1. — Uma carta de Lyon, † datada de 7 de dezembro de 1862, contém a passagem seguinte, que uma testemunha ocular e auricular nos confirmou verbalmente:
“Tivemos aqui o bispo do Texas, na América, que pregou terça-feira passada, 2 de dezembro, às oito horas da noite, na igreja de Saint-Nizier, † perante um auditório de cerca de duas mil pessoas, entre as quais se achavam numerosos espíritas. Ah! ele não parece bem instruído em nossa doutrina. Podemos julgá-lo por esta breve exposição:
“Os espíritas não admitem o inferno nem as preces nas igrejas; fecham-se em seus quartos e ali oram, sabe Deus que preces!… Só há duas categorias de Espíritos: os perfeitos e os ladrões; os assassinos e os canalhas… Venho da América, onde essas infâmias começaram. Pois bem! posso vos garantir que há dois anos ninguém mais se ocupa disso naquele país. Disseram-me que aqui, nesta cidade de Lyon, tão famosa por sua piedade, havia muitos espíritas. Isto não pode ser; não acredito. Estou certo, caros irmãos e caras irmãs, de que entre vós não há um só médium, porque, vede, os espíritas não admitem o casamento nem o batismo, e todos os espíritas estão separados de suas esposas, etc., etc.”
Estas poucas frases podem dar uma ideia do resto. Que teria dito o orador se soubesse que cerca de um quarto de seus ouvintes era composto de espíritas? Quanto à sua eloquência, só posso dizer uma coisa: é que em certos momentos parecia um frenesi; parecia perder o fio das ideias e não sabia o que queria dizer; se não temesse servir-me de um termo irreverente, diria que ele patinhava. Creio vivamente que fosse impelido por alguns Espíritos a dizer tais absurdos e de tal maneira que, eu vos garanto, ninguém se daria conta de estar num lugar santo; todos riam. Alguns de seus partidários saíram na frente, para julgar o efeito que o sermão havia produzido, mas não devem ter ficado muito satisfeitos, porquanto, uma vez lá fora, cada um ria e dizia o que pensava. Vários de seus amigos deploravam os desvios a que ele se entregara, compreendendo que o objetivo falhara completamente. Com efeito, não poderia ter agido melhor para recrutar adeptos e foi o que aconteceu imediatamente. Uma senhora, que se achava ao lado de uma boníssima espírita, de meu conhecimento, disse-lhe: “Mas o que são esse Espiritismo e esses médiuns de quem se fala tanto e contra os quais esses senhores estão tão furiosos?” Quando a coisa lhe foi explicada ela disse: “Oh! ao chegar em casa vou adquirir livros e tentar escrever.”
Posso assegurar-vos que se os espíritas são tão numerosos em Lyon é graças a alguns sermões desse gênero. Lembrai-vos de que há três anos, quando aqui não se contavam senão algumas centenas de espíritas, eu vos escrevi por causa de uma pregação furibunda contra a doutrina e que produziu excelente efeito: “Mais alguns sermões como este e em um ano decuplicará o número de adeptos.” Pois bem! hoje está centuplicado, graças, também, aos ignóbeis e mentirosos ataques de alguns órgãos da imprensa. Todo mundo, até o simples operário que, sob suas vestes grosseiras, tem mais bom-senso do que se crê, diz que não se ataca com tanto furor uma coisa que não vale a pena, razão por que quiseram ver por si mesmos. Ao reconhecerem a falsidade de certas afirmações, que denotavam ignorância ou malevolência, a crítica perdeu todo crédito e, em vez de afastar do Espiritismo, conquistou-lhe partidários. Esperamos que se dê o mesmo com o sermão do monsenhor do Texas, cuja maior inabilidade foi dizer que “todos os espíritas estão separados de suas esposas”, quando temos aqui, sob os nossos olhos, numerosos exemplos de casais outrora separados e que o Espiritismo restaurou a união e a concórdia. Cada um se diz, naturalmente, que desde que os adversários do Espiritismo lhe atribuem ensinos e resultados cuja falsidade é demonstrada pelos fatos e pela leitura de livros, que mostram exatamente o contrário, nada prova a veracidade das outras críticas. Creio que se os espíritas lioneses não temessem faltar com o respeito ao bispo do Texas, ter-lhe-iam votado uma carta de agradecimentos. Mas o Espiritismo nos torna caridosos, mesmo para com os inimigos.”
