1. — Um homem de talento, inteligência de escol, poeta e literato distinto, o Sr. Joseph Méry, morreu em Paris † no dia 17 de junho de 1866, com sessenta e sete anos e meio de idade. Conquanto não fosse adepto confesso do Espiritismo, pertencia à numerosa classe dos que se podem chamar espíritas inconscientes, isto é, naqueles em que as ideias fundamentais do Espiritismo existem no estado de intuição. A esse título, e sem sair de nossa especialidade, podemos consagrar-lhe algumas linhas, que não serão inúteis à nossa instrução.
Seria supérfluo repetir aqui as informações que a maioria dos jornais publicaram, por ocasião de sua morte, sobre sua vida e suas obras. Reproduziremos apenas a seguinte passagem da notícia do Siècle (19 de junho), porque é uma justa homenagem prestada ao caráter do homem. Depois de ter enumerado seus trabalhos literários, assim o descreve o autor do artigo: “Joseph Méry era pródigo na conversação; palestrador brilhante, improvisador de estâncias e de rimas, semeava ditos espirituosos e paradoxos com uma verve infatigável; e, particularidade que o honra, jamais deixou de ser benevolente para com todos. É um dos mais belos elogios que se pode fazer a um escritor.”
2. — Dissemos que o Sr. Méry era espírita por intuição. Ele não só acreditava na alma e na sua sobrevivência, no mundo espiritual que nos cerca, mas na pluralidade das existências; nele essa crença era o resultado de lembranças. Estava persuadido de ter vivido em Roma † sob Augusto, na Alemanha, nas Índias, etc. Certos detalhes estavam presentes tão bem à sua memória que ele descrevia com exatidão lugares que jamais tinha visto. É a esta faculdade que o autor do artigo precitado faz alusão, quando diz: “Sua imaginação inesgotável criava as regiões que não tinha visto, adivinhava os costumes, descrevendo os habitantes com uma fidelidade tanto mais maravilhosa porque a possuía mau grado seu.”
Citamos os fatos mais notáveis que lhe dizem respeito no número da Revista de novembro de 1864, reproduzindo sob o título de Lembranças de existências passadas, o artigo biográfico publicado pelo Sr. Dangeau, no Journal littéraire de 25 de setembro de 1864, e que acompanhamos de algumas reflexões. Essa faculdade era perfeitamente conhecida de seus confrades em literatura. Que pensavam disto? para alguns não passava de singular efeito da imaginação. Como, porém, o Sr. Méry era um homem estimado, de caráter simples e reto, que sabiam incapaz de uma impostura — a exatidão de certas descrições locais tinha sido reconhecida — e não se podia racionalmente tachá-la de loucura, muitos diziam que aí podia haver algo de verdadeiro; por isso esses fatos foram lembrados num dos discursos pronunciados junto ao seu túmulo. Ora, se tivessem considerado como aberrações de seu espírito, teriam passado em silêncio. É, pois, em presença de um imenso concurso de ouvintes, da elite da literatura e da imprensa, numa circunstância grave e solene, uma das que mais impõem respeito, que foi dito que o Sr. Méry se lembrava de ter vivido em outras épocas e o provava por fatos. Isto não pode deixar de suscitar reflexões, tanto mais que, fora do Espiritismo, muitas pessoas adotam a ideia da pluralidade das existências como a mais racional. Sendo os fatos desta natureza concernentes ao Sr. Méry uma das notáveis particularidades de sua vida e tendo tido repercussão por ocasião de sua morte, não poderão senão acreditá-lo.
3. — Ora, quais são as consequências dessa crença, abstração feita do Espiritismo? Se admitirmos que já vivemos uma vez, podemos e até devemos ter vivido várias vezes, e podemos reviver depois desta existência. Se revivemos várias vezes, não pode ser com o mesmo corpo; logo, há em nós um princípio inteligente independente da matéria e que conserva sua individualidade. Como se vê, é a negação das doutrinas materialistas e panteístas. Este princípio ou alma, revivendo na Terra, desde que pode conservar a intuição de seu passado, não pode perder-se no infinito depois da morte, como se crê vulgarmente; deve, no intervalo de suas existências corpóreas, ficar no meio humanitário; devendo retomar novas existências nesta mesma humanidade, não deve perdê-la de vista; deve seguir as suas peripécias. Eis, pois, o mundo espiritual que nos cerca, no meio do qual vivemos. Nesse mundo naturalmente se acham os nossos parentes e amigos, que devem continuar a interessar-se por nós, como nos interessamos por eles e que não estão perdidos para nós, já que existem e podem estar perto de nós. Eis no que chegam forçosamente a crer; eis as consequências a que são levados os que admitem o princípio da pluralidade das existências; eis no que acreditava Méry. Que faz a mais o Espiritismo? Chama Espíritos esses mesmos seres invisíveis e diz que estando em nosso meio, podem manifestar sua presença e comunicar-se com os encarnados. Quando o resto foi admitido, isto é assim tão despropositado?
