos como de uma fonte fecunda em situações novas, em quadros susceptíveis de interessar os seus leitores. Alguns, enfim, inteiramente convencidos, não temem consagrar à vulgarização dos nossos princípios a sua profunda erudição e o seu notável talento de escritor.
Entre estes últimos, citaremos o Sr. Victor Tournier, já conhecido do mundo espírita pela publicação de uma brochura intitulada: O Espiritismo ante a razão, n tendo por objetivo demonstrar, apenas pelo poder do raciocínio, a realidade dos nossos ensinamentos. – Prosseguindo sua obra com uma atividade infatigável, o Sr. Victor Tournier publica uma série de artigos no jornal Fraternité, de Carcassonne, † nos quais a questão filosófica é tratada do ponto de vista espírita com clareza de concepção e lucidez de expressão acima de todo elogio. Já apareceram vários desses artigos, e o Sr. Tournier houve por bem fazer chegar alguns às nossas mãos. Quando toda a série tiver sido publicada, pretende o autor coordená-la e dela compor uma brochura que, certamente, encontrará seu lugar na biblioteca de todos os espíritas desejosos de possuir obras realmente sérias, onde a Doutrina é submetida ao controle irrecusável da lógica e da razão.
Tomamos hoje do Fraternité um desses artigos que, sob o título: Preexistência – Reencarnação, reúne em algumas páginas interessantes as opiniões emitidas em favor desse princípio por filósofos e literatos, cuja autoridade não se poderia contestar. Citamos textualmente a primeira parte desse trabalho, cujo fim publicaremos no próximo número:
2. — “É opinião muito antiga que as almas, ao deixarem este mundo, vão para os infernos, e que de lá retornam à Terra, voltando à vida depois de terem passado pela morte. – …Parece-me, também, Cébès, que nada se pode opor a essas verdades, e que não nos enganamos quando os recebemos; porque é certo que há um retorno à vida; que os vivos nascem dos mortos; que as almas dos mortos existem, e que as almas virtuosas são melhores e as más são piores.” (Sócrates, em Fédon).
É digno de nota que quase todos os povos antigos acreditavam na preexistência da alma e em sua reencarnação. Os filósofos espiritualistas consideram o renascimento como uma consequência da imortalidade; para eles, estas duas verdades eram solidárias, não se podendo negar uma sem negar a outra. Não se sabe ao certo se Pitágoras recebeu essa doutrina dos egípcios, dos hindus ou dos gauleses, nossos pais. Se viajou entre todos esses povos, aí a encontrou igualmente, pois que lhes era comum.
“Esse mesmo solo que hoje habitamos, diz Jean Reynaud, era povoado antes de nós por uma comunidade de heróis, habituados todos a se considerarem como tendo percorrido o Universo desde longa data, antes de sua encarnação atual, fundando, assim, a esperança de sua imortalidade sobre a convicção de sua preexistência.”
“E o poeta Lucano: “Segundo os druidas, as sombras não descem nas silenciosas moradas do Erebo, nos pálidos reinos do deus do abismo. O mesmo Espírito anima um novo corpo numa outra esfera. A morte (se vossos hinos são verdadeiros) é o meio de uma longa vida”.
“Esta crença era tão fortemente arraigada entre nossos pais que eles faziam empréstimo entre si de somas pagáveis num outro mundo, seguros que estavam de ali se encontrarem e se reconhecerem.
“Se os hebreus jamais a adotaram de maneira tão geral e tão completa, não obstante a elas não ficaram estranhos. Sabe-se que os fariseus, a seita que se vangloriava de ser a mais ortodoxa, acreditava numa danação eterna para os maus e num retorno à vida para os bons. Era o contrário da religião do Sintos, a mais antiga do Japão, que, segundo Kempfer, citado por Boulanger, ensina que só os maus retornam à vida para expiar seus crimes.
“Certas passagens da Bíblia justificam a doutrina dos fariseus e exprimem de maneira muito clara a crença na reencarnação. Eu poderia citar algumas delas, mas me contento com as duas seguintes:
“– É o Senhor que tira e que dá a vida; que conduz aos infernos e que dele retira.” ( † ) (I Reis, capítulo II, v 6.) n Isto é, que faz morrer e faz reviver.
