1. — O jornal Exposição Popular Ilustrada contém, em seu número 34, o artigo seguinte, a respeito das reflexões que fizemos acompanhar os dois artigos de nosso último número sobre o cura Gassner e os prognósticos, que tínhamos tomado desse jornal.
“A Revista Espírita é um jornal especial mensal que, há dez anos, sustenta corajosamente a luta contra a classe numerosa dos escritores e dos homens superficiais, que tratam, à porfia uns dos outros, os adeptos da fé nova de “iluminados, alucinados, papalvos, loucos, impostores, charlatães e, enfim, de partidários de Satã.” Como vedes, certos escritores gostam mais de insultar e ultrajar do que de discutir.
“Ó, meu Deus! todo esse vocabulário foi esgotado há trinta e cinco ou trinta e seis anos, contra os são-simonistas † e, se não erramos, a eloquência do Parquet foi posta de lado, e nos parece que o pai e um de seus ardentes discípulos foram atingidos por uma condenação que os deixou livres para dirigirem grandes administrações, terem assento no Instituto, serem elevados à dignidade de senador, levarem a tiracolo as insígnias de diversas condecorações, inclusive a cruz de honra, e que não lhes permite apenas tomar parte no Conselho Municipal de sua cidade, mas ainda de usar o direito cívico do voto.
“Bem vedes que o ultraje não significa grande coisa; contudo, também vedes bem que sempre resta alguma coisa; é uma espécie de calúnia. Ora, já disseram muito antes de nós, quando a calúnia não queima, sapeca.
“Voltemos aos espíritas. Quem sabe o que está reservado aos homens da escola espírita? Talvez os vejamos um dia fazendo a curta estrada para chegar às culminâncias do poder, como fizeram os senhores são-simonistas.
“Sempre há os que progridem (os espíritas), que engrossam as suas fileiras com homens sérios e inteligentes, magistrados reputados em seus corpos.
“Falamos hoje da Revista Espírita, porque a Revista Espírita houve por bem se ocupar de nós em seu último número (o de novembro)… Reproduziu diversas passagens de nosso vigésimo quarto número, relativas a uma correspondência sobre os taumaturgos, e apressou-se em protestar contra a qualificação de taumaturgo, que nós demos, em diversos outros artigos, ao curador Jacob [v. O zuavo curador do Campo de Châlons] e aos curadores passados, presentes e futuros, quando curassem fora da terapêutica científica.
“A Revista Espírita protesta contra a palavra taumaturgo, porque não admite que nada se faça fora das leis naturais…; mas me parece que é o que o nosso jornalzinho já disse mais de vinte vezes.
“Não há nada, nada, nada, fora das leis naturais.
“Tudo o que é, tudo o que acontece, tudo o que se produz é resultante de leis naturais, de fenômenos naturais, conhecidos ou desconhecidos.
“Sim, mil vezes sim, “os fenômenos que pertencem à ordem dos fatos espirituais não são mais miraculosos que os fatos materiais, considerando-se que o elemento espiritual é uma das forças da Natureza, assim como o elemento material”, dizeis vós.
“Sim, senhores, mil vezes sim, nós partilhamos o vosso sentimento; mas protestamos contra esta expressão elemento, como protestastes contra a qualificação de taumaturgo por nós dada a um espírita, consciente ou inconsciente.
“O vocábulo taumaturgo vos choca; dai-me outro, racional, lógico, compreensível… eu o aceitarei.
“Por consequência lógica, a palavra milagre deve vos chocar. Dai-me uma outra, para significar, para expressar o que significa, o que exprime a palavra milagre, e eu a adotarei.
“Mas enquanto o vosso, enquanto o nosso dicionário não for feito, nem
conhecido, há que se recorrer ao dicionário da Academia. [Dictionnaire
de l’Académie - Google Books.] Na verdade, senhores espíritas,
não nos devemos permitir a pretensão de ter outro vocabulário senão
o dos Senhores Quarenta [membros da Academia].
“Linguisticamente, academicamente falando, o que é um taumaturgo? um fazedor de milagres.
“O que é um milagre? — Um ato do poder divino, contrário às leis conhecidas da Natureza.
“Portanto, os senhores curadores, os Hohenlohe, os Gassner, os Jacob são taumaturgos, fazedores de milagres, porque agem fora das leis conhecidas da Natureza.
“Inventai, criai, dai, promulgai uma nova palavra e nós a adotaremos. Mas, até lá, permiti que conservemos o velho vocabulário e a ele nos conformemos até nova instrução. Não podemos fazer de outro modo.
“Sabeis como age Jacob? dizei-o. Se não o sabeis, fazei como nós: reconhecei que ele age fora das leis conhecidas da Natureza; portanto é taumaturgo.