Como se vê, a distância que separa o Espiritismo da crença íntima de muitas pessoas é bem pouca coisa. O fato das manifestações não passa de acessório e da confirmação prática do princípio fundamental admitido em teoria. Por que, então, alguns dos que admitem a base repelem o que deve servir de prova? Pela falsa ideia que fazem disto. Mas os que se dão ao trabalho de o estudar e o aprofundar, logo reconhecem que estão mais próximo do Espiritismo do que pensavam e que a maior parte deles são espíritas sem o saber: só lhes falta o nome. Eis por que se veem tantas ideias espíritas emitidas a todo instante por aqueles mesmos que rejeitam o termo, e por que certas pessoas aceitam tão facilmente essas mesmas ideias. Quando se trata de uma questão de palavra, está-se muito próximo do entendimento.
Tocando em tudo, o Espiritismo entra no mundo por uma infinidade de portas. Uns a ele são trazidos pelo fato das manifestações; outros, pela desgraça que os atinge e contra a qual acham nessa crença a única consolação verdadeira; outros, ainda, pela ideia filosófica e religiosa; finalmente, outros pelo princípio da pluralidade das existências. Méry, contribuindo para acreditar esse princípio num certo mundo, talvez faça mais pela propagação do Espiritismo do que se fosse abertamente espírita confesso.
4. — É precisamente no momento em que esta grande lei da Humanidade vem afirmar-se por fatos e pelo testemunho de um homem honrado, que, por seu lado, a cúria romana vem desautorizá-la, pondo no Índex, n a Pluralidade das existências da alma, de Pezzani (Jornal Le Monde, 22 de junho de 1866); inevitavelmente esta medida terá por efeito provocar o seu exame. A pluralidade das existências não é uma simples opinião filosófica; é uma lei da Natureza, que nenhum anátema pode impedir de ser e com a qual a Teologia, mais cedo ou mais tarde, deverá pôr-se de acordo. A pressa em condenar, em nome da Divindade, uma lei que, como todas as que regem o mundo, é obra da Divindade, é um tanto exagerada. É muito de temer que em breve não suceda com essa condenação o que aconteceu com a que lançaram contra o movimento da Terra e os períodos de sua formação.
5. — A seguinte comunicação foi obtida na Sociedade de Paris, no dia 22 de junho de 1866, pelo médium Sr. Desliens:
Pergunta — Sr. Méry, não tínhamos a vantagem de vos conhecer senão pela reputação; mas os vossos talentos e a merecida estima de que éreis cercado nos levam a esperar encontrar, nas conversas que manteremos convosco, uma instrução que aproveitaremos e nos deixará felizes, todas as vezes que quiserdes vir entre nós.
As perguntas que hoje desejaríamos vos dirigir, se a época recente de vossa morte vos permitir responder, são estas:
1º — Como se realizou vossa passagem desta à outra vida e quais as vossas impressões ao entrar no mundo espiritual?
2º — Em vida tínheis conhecimento do Espiritismo? O que pensáveis dele?
3º — O que dizem de vossas lembranças de existências anteriores é exato? Que influência essas lembranças exerceram sobre vossa vida terrena e os vossos escritos?
Julgamos supérfluo perguntar se sois feliz em vossa nova posição; a bondade do vosso caráter e vossa honorabilidade nos levam a esperar isto.