“Sabe-se que um dos processos da poesia hebraica era repetir, em termos diferentes, na segunda parte da estrofe, o pensamento já expresso na primeira parte. Aqui, tirar a vida corresponde, evidentemente, a conduzir aos infernos, e dar a vida a dele retira. Aliás, na Bíblia, como em Platão e entre todos os antigos, infernos são sinônimos de túmulo, de morte; retirar dos infernos significa fazer reviver neste mundo, fazer renascer.
“Aqueles do vosso povo que fizeram morrer viverão de novo, os que foram
mortos em meio de mim ressuscitarão.” (Isaías,
capítulo XXVI, v 19.)
“Os judeus modernos, entre os quais se conservou esta crença, chamavam gilgul, rolamento, a passagem da alma de um corpo a outro.
“Se o Cristo, que sem dúvida previa todas as divisões que dariam origem aos dogmas impostos e a todo o sangue que eles fariam derramar, não deu por lei aos seus discípulos senão o amor de Deus e do próximo, não deixou de manifestar menos, em muitas ocasiões, sua crença na reencarnação. – “13. Porque todos os profetas e a Lei profetizaram até João; – 14. e se quereis compreender o que vos digo, é ele mesmo o Elias que devia vir. – 15. – Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.” (São Mateus, capítulo XI.)
“Aqui, não se trata de Elias descido do céu – pois sabemos que João Batista era filho de Zacarias e Isabel, prima de Maria – mas de Elias reencarnado.
“1. Quando Jesus passava, viu um cego de nascença. – 2. E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” (São João, capítulo IX.)
“Por que os discípulos perguntam a Jesus, como uma coisa muito natural, se é por causa de seu pecado que este homem é cego? – É que os discípulos e Jesus estavam convencidos de que o homem podia ter pecado antes de nascer e, por conseguinte, que já tinha vivido. É possível dar outra explicação?
“Como se admirar, já que os escritores eruditos nos asseguram que a crença na pluralidade das existências estava, de modo geral, espalhada entre os cristãos dos primeiros séculos? – Aliás, sempre houve e haverá ainda entre eles, como entre os judeus, homens que a professam, sem, por isso, abandonarem a sua ortodoxia.
“Enquanto esta linha de conduta prevalecia na Igreja e terminava pela condenação de Orígenes, de que vimos a providencial justeza, aqueles que foram postos no número dos santos não deixaram de sustentar a pluralidade das existências e a não-realidade da danação eterna. É São Clemente de Alexandria que ensina a redenção universal de todos os homens pelo Cristo Salvador; ele se indigna contra a opinião que não beneficia com essa redenção senão os privilegiados; e diz que, criando os homens, Deus tudo dispôs, no conjunto e nos detalhes, objetivando a salvação geral. (Stromat., livro VII. Oxford, 1715.) Depois, é São Gregório de Nissa que nos diz que há necessidade de natureza para a alma imortal ser curada e purificada, e quando não o foi em sua vida terrestre, a cura se opera nas vidas futuras e subsequentes. Eis a pluralidade das existências ensinada claramente e em termos formais. Mesmo em nossos dias, redescobrimos a preexistência e, portanto, a reencarnação, aprovadas na pastoral de um bispo da França, o Monsenhor de Montal, bispo de Chartres, a respeito dos negadores do pecado original, ao qual ele opõe a crença permitida das vidas anteriores da alma. Essa pastoral é do ano de 1843. (A. Pezzani, Pluralidade das existências da alma.)
“Eis as próprias palavras do bispo Montal. Tomo-as do nº de 27 de outubro de 1864 do jornal Avenir. “Já que a Igreja não nos proíbe de crer na preexistência das almas, quem pode saber o que se terá passado nas eras remotíssimas, entre as inteligências?”
“Numa carta ao Sr. Balathier, publicada no jornal Petite Presse de 20 de setembro de 1868, da qual falarei novamente, o Sr. Ponson du Terrail conta que em seu domínio das Charmettes, onde se encontra, teve como conviva o cura de seu vilarejo. Este se mostrou muito surpreso ao ouvir o anfitrião afirmar-lhe que se lembrava de ter vivido ao tempo de Henrique IV e de haver conhecido particularmente esse rei; que acreditava que já tínhamos vivido e que viveríamos novamente. Mas, enfim, diz o autor, ele me confessou que as crenças cristãs não excluem esta opinião, e me deixou seguir o meu caminho.”