“De nossa parte, como dissemos, protestamos contra a palavra elemento, por uma razão muito simples: é que declaramos ignorar completamente qual é e o que é o elemento espiritual, assim como não sabemos o que é o elemento material.
“No que respeita ao elemento espiritual, não reconhecemos senão o elemento criador: Deus… — Com toda a humildade, com toda a veneração, curvamos a cabeça e respeitamos o inexplicável mistério da encarnação do sopro de Deus em nós… limitando-nos a repetir o que dissemos: “Há em nós um desconhecido que somos nós, e que, ao mesmo tempo comanda o nosso eu matéria e lhe obedece.”
“Quanto ao elemento material, proclamamos com toda a força de nossa sinceridade que não estamos menos embaraçados… a criação do primeiro homem, da primeira mulher, enquanto seres materiais, é um mistério tão inextrincável quanto o da espiritualização deste ser criado.
“Véu de trevas, segredo do Criador, que não é permitido erguer, penetrar.
“O elemento primitivo é Deus, ou está em Deus… Não procuremos e, com o mais sábio dos doutores da Igreja, digamos: “Não busqueis penetrar este mistério: enlouqueceríeis.”
“Agora perguntamos aos senhores da Revista Espírita, aos que creem na dupla vista, na visão espiritual: por que se erguem contra os fenômenos físicos considerados como prognósticos de acontecimentos felizes ou infelizes?
“Dizeis que esses fenômenos em geral não têm qualquer ligação com as
coisas que parecem pressagiar. [Vide: Pressentimentos
e prognósticos.] Podem ser os precursores de efeitos físicos que
são a sua consequência, como um ponto negro no horizonte pode pressagiar
ao marinheiro uma tempestade, ou certas nuvens anunciar o granizo, mas
a significação destes fenômenos para as coisas da ordem moral, acrescentais,
devem ser classificadas entre as crenças supersticiosas, que nunca seriam
combatidas com demasiada energia.
“Explicai-vos um pouco melhor, senhores, porque aqui tocais uma das graves questões das ciências cabalísticas, das previsões proféticas.
“Dizei-nos francamente, lealmente, em que categoria classificais as influências
numéricas. Negai-as? contestai-as? acreditais nelas?… jamais refletistes
nestas questões? [v. A
ciência da concordância dos números e a fatalidade.]
“Tomai cuidado. Tudo se encadeia nos mistérios da Criação, no segredo das correlações dos mundos, das correlações planetárias. Acreditais em vós mesmos, no vosso eu espiritual, em vosso Espírito encarnado, e credes, também, nos Espíritos desencarnados: portanto, nos Espíritos que foram encarnados e que, depurados de sua encarnação precedente, esperam uma encarnação, não diremos mais celeste, mais divina, porém mais angélica… Eis a vossa fé. E, depois, parais a matemática divina e dizeis: Não creio nesta presciência regular, que atingiria o meu livre-arbítrio; não creio nestes cálculos de detalhe… Limitai-vos a duvidar, senhores; mas não negueis.
“Se estudásseis a história da Humanidade tomando por guia as concordâncias numéricas, ficaríeis esmagados e não mais ousaríeis dizer que essas crenças supersticiosas nunca seriam combatidas com demasiada energia.
“Podemos pôr sob os vossos olhos mais de quatro mil concordâncias numéricas, históricas, indiscutíveis. Fazei chegar um acontecimento, nascer ou morrer um ano mais cedo ou mais tarde, e a concordância cessa… Que lei as rege?… Mistério de Deus, segredo desconhecido da criatura…; e como tudo se liga e se encadeira, ousais, vós que na vossa qualidade de espírita deveis crer no magnetismo, no sono-atividade, no sonambulismo; vós que deveis crer no agente (e não elemento) espiritual, como podeis negar as leis desconhecidas que regem as relações dos mundos entre si?… Credes nas relações dos Espíritos encarnados com os Espíritos desencarnados! Então sede lógicos e não recueis diante de nenhuma possibilidade ainda oculta nas trevas do desconhecido.
“Voltaremos a esta questão, que não é nova, mas que sempre ficou nos limbos da Ciência. (Servimo-nos desta palavra intencionalmente).”
2.
RESPOSTA.
As razões pelas quais o Espiritismo repudia a palavra milagre, para
o que lhe diz respeito em particular, e em geral para os fenômenos que
não escapam das leis naturais, foram muitas vezes desenvolvidas, quer
em nossas obras sobre a doutrina, quer em vários artigos da Revista
Espírita. Estão resumidas na passagem seguinte, tirada do número
de maio de 1867. [Do
emprego da palavra milagre.]