2. — Uma outra carta, de testemunha ocular, contém a seguinte passagem:
“O orador de Saint-Nizier partiu do princípio de que o Espiritismo já fez sua época nos Estados Unidos e que dele não se falava há dois anos. Era, pois, em sua opinião, uma questão de moda. Eram fenômenos sem consistência e não valiam a pena que fossem estudados; ele tinha procurado ver e nada vira. Todavia, assinalava a nova doutrina como atentatória aos laços de família, à propriedade, à constituição da sociedade e a denunciava como tal às autoridades competentes.
“Os adversários esperavam um efeito mais surpreendente, e não uma simples negação, enunciada de maneira tão ridícula, pois não ignoram o que se passa na cidade, a marcha do progresso e a natureza das manifestações. O assunto voltou a ser ventilado no domingo, 14, em Saint Jean, desta vez tratado um pouco melhor.
“O orador de Saint-Nizier tinha negado os fenômenos; o de Saint Jean reconheceu-os e afirmou: “Ouvem-se batidas nas paredes; no ar, vozes misteriosas; trata-se realmente de Espíritos, mas, que Espíritos? Não podem ser bons, pois os bons são dóceis e submissos às ordens de Deus, que proibiu a evocação dos Espíritos. Portanto, os que vêm só podem ser maus.”
“Havia cerca de três mil pessoas na igreja de Saint Jean; entre estas, pelo menos trezentas irão querer saber mais.
“O que certamente contribuirá para fazer refletirem as criaturas honestas ou inteligentes que compunham o auditório, são as singulares afirmações do orador — digo singulares por polidez. Disse ele: “O Espiritismo vem destruir a família, aviltar a mulher, pregar o suicídio, o adultério e o aborto, preconizar o comunismo, dissolver a sociedade.” Depois convidou os paroquianos, que acaso tivessem livros espíritas, que os trouxessem a certos senhores, que os queimariam, como São Paulo havia feito em Éfeso † com obras heréticas.
“Não sei se aqueles senhores encontraram muitas pessoas bastante zelosas para irem, com dinheiro na mão, despojar nossas livrarias. Alguns espíritas estavam furiosos; a maioria se regozijava, por compreender que era um grande dia.
“Assim, do alto da segunda cátedra da França, acabam de proclamar que os fenômenos espíritas são verdadeiros. Toda questão, pois, se reduz em saber se são bons ou maus Espíritos e se só aos maus Deus permite que venham.”
3. — O orador de Saint Jean afirma que só podem ser os maus. Eis um outro que pouco modificou a solução. Escrevem-nos de Angoulême † que quinta-feira, 5 de dezembro último, um pregador assim se exprimia em seu sermão: “Nós todos sabíamos que se podiam evocar os Espíritos, e isto há muito tempo; mas só a Igreja deve fazê-lo. Não é permitido aos outros homens tentar corresponder-se com eles por meios físicos; para mim é uma heresia.” O efeito produzido foi o contrário do que se esperava.
É, pois, evidente que os bons e os maus podem comunicar-se, porque se somente os maus tivessem tal poder, seria improvável que a Igreja se reservasse o privilégio de os chamar.
4. — Duvidamos que dois sermões, pregados em outubro último, em Bordeaux, † tenham servido melhor à causa dos nossos antagonistas. Eis a sua análise, feita por um ouvinte; os espíritas poderão ver se, sob esse disfarce, reconhecem sua doutrina e se os argumentos que lhes opõem são capazes de lhes abalar a fé. Quanto a nós, repetimos o que já temos dito alhures: Enquanto não atacarem o Espiritismo com melhores armas, ele nada deverá temer.
“Lamentarei sempre” — diz o narrador — “não ter ouvido o primeiro sermão, na capela Margaux, em 15 de outubro último, se estou bem informado. Conforme me contaram testemunhas dignas de fé, a tese desenvolvida foi esta:
“Os Espíritos podem comunicar-se com os homens. Os bons só se comunicam na Igreja. Todos quantos se manifestam fora da Igreja são maus, porque fora da Igreja não há salvação. — Os médiuns são infelizes, fizeram pacto com o diabo e dele obtêm, ao preço de sua alma, que lhe venderam, manifestações de toda sorte, ainda que extraordinárias, para não dizer miraculosas.” Passo em silêncio outras citações ainda mais estranhas; como eu mesmo não as ouvi, receio que tenham exagerado.