“Mesmo durante as sombras da Idade Média, época em que, segundo a expressão de Michelet, Satã cresceu de tal modo que entenebreceu o mundo, a crença na reencarnação não foi abafada completamente. Encontro uma prova disto na Divina Comédia, onde Dante, que então partilhava essa opinião do povo, coloca o imperador Trajano no paraíso. Este, depois de ter passado quinhentos anos no inferno, daí saiu pela virtude das preces de São Gregório, o Grande. Mas, coisa digna de atenção, ele não foi diretamente para o céu; retomou um corpo na Terra – torno all’ossa – e somente depois de se ter demorado algum tempo nesse corpo – in che fu poco – é que foi admitido no número dos eleitos.
“Entre os filósofos e os sábios esta ideia jamais deixou de ter representantes. O ilustre Franklin, um dos homens que mais honraram a Humanidade pelo gênio e pela sabedoria, compôs, ele próprio, o epitáfio seguinte, que testemunha a sua fé na reencarnação:
“Aqui repousa, entregue aos vermes, o corpo de Benjamim Franklin, impressor, como a capa de um velho livro cujas folhas foram arrancadas, e cujo título e douração se apagaram. Mas nem por isto a obra ficará perdida, pois, como acredito, reaparecerá em nova e melhor edição, revista e corrigida pelo autor.” [v. Epitáfio de Benjamin Franklin]
“Numa carta à Sra. de Stein, Goethe exclama: “Por que o destino nos ligou tão estreitamente? Ah! em tempos passados fostes minha irmã ou minha esposa!”
“O grande químico inglês, sir Humphry Davy, numa obra intitulada: Os últimos dias de um filósofo, aplica-se em demonstrar a pluralidade das existências da alma e suas encarnações sucessivas. “A existência humana, diz ele, pode ser encarada como o tipo de uma vida infinita e imortal, e sua composição sucessiva de sonos e de sonhos poderia certamente nos oferecer uma imagem aproximada da sucessão de nascimentos e de mortes de que se compõe a vida eterna.”
“Charles Fourier estava de tal modo convicto de que renascemos na Terra, que se encontra em sua obra a seguinte frase: “Aquele que foi mau rico poderá voltar a mendigar na porta do castelo de que foi proprietário”.
“Hoje, a crença na pluralidade das existências é quase geral nos grandes escritores. Acho supérfluo fazer citações que se encontram em toda parte e que me fariam ultrapassar o quadro no qual devo cingir-me. Disse o Sr. Chaseray em suas Conferências sobre a alma: n “Sinto dificuldade na escolha de citações para mostrar que a fé numa série de existências, umas anteriores, outras posteriores à vida presente, cresce e se impõe cada dia mais aos espíritos esclarecidos”.
“Não foi apenas Proudhon que se sentiu arrastado para este lado. A passagem seguinte, de uma carta dirigida pelo grande demolidor ao Sr. Villiaumé, em 13 de julho de 1857, é uma prova disto. Diz ele: “Pensando nisto, eu me pergunto se não arrasto a corrente de algum grande culpado, condenado numa existência anterior, como ensina Jean Reynaud!”
“Como se vê, é a velha metempsicose que reaparece e tende a tornar-se a religião da Humanidade. Ela tem tanto mais chances de triunfar desta vez, quanto se despojou da sujeira que a fez abandonada: – Hoje já não se crê que a alma humana possa retrogradar e entrar no corpo de um animal. Os antigos não tinham o sentimento do progresso contínuo do ser e da organização que preside à obra de Deus: eis por que caíram neste erro grosseiro.
“Num próximo artigo, submeteremos esta doutrina ao controle da razão.”
V. Tournier.
[Revista de dezembro.]
Revista da Imprensa.
3 REENCARNAÇÃO – PREEXISTÊNCIA.
(Segundo artigo. – Vide a Revista de novembro de 1869.)
