O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VI — Novembro de 1863.

(Idioma francês)

Pastoral do Sr. Bispo de Argel contra o Espiritismo.

(Sumário)

1. – Em data de 18 de agosto último, o Sr. Bispo de Argel  †  publicou uma brochura dirigida aos senhores curas de sua diocese, sob o título de Carta circular e pastoral sobre a superstição dita Espiritismon Citamos as passagens seguintes, acompanhadas de algumas observações.


“…Tínhamos pensado em adicionar modesta página a esses luminosos anais, exprobrando, das alturas do bom-senso e da fé, como o merece ser, o Espiritismo, que, tirado da mais velha e mais grosseira idolatria, vem abater-se sobre a Argélia.  †  Pobre colônia! n Após tão cruéis provas, ainda lhe era necessária uma deste gênero!”


Pobre colônia! com efeito, não seria ela muito mais próspera se, em vez de tolerarem e protegerem a religião dos nativos, houvessem transformado suas mesquitas e sinagogas em igrejas e não tivessem detido o zelo do proselitismo? É verdade que a guerra santa, guerra de extermínio como a das cruzadas, duraria ainda; que centenas de milhares de soldados teriam perecido; que, talvez, tivéssemos sido forçados a abandoná-la. Mas que é isto quando se trata do triunfo da fé! Ora, eis aqui um outro flagelo – o Espiritismo – que, em nome do Evangelho vem proclamar a fraternidade entre os diferentes cultos e cimentar a união, inscrevendo em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação. ( † )


“Mas considerações diversas, senhor cura, nos detiveram até hoje. A princípio hesitávamos em revelar esta vergonha nova, que se vem somar a tantas misérias, exploradas com amarga ironia pelos inimigos de nossa cara e nobre Argélia. Por outro lado, sabemos que o Espiritismo quase não penetrou entre nós senão em certas cidades, onde os desocupados se contam em maior número; onde a curiosidade, incessantemente excitada, se repasta avidamente de tudo quanto se apresenta com caráter de novidade; onde a necessidade de brilhar e de se distinguir da multidão nem sempre é estranha, mesmo a inteligências de maior ou menor alcance, ao passo que o maior número de nossas pequenas cidades e do nosso campo o ignoram e, por certo, nada têm a perder com isto, até o nome bizarro e pretensioso de Espiritismo. Enfim, pensamos que tais práticas jamais são destinadas a uma vida longa, porque a desilusão logo vem para os escândalos da imaginação, que morrem quase sempre de sua própria vergonha. Assim aconteceu com as trapalhices de Cagliostro e de Mesmer; assim se acalmou o furor das mesas girantes, sem deixar na retaguarda senão o ridículo de seus arrastamentos e de suas lembranças.”


Se o próprio nome do Espiritismo é desconhecido na maioria das pequenas cidades e nos campos da Argélia, a carta-circular do Sr. Bispo de Argel, espalhada em profusão, é um excelente meio de torná-lo conhecido, excitando a curiosidade que, por certo, não será detida pelo temor do diabo. Tal foi o efeito, bem comprovado, de todos os sermões pregados contra o Espiritismo que, de notória publicidade, contribuíram poderosamente para multiplicar os adeptos. A circular do Sr. Bispo de Argel terá efeito contrário? é mais que duvidoso. Lembramo-nos sempre desta palavra profética, tão bem realizada, de um Espírito a quem perguntávamos, há dois anos, por que meio o Espiritismo penetraria nos campos; ele nos respondeu: “Pelos padres. Voluntária ou involuntariamente? – A princípio involuntariamente; mais tarde, voluntariamente.