Resposta — Senhores, estou extremamente tocado pelo testemunho de simpatia que haveis por bem me dar, e que se encerra nas palavras do vosso honrado presidente. Sinto-me feliz por atender ao vosso apelo, pois minha situação atual me afirma a realidade de um ensinamento cuja intuição eu trazia ao nascer, e também porque pensais no que resta de Méry, o romancista, no futuro de minha parte íntima e viva, em minha alma, enfim, ao passo que meus numerosos amigos pensavam, sobretudo, ao me deixar, na personalidade que os abandonava. Lançavam-me seu último adeus, desejando que a terra me fosse leve! Que resta de Méry para eles?… Um pouco de poeira e obras sobre cujo mérito não sou chamado a pronunciar-me… De minha vida nova, nem uma palavra!
Lembraram minhas teorias como uma das singularidades de meu caráter, a imposição de minhas convicções como um efeito magnético, um charme que desapareceria com a minha ausência; mas do Méry que sobreviveu ao corpo, desse ser inteligente que hoje dá conta de sua vida de ontem e que pensa em sua vida de amanhã, que disseram?… Nada!… nem mesmo pensaram… O romancista tão alegre, tão triste, por vezes tão divertido, partiu; deram-lhe uma lágrima, uma lembrança! Em oito dias nele não pensarão mais, e as peripécias da guerra farão esquecer a volta do pobre exilado à sua pátria.
Insensatos! há muito diziam: “Méry está doente; enfraquece, fica velho.” Como se enganavam!… eu ia para a juventude; crede; a criança que chora ao entrar na vida é que avança para a velhice; o homem maduro que morre reencontra a juventude eterna além da sepultura!
A morte foi para mim uma doçura inefável. Meu pobre corpo, castigado pela doença, sofreu as derradeiras convulsões e tudo foi dito; mas meu Espírito saía pouco a pouco de suas fraldas e planava, ainda prisioneiro e já aspirando ao infinito!… Fui libertado sem perturbação, sem abalo; não tive surpresa, porque o túmulo não mais tinha véu para mim. Abeirei-me de uma margem conhecida; sabia que amigos devotados me esperavam na praia, pois não era a primeira vez que eu fazia essa viagem.
Como eu dizia aos meus ouvintes admirados, conheci a Roma dos Césares; comandei como conquistador subalterno nessa Gália que habitava recentemente como cidadão; ajudei a conquistar a vossa pátria, a subjugar os vossos bravos antepassados, depois parti para retemperar minhas forças na fonte da vida intelectual, para escolher novas provas e novos meios de progresso. Vi as bordas do Ganges † e as dos rios da China; assimilei civilizações tão diferentes da vossa e, contudo, tão grandes, tão avançadas em seu gênero. Vivi na zona tórrida e nos climas temperados; estudei os costumes daqui e de lá; sucessivamente guerreio, poeta, escritor, filósofo e sempre sonhador…
Esta última existência foi para mim uma espécie de resumo de todas as que a precederam. Adquiri há pouco; ainda ontem gastava os tesouros acumulados numa série de existências, de observações e de estudos.
Sim, eu era espírita de coração e de espírito, se não de raciocínio. A preexistência para mim era um fato, a reencarnação uma lei, o Espiritismo uma verdade. Quanto às questões de detalhe, confesso de boa-fé não ter ligado a elas grande importância. Acreditava na sobrevivência da alma, na pluralidade de suas existências, mas jamais tentei aprofundar se ela podia, depois de haver deixado seu corpo mortal, manter, livre, relações com os que ainda estão ligados à cadeia. Ah! Victor Hugo disse com acerto: “A Terra não é senão a penitenciária do céu!…” Por vezes quebra-se a sua corrente, mas para a retomar. Seguramente não se sai daqui senão deixando aos guardas o cuidado de, chegado o momento, desatar os laços que nos prendem à provação.
Estou feliz, muito feliz, porque tenho a consciência de ter bem vivido!
Perdoai-me, senhores, é ainda Méry, o sonhador, que vos fala; e permiti que volte a uma reunião onde me sinto à vontade. Deve haver o que aprender convosco e, se me quiserdes receber no número de vossos ouvintes invisíveis, é com felicidade que ficarei entre vós, escutando, instruindo-me e falando, se se me apresentar ocasião.
J. Méry.
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[Index
Librorum prohibitorun et expurgandorum. — Elenco de livros
proibidos pela Igreja que se começou a fazer desde o IV Concílio
Lateranence, 1515.]