A ideia da reencarnação é tão natural que, não fosse a tirania exercida
sobre nós pelo hábito das ideias contrárias que a educação nos impôs
desde a infância, nós a aceitaríamos facilmente. “Não é mais surpreendente
nascer duas vezes que uma; tudo é ressurreição na Natureza.” Estas palavras
que Voltaire,
(Vide a
Princesa da Babilônia,) põe na boca da fênix, no momento em que
renasce das próprias cinzas, não vos parece, em sua simplicidade e em
sua enérgica concisão, a expressão mesma da verdade?
Quantos problemas em nosso destino, impossíveis de resolver de maneira satisfatória por outra doutrina e que esta nos dá a solução racional! Quantas obscuridades ela esclarece! Quantas dificuldades afasta!
“Na verdade, diz Montaigne, acho que estou tão longe de Epaminondas que ultrapassaria Plutarco de bom grado; e diria que não há mais distância deste àquele homem, como não há distância de tal homem a tal animal; e que há tantos graus de espíritos quanto o número de braças que existem daqui até o céu.”
De fato, quanta distância entre o hotentote estúpido e o inteligente europeu! entre Dumolard e Sócrates!
Como explicar essa desigualdade no desenvolvimento intelectual e moral, que em certos casos se seria tentado a chamar desigualdade da Natureza, se não se admite entre o espírito inferior e o espírito superior a mesma relação que existe entre a criança e o homem feito, e por vezes entre o homem e o anjo? Se não se admite que o último viveu mais que o primeiro e pôde progredir num maior número de vidas sucessivas?
Dirão que é um efeito da diferença da organização física e da educação? A isto responderíamos que estas causas podem explicar, no máximo, as superioridades aparentes, mas não as reais.
O órgão serve mais ou menos bem à faculdade, mas não a dá; já o demonstramos inúmeras vezes. De tal sorte que um espírito muito desenvolvido, num corpo mal conformado, pode fazer um homem muito ordinário, ao passo que um espírito relativamente menos adiantado, servido por bons órgãos, fará um homem que lhe será em aparência muito superior. Mas essa falsa superioridade, que não considera senão a faculdade de expressão, e não o poder de pensar, iludirá apenas o observador superficial, mas não enganará o espírito penetrante. “Não padece dúvida, diz J. Simon, que existem espíritos de escol cujo valor sempre ficará desconhecido, por lhes faltar a faculdade de expressão. Vê-se essas almas cheias de ideias, que o vulgo despreza e que passam por inferiores e desprovidas de razão, embora os espíritos penetrantes captem algumas vezes em sua linguagem os traços de uma força incomparável. Pergunta-se, pensando nelas, se não se está na presença de um gênio encantado sob uma forma que o impede de manifestar se em sua plenitude e em seu esplendor.”
Aliás, não é sabido que Sócrates havia recebido da Natureza um corpo cujos impulsos o teriam levado à devassidão, e que o filho de Sofrônico dele fez um sábio, n um modelo para os homens, em vez do libertino que a Natureza parecia querer fazer?
Quanto à educação, não temos diariamente sob os olhos a prova de que a sua influência é grande? Não obstante, ela não chega a mudar completamente a natureza do homem, fazendo de um celerado um prêmio Monthyon e de um idiota um Newton.
Quantas pessoas honradas que jamais receberam lições de ninguém! quantas não se viram obrigadas a combater os ensinos perniciosos! e quantos velhacos infames foram educados com todos os cuidados imagináveis! Cômodo não era filho e discípulo de Marco Aurélio? e nos devemos ufanar das lições dos jesuítas, mestres de Voltaire, da independência do pensamento do discípulo, de seu horror pela intolerância e pelo fanatismo religioso, e de seu desprezo pelas superstições?
Quem foi o preceptor do lenhador Lincoln, de seu sucessor, o alfaiate Johnson, e de seu ilustre compatriota, o ferreiro Elihu Burrit, o promotor da sociedade da paz universal?
Não há homens dos quais se pode dizer que se lembram, mais do que aprendem? Mozart, por exemplo, nasce grande músico; Pascal, aos nove anos e sem jamais ter lido um livro de matemática, chega, sozinho e sem o auxílio de nenhum mestre, até à trigésima segunda proposição de Euclides e inventa a geometria!