“Em sua acepção usual a palavra milagre perdeu sua significação primitiva, como tantas outras, a começar pela palavra filosofia (amor à sabedoria), da qual hoje se servem para exprimir as ideias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo, até o materialismo mais absoluto. Ninguém duvida que, no pensamento das massas, milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos os que creem nos milagres se os encaram como efeitos naturais. A Igreja fixou-se de tal modo sobre este ponto que anatematiza os que pretendem explicar os milagres pelas leis da Natureza. A própria Academia define esta palavra: Ato do poder divino, contrário às leis conhecidas da natureza. — Verdadeiro, falso milagre. — Milagre comprovado. — Operar milagres. — O dom dos milagres.
“Para ser por todos compreendido, é preciso falar como todo o mundo. Ora, é evidente que se tivéssemos qualificado os fenômenos espíritas de miraculosos, o público se teria equivocado quanto ao seu verdadeiro caráter, a menos que, de cada vez, se empregasse um circunlóquio e dissesse que há milagres que não são milagres, como geralmente se entende. Visto que a generalidade a isto liga a ideia de uma derrogação das leis naturais, e que os fenômenos espíritas não passam da aplicação dessas mesmas leis, é muito mais simples e sobretudo mais lógico dizer sem rodeios: Não, o Espiritismo não faz milagres. Desta maneira, não há engano, nem falsa interpretação. Assim como o progresso das ciências físicas destruiu uma multidão de preconceitos e faz entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de efeitos outrora considerados miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de novas leis, vem ainda restringir o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe o último golpe, razão por que não é malvisto em parte alguma, como também não o são a astronomia e a geologia.”
Aliás, a questão dos milagres é tratada de maneira completa, e com
todos os desenvolvimentos que comporta, na segunda parte da nova obra
que publicamos sob o título de A Gênese, os milagres e as predições,
segundo o Espiritismo. [v.
Caracteres dos milagres.] A causa natural dos fatos reputados miraculosos,
no sentido vulgar da palavra, é explicada. Se o autor do artigo acima
se der ao trabalho de a ler, verá que as curas do Sr. Jacob e todas
as do mesmo gênero não são um problema para o Espiritismo que, desde
muito tempo, sabe como proceder neste ponto. É uma questão quase elementar.
A acepção da palavra milagre, no sentido de fato extranatural, está consagrada pelo uso. A Igreja a reivindica por sua conta, como parte integrante de seus dogmas; parece-nos, pois, difícil fazer esta palavra voltar à sua acepção etimológica, sem se expor a quiproquós. † Seria preciso, diz o autor, uma palavra nova. Ora, como tudo o que não está fora das leis da Natureza é natural, não vemos outra podendo abarcá-los todos senão a de fenômenos naturais.
Mas os fenômenos naturais, reputados miraculosos, são de duas ordens: uns dependem de leis que regem a matéria, outros de leis que regem a ação do princípio espiritual. Os primeiros são da alçada da Ciência propriamente dita, os segundos estão mais especialmente no domínio do Espiritismo. Quanto a estes últimos, como são, na maior parte, uma consequência dos atributos da alma, a palavra existe: são chamados fenômenos psíquicos; e quando combinados com os efeitos da matéria, poderiam ser chamados psíquicos-materiais ou semipsíquicos.
O autor critica a expressão elemento espiritual, pela razão, diz ele, de que o único elemento espiritual é Deus. A resposta para isto é muito simples. A palavra elemento não é aqui tomada no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constituinte de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem uma parte ativa na economia [organização] do Universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram em tal proporção na cifra de uma população; que o elemento religioso entra na educação; que na Argélia há o elemento árabe e o elemento europeu, etc. Por nossa vez, diremos ao autor que, por falta de uma palavra especial para esta última acepção do vocábulo elemento, é-se forçado a dele se servir. Aliás, como essas duas acepções não representam ideias contraditórias, como a do vocábulo milagre, não há confusão possível, pois a ideia radical é a mesma.
Se o autor se der ao trabalho de estudar o Espiritismo, contra o qual
constatamos com prazer que ele não tem uma ideia preconcebida de negação,
nele encontrará a resposta às dúvidas que parecem exprimir algumas partes
de seu artigo, quanto à maneira de encarar certas coisas, salvo, todavia,
no que concerne à ciência das concordâncias numéricas, da qual jamais
nos ocupamos, e sobre a qual, por conseguinte, não poderíamos ter opinião
formada. [Vide: A
ciência da concordância dos números e a fatalidade.]
O Espiritismo não tem a pretensão de dizer a última palavra sobre todas as leis que regem o Universo, razão por que jamais falou: Nec plus ultra. n Por sua própria natureza abre caminho a todas as novas descobertas, mas até que um princípio novo seja constatado, não o aceita senão a título de hipótese ou de probabilidade.