Lembramos ainda, quando da nossa primeira viagem a Lyon,  †  em 1860 [v. Banquete oferecido pelos espíritas lioneses a Allan Kardec por ocasião de sua visita a Lyon, a 19 de setembro de 1860. E seu retorno àquela cidade em 1861 O Espiritismo em Lyon], que os espíritas ali eram apenas algumas centenas. Naquele mesmo ano um sermão virulento foi pregado contra eles e nos escreveram: “Mais dois ou três sermões como este e logo seremos decuplicados.” Ora, como todos sabem, os sermões não têm faltado naquela cidade; e o que todos sabem, também, é que no ano seguinte havia cinco ou seis mil espíritas, contando-se mais de trinta mil deles dois anos mais tarde. Pobre cidade de Lyon! O que se sabe ainda é que a maioria dos adeptos se encontra entre os operários, que hauriram nesta doutrina a força para suportar pacientemente as rudes provas que atravessavam, sem buscar na violência e na espoliação o necessário que lhes faltava; é que hoje oram e creem na justiça de Deus, já que não creem na dos homens; é que compreendem a palavra de Jesus: “Meu reino não é deste mundo.”  ( † ) Dizei por que, com a vossa doutrina das penas eternas que preconizais como um freio indispensável, jamais contivestes qualquer excesso, ao passo que a máxima “Fora da caridade não há salvação” é onipotente! Queira Deus que jamais tenhais necessidade de vos colocardes sob sua égide! Mas se Deus ainda vos reservar dias nefastos, lembrai-vos de que aqueles mesmos a quem recusastes o pão da esmola, porque eram espíritas, serão os primeiros a partir convosco o seu pedaço de pão, porque compreendem esta palavra: “Perdoai aos vossos inimigos e fazei o bem aos que vos perseguem.”

Mas, então, que tem o Espiritismo de tão temível, uma vez que só se ocupa dos desocupados de algumas cidades? Desde que tais práticas jamais estão destinadas a uma vida muito longa? já que deve ter a sorte das trapalhices de Cagliostro, de Mesmer e das mesas girantes? Pelo que respeita a Cagliostro, é preciso deixá-lo fora da questão, considerando-se que o Espiritismo sempre lhe recusou qualquer solidariedade, mau grado a persistência de alguns adversários para vincular o seu ao nome do Espiritismo, como fazem com todos os charlatães e prestidigitadores. Quanto a Mesmer, é preciso estar muito pouco informado do que se passa para ignorar que o magnetismo está mais espalhado do que nunca, e que é hoje professado por notabilidades científicas. É verdade que agora pouco se ocupam das mesas girantes, mas é preciso convir que fizeram um belo caminho, pois foram o ponto de partida desta terrível doutrina, que causa tanta insônia a esses senhores. Elas foram o á-bê-cê do Espiritismo; se, pois, delas não mais se ocupam, é que não se precisa soletrar quando se sabe ler. Elas cresceram de tal maneira que não mais as reconhecereis.


2. – Depois de ter falado de sua viagem à França, que alcançou pleno sucesso, acrescenta o Sr. Bispo de Argel:


“Nossa primeira e incessante ocupação ao voltar era publicar uma instrução pastoral contra a superstição em geral e, em particular, contra a do Espiritismo, pois o Evangelho segundo Renan n só nos entreteve durante oito dias.”


Convenhamos que se trata de singular confissão. A obra do Sr. Renan, que mina o edifício por sua base, e que teve tão grande repercussão, não preocupou Sua Eminência senão durante oito dias, ao passo que o Espiritismo absorve toda a sua atenção. Diz ele: “Chego a toda pressa e, embora acabrunhado das fadigas de uma longa viagem sem repouso, estou sempre pronto para o combate. Temos um novo e rude adversário no Sr. Renan, mas este pouco nos inquieta; marchemos direto contra o Espiritismo, pois é assunto mais urgente.” É uma grande honra para o Espiritismo, pois é reconhecer que é muito mais temível e não o pode ser senão com a condição de ser lógico. Se não tivesse nenhuma base séria, como o pretende o Sr. Bispo, para que serviria esse aparato de forças? Já se viu dar tiros de canhão numa mosca que voa? Quanto mais violentos os meios de ataque, tanto mais exaltada é a sua importância. Eis por que não nos lastimamos.


“Soubemos, e não duvidamos, que verdadeiros cristãos, católicos sinceros imaginam poder associar Jesus-Cristo e Belial, os mandamentos da Igreja com os processos do Espiritismo.”


É um pouco tarde para vos aperceberdes, pois há três anos que o Espiritismo foi implantado e prospera na Argélia, onde não vai mal. Aliás, a brochura do Sr. Leblanc de Prébois, publicada em nome e para a defesa da Igreja, deve ter-vos informado que, segundo seus cálculos, hoje há na França vinte milhões de espíritas, isto é, a metade da população, e que em pouco tempo a outra metade será ganha. Ora, a Argélia faz parte da França. n


Diz a circular, dirigindo-se aos curas da diocese:


“Caso se encontrem espíritas em suas paróquias, independentemente da condição de cada um, geralmente incrédulos, mulheres vaidosas, cabeças vazias, formando sempre o grosso dos cortejos supersticiosos, que o padre não vacile em lhes declarar que não há nenhuma transação possível entre o catolicismo e o Espiritismo; que, em suas experiências, não pode haver senão uma destas três coisas: astúcia da parte de uns, alucinação da parte de outros ou, o que é pior, uma intervenção diabólica.”