Em 1868 os jornais franceses nos distraíram, segundo um jornal inglês de Medicina – Quatterly – com um fenômeno muito estranho. É uma menina cuja história o Dr. Hun deu a conhecer. Até os três anos ela era muda, não conseguindo pronunciar nem mesmo as palavras papai e mamãe. Depois, de uma hora para outra começou a falar com uma loquacidade extraordinária, mas numa língua desconhecida que não guardava nenhuma relação com o inglês. E o que há de mais surpreendente é que ela se recusa a falar esta última língua, a única, no entanto, que lhe falam, obrigando àqueles com quem vive, seu irmão, por exemplo, um pouco mais velho que ela, a aprender a sua, na qual se encontram algumas palavras de francês, embora, no dizer dos pais, ninguém jamais as houvesse pronunciado diante dela [v. Fenômeno de linguística].
Como explicar esse fato de outro modo a não ser pela lembrança de uma língua que esta criança teria falado numa existência anterior? – É verdade que se pode negar o caso. Mas a menina existe; é um jornal sério, um jornal de Medicina que o relata, e a negação é um meio muito cômodo, ao qual, talvez, se recorra com muita frequência. Em muitos casos ele é o equivalente do diabo, esse Deus ex machina, † que chega sempre na hora certa para explicar tudo e dispensar o estudo.
Aliás, há homens que afirmam ter conservado a lembrança de outras existências. Isto é mais surpreendente. A carta do Sr. Ponson do Terrail, de que já falei antes, é uma prova disto. Pode-se dizer também que ele quis fazer uma brincadeira. Mas, o que não poderão dizer?
O poeta Méry afirmava igualmente que se lembrava de ter vivido sucessivamente em Roma, no tempo de Augusto, e na Índia, onde tinha sido sacerdote brâmane [v. Morte de Joseph Méry]. Também teria sido uma brincadeira?
Mas o que não pode ser uma anedota é o fato seguinte, do qual fui testemunha. Eu estava em Pau, na casa de um parente. No mesmo quarto em que estava, achava-se uma das filhas de minha parenta, de dois anos e o filhinho do vizinho, operário encadernador, que não passava de três anos. As crianças brincavam e com elas eu não me ocupava quanto, de repente, minha atenção foi atraída para uma altercação singular que se deu entre eles. O pequenino garantia, irritado e ruborizado contra a menina, que se recusava a nele crer, que se lembrava de ter sido soldado e haver sido morto. Dava detalhes e citava os lugares. Achei que devia intervir. Perguntei-lhe quem era seu pai na época a que se referia. Respondeu que então seu pai não era seu pai: ele é que era pai. E como eu insistisse que me explicasse por que, tendo sido morto, estava vivo novamente, e pequeno, depois de ter sido grande, respondeu: “Nada sei quanto a isto; fui soldado e me mataram; eu era grande e agora sou pequeno. Foi Deus quem o quis.” E batia com o pé, enraivecido, porque nos recusávamos a crer em suas palavras.
No dia seguinte eu quis retomar com ele a mesma conversa. Olhou-me com ar espantado e nada compreendeu, como se eu lhe tivesse falado grego.
Como supor que uma criança dessa idade quisesse se divertir sobre um tal assunto? Não é mais razoável pensar que o véu que nos oculta o passado se tivesse erguido por alguns instantes para ela?
A lembrança de existências passadas, embora muito rara, o é menos do que se pensa; a História nos fornece vários exemplos, e não é impossível que, como eu, algum de meus leitores já tenham tido ocasião de o constatar.
Pergunto, agora, depois de todas essas considerações e de todos esses fatos reunidos, aos quais poderíamos agregar muitos outros, se eles não são a consequência legítima e irresistível da realidade da reencarnação, e que não é surpreendente que em todas as épocas da História tenha havido espíritos elevados que nela acreditavam?
Além disso, quando se reflete seriamente, a gente se convence não apenas que esta crença é verdadeira, mas que é impossível que não seja de outro modo.
