1. — O Quarterly Journal of Psychological Medicine publica um relatório muito curioso sobre uma menina que substituiu a língua falada em seu redor por uma série de nomes e verbos, formando todo um idioma, do qual se serve e que não se consegue desacostumá-la.
“A criança tem agora quase cinco anos. Até a idade de três anos ficou sem falar e não sabia pronunciar senão as palavras “papá” e “mamã”. Quando se aproximou dos quatro anos, sua língua se desatou de repente, e hoje fala com toda a facilidade e a volubilidade de sua idade. Mas de tudo quanto diz, só as duas palavras “papá” e “mamã”, que aprendeu primeiro, foram tiradas da língua inglesa. Todas as outras brotaram de seu pequeno cérebro e de seus lábios, e não têm mesmo nenhuma relação com esta corruptela de palavras de que se servem as crianças que com ela brincam habitualmente.
“Em seu dicionário, Gaan significa God (Deus); migno-migno, water (água); odo, to send for, ou take away (mandar, retirar), conforme é colocada; gar, horse (cavalo).
“Um dia, diz o Dr. Hum, começou a chover. Fizeram a menina entrar e lhe proibiram de sair enquanto a chuva não cessasse. Ela postou-se à janela e disse:
“— Gaan odo migno-migno, feu odo. (Deus, retire a chuva; traga o fogo do sol).
“A palavra feu aplicada no mesmo sentido que na língua a que pertenço me chocou. Soube que a criança jamais tinha ouvido falar francês, coisa muito singular, e que seria interessante constatar bem, porque a criança havia tomado diversas palavras à língua francesa, tais como “tout”, “moi” e a negação “ne… pas.”
“A menina tem um irmão, cerca de dezoito meses mais velho que ela. Ela lhe ensinou a sua língua, sem tomar nenhuma das palavras de que ele se serve.
“Seus pais estão muito desolados com esse pequeno fenômeno; muitas vezes tentaram ensinar-lhe inglês, dar-lhe o nome inglês das coisas que ela designa de outro modo em seu idioma: a isso ela se recusa terminantemente. Tentaram afastá-la das crianças de sua idade e de só colocá-la em contato com pessoas idosas, falando inglês e nada conhecendo de seu pequeno jargão. Era de esperar que uma criança que se mostrava tão ávida por comunicar seus pensamentos quanto por inventar uma língua nova, procurasse aprender o inglês quando se achasse entre pessoas que só falavam essa língua. Mas não deu resultado.
“Tão logo se acha com pessoas que não tem o hábito de ver, põe-se a lhes ensinar a sua língua e, ao menos momentaneamente, os pais renunciaram a tirar-lhe esse hábito.”
2. — Tendo sido o fato discutido na Sociedade Espírita de Paris, † um Espírito deu a sua explicação na comunicação seguinte:
(Sociedade de Paris, 9 de outubro de 1868. – Médium: Sr. Nivard.)
O fenômeno da pequena inglesa, falando uma língua desconhecida para os que a rodeiam, e se recusando a servir-se da deles, é o fato mais extraordinário que se produziu desde muitos séculos.
Fatos surpreendentes ocorreram em todos os tempos, em todas as épocas, que causaram admiração aos homens, mas tinham semelhantes ou similares. Certamente isto não os explica, mas eram vistos com menos surpresa. Este de que tratamos é, talvez, o único em seu gênero. A explicação que se lhe pode dar não é mais fácil nem mais difícil que as outras, mas sua singularidade é impressionante: eis o essencial.
Eu disse impressionante; não é bem a causa, mas a razão do fenômeno. Ele choca de espanto: é por isto que se produziu. Hoje que o progresso faz um certo caminho, não se contentarão em falar do fato, como se fala da chuva e do bom tempo; querem lhe procurar a causa. Os médicos nada têm a ver com isto; a fisiologia é estranha a essa singularidade; se a criança fosse muda, ou não pudesse articular algumas palavras senão com dificuldade, que não seriam compreendidas devido à insuficiência de seus órgãos vocais, os sábios diriam que isto decorre das más disposições fisiológicas, e que, fazendo desaparecerem essas más disposições, deixariam à criança o livre uso da palavra. Mas tal não é o caso aqui; a criança, ao contrário, é loquaz, tagarela, fala facilmente, chama as coisas à sua maneira, exprime-as do modo que lhe convém e vai mais longe: ensina sua língua às suas camaradas, quando está provado que não lhe podem ensinar sua língua materna e que não quer mesmo a isto se sujeitar.
A psicologia é, pois, a única ciência na qual se deve buscar a explicação desse fato. A razão, o fim especial, eu acabo de dizer: era preciso impressionar os Espíritos e provocar suas pesquisas. Quanto à causa, tentarei vo-la dizer.
O Espírito encarnado no corpo dessa menina conheceu a língua, ou melhor, as línguas de que fala, pois faz uma mistura. Essa mistura, contudo, é feita conscientemente e constitui uma língua, cujas diversas expressões são tomadas das que esse Espírito conheceu em outras encarnações. Em sua última existência ele tivera a ideia de criar uma língua universal, a fim de permitir aos homens de todas as nações entender se e assim aumentar a facilidade das relações e o progresso humano. Para tanto, ele tinha começado a compor esse língua, que constituía de fragmentos de várias das que conhecia e mais gostava. A língua inglesa lhe era desconhecida; tinha ouvido ingleses falar, mas achava sua língua desagradável e a detestava. Uma vez na erraticidade, o objetivo que se tinha proposto em vida aí continuou; pôs-se à tarefa e compôs um vocabulário que lhe é particular. Encarnou-se entre os ingleses, com o desprezo que tinha por sua língua, e com a firme determinação de não a falar. Tomou posse de um corpo, cujo organismo flexível lhe permite manter a palavra. Os laços que o prendem a esse corpo são bastante elásticos para o manter num estado de semidesprendimento, que lhe deixa a lembrança bastante distinta de seu passado e o sustenta em sua resolução. Por outro lado, é ajudado por seu guia espiritual, que vela para que o fenômeno se produza com regularidade e perseverança, a fim de chamar a atenção dos homens. Aliás, o Espírito encarnado estava consentindo na produção do fato. Ao mesmo tempo que exibe o desprazer pela língua inglesa, cumpre a missão de provocar as pesquisas psicológicas.
L. Nivard, pai.
Observação. – Se esta explicação não pode ser demonstrada, pelo menos tem a seu favor a racionalidade e a probabilidade. Um inglês, que não admite o princípio da pluralidade das existências, e que não tinha conhecimento da comunicação acima, arrastado pela lógica irresistível, disse, falando desse caso, que ele não poderia explicar-se senão pela reencarnação, se fosse certo que a gente poderia reviver na Terra.
Eis, pois um fenômeno que, por sua própria estranheza, cativando a atenção, provoca a ideia da reencarnação, como a única razão plausível que se lhe possa dar. Antes que este princípio estivesse na ordem do dia, ter-se-ia simplesmente achado o fato bizarro e, sem dúvida, em tempos mais recuados, teriam olhado essa menina como enfeitiçada. Nós nem mesmo afirmaríamos que hoje não fosse esta a opinião de certas pessoas. O que não é menos digno de nota é que este fato se produz precisamente num país ainda refratário à ideia da reencarnação, mas à qual será arrastado pela força das coisas.