Se não há transação possível, pior para o catolicismo do que para o Espiritismo, porque este ganha terreno diariamente, façam o que fizerem para o deter; e o que fará o catolicismo quando se realizar a previsão do Sr. Leblanc de Prébois? Se ele põe todos os espíritas à porta da Igreja, quem ficará lá dentro? Mas esta não é questão para o momento, que virá a seu tempo e lugar. O último trecho da frase tem grande alcance da parte de um homem como o Bispo de Argel, que deve pesar o sentido de todas as suas palavras. Segundo ele, não há no Espiritismo senão uma destas três coisas: astúcia, alucinação ou, o que é pior, intervenção diabólica. Notai bem que não são as três coisas juntas, mas somente uma das três é possível. O prelado não parece estar certo de qual, pois a intervenção diabólica não passa da pior. Ora, se é astúcia e alucinação, não é nada de sério, e não há intervenção do diabo; se é obra do demônio, é algo de positivo e, desse modo, não há astúcia nem alucinação. Na primeira hipótese é preciso convir que fazer tanto barulho por uma simples trapaça ou uma ilusão é bater-se contra moinhos de vento, papel pouco digno da gravidade da Igreja; no segundo é reconhecer ao diabo um poder maior que o da Igreja, ou à Igreja uma imensa fraqueza, já que não pode impedir o diabo de agir, como nem ela mesma pôde, apesar de todos os exorcismos, dele livrar os possessos de Morzine.


3. – “Nós lá estávamos, senhor cura, em nosso labor apostólico, quando recebemos numerosos artigos de jornais, brochuras, livros, e principalmente um discurso (o do Pe. Nampon), no qual, salvo as ideias gerais, encontramos a exposição muito clara de tudo quanto íamos dizer a seguir, a propósito do Espiritismo. Como não gostamos de refazer, sem necessidade, o que julgamos bem feito, nós vos exortamos a adquirir algumas destas obras e, pelo menos, um exemplar desse discurso, que vos esclarecerá suficientemente quanto aos processos, a doutrina e as consequências do Espiritismo.”


Estamos muito contentes por saber que a obra do Pe. Nampon é julgada pelos príncipes dos padres uma obra bem feita, de tal modo que, depois dela, não há nada melhor a fazer. É uma tranquilidade para os espíritas saber que o reverendo padre esgotou todos os argumentos e que nada pode ser acrescentado. Ora, como esses argumentos, longe de deter o avanço do Espiritismo, lhe recrutaram partidários, cabe aos seus antagonistas mostrar-se satisfeitos com tão pouco. Quanto a esclarecer suficientemente os senhores curas sobre a doutrina, não pensamos que textos alterados e truncados, dos quais o padre Nampon usou e abusou, como o demonstramos (Revista de junho de 1863), sejam apropriados a dar do Espiritismo uma ideia muito justa. É preciso faltar boas razões para usar semelhantes meios, que desacreditam a causa de quem deles se serve.


“Antes de tudo, não seria deplorável reencontrar na Argélia cristãos sérios que hesitassem em se pronunciar energicamente contra o Espiritismo? uns sob o pretexto de que há nele algo de verdadeiro? outros porque viram materialistas obstinados voltar à crença na outra vida, através do Espiritismo? Ilógica ingenuidade de ambos os lados!


Assim, nada representa levar à crença em Deus e na vida futura os materialistas obstinados; mesmo assim o Espiritismo não deixa de ser uma coisa má. Jesus, no entanto, disse que uma árvore má não pode dar bons frutos. Será, pois, um mau fruto dar a fé quem não a tem? Desde que não pudestes reconduzir esses incrédulos obstinados e o Espiritismo o conseguiu, qual a melhor das duas árvores? É evidente que sem o Espiritismo esses materialistas obstinados teriam continuado materialistas; e desde que o Sr. Bispo quer a todo o vapor destruir o Espiritismo, que reconduz as almas a Deus, é que aos seus olhos é preferível que essas almas, que não foram reconduzidas pela Igreja, morram na incredulidade. Isto nos lembra aquelas palavras pronunciadas do púlpito de uma pequena cidade: “Prefiro que os incrédulos fiquem fora da Igreja a nela entrarem pelo Espiritismo.” De modo algum são palavras do Cristo, que disse: “Misericórdia quero, e não sacrifício.” E estas outras, pronunciadas alhures: “Prefiro ver os operários saindo embriagados do cabaré do que sabê-los espíritas.” Isto é demência. Não nos surpreenderíamos se um acesso de fúria contra o Espiritismo produzisse uma verdadeira loucura.