Se é falsa, como compreender a justiça de Deus? Reconhecemos o absurdo das penas eternas; mas, mesmo com penas e recompensas temporárias, para que pudessem ser aplicadas com precisão não seria preciso – já que não há uma só prova sofrida por todos nas mesmas condições de duração, com os mesmos obstáculos a vencer e dificuldades a superar – que cada um entrasse na liça armado com as mesmas faculdades e carregando o mesmo peso? – Pois bem, todos sabemos que não é assim. Precisamos demonstrá-lo?
Assim, o único meio de sair da dificuldade é reconhecer a veracidade desta ideia tão natural e tão justa, a de que as provas são múltiplas; que aqueles que vemos entrar na liça com maiores faculdades são velhos lutadores que as adquiriram mediante esforços anteriores, enquanto os que nela entram com faculdades menores são debutantes que não têm o direito de invejar as riquezas de seus irmãos mais velhos, já que só depende deles a sua aquisição, desde que sigam seu exemplo.
Quanto às várias posições sociais, não passam de provas diversas às quais o espírito é submetido, conforme a necessidade, e pelas quais passamos alternadamente, ora como pobres, ora como ricos, ora poderosos, ora fracos, ora senhores, ora escravos, ora dotados de uma organização física que, deixando às nossas faculdades todo o seu impulso, nos permite representar um papel brilhante na cena do mundo; ou, ao contrário, constrangidos por órgãos rebeldes e condenados a uma impotência e a uma inferioridade tanto mais penosa quanto podemos, algumas vezes, ter o sentimento de nossa real superioridade.
Aliás, o céu não pode ser um lugar fechado, que Deus nos abre ou nos fecha ao seu bel-prazer; não podemos concebê-lo senão como um estado superior da alma, que depende de nós atingir, aos nos purificarmos de nossas máculas, chegando a esse patamar intelectual e moral que está acima da natureza humana e que designamos sob o nome de natureza angélica.
Sim, nós somos, para me servir de uma expressão de Dante, a lagarta destinada a formar a angélica borboleta em seu voo para a justiça, sem que nada lhe possa opor obstáculos!
Todavia, se quisermos refletir nos esforços que isto exige, não direi o aniquilamento, mas apenas a diminuição do menor dos nossos defeitos, e o crescimento, não a aquisição da menor de nossas qualidades, poderemos compreender quantas existências são necessárias para preencher a distância que separa o hotentote, espírito talvez no começo da Humanidade, de Sócrates, anjo sem dúvida descido dos céus para nos servir de modelo e guia.
O esforço, eis a lei, é a condição indispensável do progresso do Espírito; e, nas fases inferiores de sua existência, esse esforço necessário não poderia produzir-se sem as reencarnações. Demonstrá-lo-ei no artigo seguinte, ao tratar da natureza das penas e recompensas futuras.
Esperando, creio poder fechar este artigo dizendo que a única coisa que nos deve preocupar nesta Terra, desde que ela é lugar de prova, é tirar o melhor partido possível da posição que ela está, na qual nos colocou aquele que, melhor que nós, conhece o de que precisamos e não pode ter preferências por nenhum de nós. “Lembra-te, diz o escravo Epicteto, de desempenhar com cuidado o papel que o soberano senhor impôs: breve, se for breve, longo, se for longo. Se ele te deu a personalidade de um mendigo, trata de bem desincumbi-lo; sede manco [coxo], príncipe ou plebeu, se ele o quis. Teu negócio é representar bem o teu papel, e o dele de o escolher.”
Victor Tournier.
[1]
Brochura in-12, preço: 1 fr. – Livraria Espírita, 7, rue de
Lille, †
Paris. [Le spiritisme devant la raison - Google Books.] (Vide a Revista
Espírita de março de 1868.)
[2]
[Nalgumas versões mais antigas da Bíblia os livros 1 e 2 de Samuel são
chamados 1 e 2 Reis, e 3 e 4 correspondem a 1 Reis e 2 Reis; portanto,
a citação refere-se ao 1º
Livro de Samuel, capítulo 2. v. 6.]
[3] Conferências sobre a alma, [Conférences sur l’âme - Google Books] pelo St. Chaseray, 1868. Brochura in-12; preço: 1 fr. 50, franco 1 fr. 75. Livraria Espírita, 7, rue de Lille.
[4] [Sofronisco,
o pai de Sócrates, personagem nos diálogos de Platão.]