“Se, mau grado a voz da consciência, homens educados nos princípios do Cristianismo e, infelizmente, os tendo esquecido, negado de coração e combatido em seus livros, tentassem condescender com esses princípios, admitindo uma imortalidade da alma, um purgatório e um inferno completamente diferentes da imortalidade da alma, do purgatório e do inferno dos Evangelhos, e ganhassem, pelo Espiritismo, algo para a fé e para salvação, que cristão poderia acreditar, desde que apenas puseram no lugar as mais sacrílegas blasfêmias da crença?”


Em que o purgatório dos espíritas difere do dos Evangelhos, já que os Evangelhos nada dizem sobre ele? Dele falam tão pouco que os protestantes, que seguem a letra do Evangelho, não o admitem. Quanto ao inferno, o Evangelho está longe de haver colocado as caldeiras ferventes que nele coloca o catolicismo e de ter dito, como nos ensinaram na infância, e como pregaram há três ou quatro anos em Montpellier,  †  que “os anjos retiram as tampas dessas caldeiras para que os eleitos se regozijem com a visão dos sofrimentos dos danados.” Eis um lado singular da beatitude dos bem-aventurados; não sabíamos que Jesus houvesse dito uma palavra a respeito. O Espiritismo, é verdade, não admite tais coisas; se isto é motivo de reprovação, que, então, seja reprovado!


“Far-lhes-eis compreender, igualmente, que o Espiritismo é a restauração das teorias pagãs, caídas no desprezo dos sábios, antes mesmo do aparecimento do Evangelho; que, introduzindo a metempsicose, ou transmigração das almas, ele mata a individualidade pessoal e reduz a nada a responsabilidade moral; que, destruindo a ideia do purgatório e do inferno eternamente pessoal, abre caminho a todas as desordens, a todas as imoralidades.”


Se algo foi tomado às teorias pagãs, certamente foi o quadro das torturas do inferno. Aliás, não vemos claramente como, depois de haver admitido um purgatório qualquer, neguemos a ideia do purgatório. Quanto à metempsicose dos Antigos, longe de a ter introduzido, o Espiritismo a tem combatido sempre, demonstrando-lhe a impossibilidade. Quando, pois, cessarão de fazer o Espiritismo dizer o contrário do que diz? A pluralidade das existências, que ele admite, não como um sistema, mas como uma lei da Natureza provada pelos fatos, daquela difere essencialmente. Ora, contra uma lei da Natureza, que é necessariamente obra de Deus, não há sistema que possa prevalecer, nem anátemas que a possam anular, assim como não anularam o movimento da Terra e os períodos da criação. A pluralidade das existências, o renascimento, se se quiser, é uma condição inerente à natureza humana, como a de dormir, e necessária ao progresso da alma. É sempre lamentável quando uma religião se obstina em ficar na retaguarda dos conhecimentos adquiridos, porque chega o momento em que, ultrapassada pela onda irresistível das ideias, ela perde o seu crédito e a sua influência sobre todos os homens instruídos. Julgar-se comprometida pelas ideias novas é confessar a fragilidade de seu ponto de apoio; é pior ainda quando se alarma diante do que chama uma utopia. É uma coisa curiosa, realmente, ver os adversários do Espiritismo esgrimindo para dizer que é um sonho vazio, sem alcance e sem vitalidade, e incessantemente gritar fogo!

Segundo a máxima: “Reconhece-se a qualidade da árvore pelo seu fruto”,  ( † ) a melhor maneira de julgar as coisas é estudar os seus efeitos. Se, pois, como pretendem, a negação do inferno eternamente pessoal abre caminho a todas as desordens e a todas as imoralidades, segue-se que: 1º – a crença nesse inferno abre caminho a todas as virtudes; 2º – quem quer que se entregue a atos imorais não teme as penas eternas, e se não as teme é porque nelas não crê. Ora, quem deve nele crer melhor do que os que as ensinam? quem deve estar penetrado desse medo, impressionado pelo quadro dos tormentos sem fim, mais do que os que, noite e dia, são embalados nesta crença? Onde esta crença e este medo deveriam estar em toda a sua força? onde deveria haver mais moderação e moralidade, senão no próprio seio da catolicidade? Se todos os que professam esse dogma e dele fazem uma condição de salvação estivessem isentos de reproches, certamente suas palavras teriam mais peso; mas quando se veem tão escandalosas desordens entre os mesmos que pregam o medo do inferno, forçoso é concluir que não acreditam no que pregam. Como esperam convencer os que se inclinam à dúvida? Matam o dogma por seu próprio exagero e por seu exemplo. A julgar por seus frutos, o dogma das penas eternas não os dá bons, prova de que a árvore é má; e entre esses maus frutos é preciso colocar o imenso número de incrédulos que ele faz diariamente. A Igreja nele se agarra como numa corda de salvação, mas a corda está tão gasta, que em breve deixará o barco à deriva. Se alguma vez a Igreja periclitar, será pelo absolutismo de seus dogmas do inferno, das penas eternas e da supremacia que ela confere ao diabo neste mundo. Se não se pode ser católico sem acreditar nesse inferno e na danação eterna, forçoso é reconhecer, a partir de hoje, que o número dos verdadeiros católicos está singularmente reduzido, e que mais de um Pai da Igreja pode ser considerado como manchado de heresia.


4. – “Não será inútil acrescentar, senhor cura, que a paz das famílias é gravemente perturbada pela prática do Espiritismo; que um grande número de cabeças por ele já perderam o senso e que as casas de alienados da América, Inglaterra e França regurgitam, desde já, por suas numerosas vítimas, de tal sorte que se o Espiritismo propagasse suas conquistas, seria necessário mudar o nome de sanatório para hospício.”


Se o Sr. Bispo de Argel tivesse colhido seus ensinamentos alhures, e não em fontes interessadas, teria sabido o que são esses supostos loucos e não se teria rendido ao eco de uma história inventada pela má-fé, em que o ridículo ressalta do próprio exagero. Um primeiro jornal falou de quatro casos, que teriam sido constatados num hospício [Vide: A loucura espírita]; outro jornal, citando o primeiro, elevou a cifra para quarenta; um terceiro, citando o segundo, elevou-a para quatrocentos e acrescenta que vão ampliar o hospício. Todos os jornais hostis repetem até não mais poder esta história. Depois o Sr. Bispo de Argel, movido pelo zelo, retomando-a em sua base, a aumenta ainda mais, dizendo que as casas de alienados da França, Inglaterra e América regurgitam de vítimas da nova doutrina. Coisa curiosa! ele cita a Inglaterra, um dos países onde o Espiritismo é menos espalhado e onde certamente há menos adeptos do que na Itália, na Espanha e na Rússia.

Que uma brochura efêmera e sem importância, que um jornal pouco exigente quanto às fontes noticiosas que publica, adiantem um fato arriscado por necessidade de ofício, nada é de admirar, embora seja imoral; mas um documento episcopal, com caráter oficial, só deveria conter coisas de uma autenticidade de tal modo comprovada, que deveria escapar até à suspeita de inexatidão, ainda que involuntária.

Quanto à paz das famílias perturbadas pela prática do Espiritismo, não conhecemos senão aqueles casos em que mulheres, ludibriadas por seus confessores, foram instigadas a abandonar o lar para se subtraírem às influências demoníacas trazidas por seus maridos espíritas. Em contrapartida, numerosos são os exemplos de famílias outrora separadas, cujos membros se reconciliaram depois dos conselhos de seus Espíritos protetores e sob a influência da doutrina que, a exemplo de Jesus, prega a união, a concórdia, a doçura, a tolerância, o esquecimento das injúrias, a indulgência para com as imperfeições alheias e restabelece a paz onde reinava a cizânia. Ainda aqui é o caso de dizer que se julga a qualidade da árvore pelo seu fruto. É um fato confirmado que, quando há divisão das famílias, a cisão parte sempre do lado da intolerância religiosa. [Vide: Exemplos da ação moralizadora do Espiritismo.]


5. – A carta pastoral termina pela seguinte ordenação:


“Por estas razões, e invocado o Espírito Santo, prescrevemos e ordenamos o que se segue:

“Art. 1º – A prática do Espiritismo ou a invocação dos mortos é proibida a todos e a cada um na diocese de Argel;

“Art. 2º – Os confessores recusarão a absolvição a quem quer que não renuncie a toda participação, seja como médium, seja como adepto, seja como simples testemunha às sessões privadas ou públicas, ou, enfim, a uma operação qualquer do Espiritismo;

“Art. 3º – Em todas as cidades da Argélia e nas paróquias rurais onde o Espiritismo se introduziu com algum brilho, os senhores curas lerão publicamente esta epístola do púlpito, no primeiro domingo após o seu recebimento. Aliás, por toda parte ela será comunicada em particular, conforme as necessidades.

“Argel, 18 de agosto de 1863.”


É a primeira ordenação lançada com vistas a interditar oficialmente o Espiritismo numa localidade. É de 18 de agosto de 1863. Esta data marcará nos anais do Espiritismo, como a de 9 de outubro de 1860, n dia para sempre memorável do auto-de-fé de Barcelona, ordenado pelo bispo dessa cidade. Como os ataques, as críticas e os sermões nada produziram de satisfatório, quiseram dar um golpe pela excomunhão oficial. Vejamos se o objetivo será mais bem atingido.

Pelo primeiro artigo, a ordenação é dirigida a todos e a cada um na diocese de Argel, isto é, a proibição de ocupar-se do Espiritismo é feita a todos os indivíduos sem exceção. Mas a população não se compõe apenas de católicos fervorosos; sem falar dos judeus, protestantes e muçulmanos, ela compreende todos os materialistas, panteístas, incrédulos, livres-pensadores, doutores e indiferentes, cujo número é incalculável; figuram no contingente nominal do catolicismo, porque nascidos e batizados nessa religião, mas, na realidade, eles mesmos abandonaram a Igreja; neste numero o Sr. Renan e tantos outros figuram na população católica. Assim, a ordenação não alcança todos os indivíduos, mas somente os que observam a mais estrita ortodoxia. Dar-se-á o mesmo em toda parte onde for feita semelhante proibição. Sendo, pois, materialmente impossível que uma interdição dessa natureza, venha de onde vier, atinja a população inteira, para um que for afastado do Espiritismo, haverá cem que dele continuarão se ocupando.

Depois põem de lado os Espíritos que vêm sem ser chamados, mesmo junto àqueles proibidos de os receber; que falam aos que não os querem ouvir; que passam através das paredes quando se lhes fecha a porta. Aí está a maior dificuldade, para a qual falta um artigo na ordenação acima. Esta diz respeito apenas aos católicos fervorosos. Ora, já o repetimos várias vezes, o Espiritismo vem dar fé aos que em nada creem ou que estão em dúvida. Aos que têm uma fé inabalável e aos quais esta é suficiente, ele diz: “Guardai-a e procurai não vos afastar dela.” Nunca diz a alguém: “Deixai a vossa crença para vir a mim”, pois tem bastante a colher no campo dos incrédulos. Assim, a proibição não pode atingir aos que se dirigem ao Espiritismo e só alcança aqueles a quem ele não se dirige. Como disse Jesus, “não são os sadios que necessitam de médico.” Se estes últimos vêm a ele, sem que o Espiritismo os busque, é que neste encontram consolações e certezas que não encontraram em parte alguma; neste caso, não levarão em conta a proibição.

Eis quase três meses que foi dada esta ordenação e já podemos apreciar os seus efeitos. Desde o seu aparecimento, mais de vinte cartas nos foram enviadas da Argélia, todas confirmando os resultados previstos. Veremos o que há no próximo número. [O Espiritismo na Argélia.]



[1] [Lettre circulaire et ordonnance de Mgr Pavy, évèque d’Alger, sur la superstition dile spiritisme, In-8º, 8 p. Alger, impr. et libr. Bastide ; Constantine, libr. Alessi et Arnolet ; Paris, libr. Challamel alné. – Vide também a primeira Instrução pastoral do Sr. Bispo de Argel sobre o Espiritismo e A morte do Sr. Bizet, cura de Sétif.]


[2][Vie de Jésus, par Ernest Renan - Google Books.]


[3] N. do T.: A Argélia deixou de ser colônia francesa em 1961.


[4] N. do T.: O auto-de-fé de Barcelona ocorreu em 9 de outubro de 1861.


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