5. — “No domingo seguinte, 19 de outubro, tive a felicidade de assistir ao segundo sermão. Informei-me quanto ao nome do pregador e me disseram que era o Padre Lapeyre, da Companhia de Jesus.
“O Padre Lapeyre faz a crítica de O Livro dos Espíritos e, por certo, era preciso enorme dose de boa vontade para reconhecer essa obra admirável nas teorias desprovidas de bom-senso que o pregador pretendia ter achado. Limitar-me-ei a assinalar os pontos que mais me surpreenderam, preferindo ficar aquém da verdade a atribuir ao nosso adversário o que ele não teria dito ou eu teria compreendido mal.
“Segundo o Padre Lapeyre, “O Livro dos Espíritos prega o comunismo, a partilha dos bens, o divórcio, a igualdade entre todos os homens e, sobretudo, entre o homem e a mulher, a igualdade entre o homem e seu Deus, porque o homem, levado pelo orgulho que perdeu os anjos, não aspira a nada menos que se tornar semelhante a Jesus-Cristo; ele arrasta os homens ao materialismo e aos prazeres sensuais, pois o trabalho de aperfeiçoamento pode fazer-se sem o concurso de Deus, mau grado seu, por efeito desta força que quer que tudo se aperfeiçoe gradualmente; preconiza a metempsicose, essa loucura dos antigos, etc.”
“Passando em seguida à rapidez com se propagam as ideias novas, constata com horror quão astuto e habilidoso é o diabo que as ditou; quanto soube adorná-la com arte, de modo a fazê-las vibrar com força nos corações pervertidos dos filhos deste século de incredulidade e heresias. “Este século”, exclama ele, “ama tanto a liberdade! e vêm lhe oferecer o livre-exame, o livre-arbítrio, a liberdade de consciência! Este século ama tanto a igualdade! e lhe mostram o homem à altura de Deus! Ama tanto a luz! e de uma penada rasga-se o véu que ocultava os santos mistérios!”
“Depois ele atacou a questão das penas eternas e, sobre o assunto, palpitante de emoções, teve magníficos arroubos de oratória: “Acreditaríeis, meus caros irmãos, até onde chegou a imprudência desses filósofos novos, que pensam fazer desmoronar, ao peso dos sofismas, a santa religião do Cristo! Ah! os infelizes! dizem que não há inferno! dizem que não há purgatório! Para eles, nada de relações benditas que ligam os vivos às almas daqueles que perderam! Nada de sacrifício da missa! E por que o celebrariam? essas almas não se purificarão por si mesmas e sem nenhum trabalho, pela eficácia dessa força irresistível que incessantemente os atrai para a perfeição?”
“E sabeis quais as autoridades que vêm proclamar essas doutrinas ímpias, marcadas na fronte pelo sinal indestrutível desse inferno que queriam aniquilar? Ah! meus irmãos, são as mais sólidas colunas da Igreja: São Paulo, Santo Agostinho, São Luís, São Vicente de Paulo, Bossuet, Fénelon, Lamennais, e todos esses homens de escol, santos homens que, durante a vida, lutaram pelo estabelecimento das verdades inquebrantáveis, sobre as quais a Igreja estabeleceu os seus fundamentos, e que hoje vêm declarar que seu Espírito, desprendido da matéria, mais clarividente, percebeu que suas opiniões estavam erradas e que é exatamente o contrário que se deve crer.
6. — “Depois o pregador passou à questão que o autor da Carta de um católico dirige a um Espírito para saber se, praticando o Espiritismo, ele é herético. E acrescenta:
“Eis a resposta, meus irmãos; ela é curiosa, e o que a torna ainda mais singular, o que nos mostra de maneira mais evidente que o diabo, apesar de sua astúcia e habilidade, sempre se deixa trair, é o nome do Espírito que deu esta resposta. Eu vo-lo direi daqui a pouco.
“Segue a citação dessa resposta, que termina assim: “Estás de acordo com a Igreja em todas as verdades que te fortalecem no bem, que aumentam em tua alma o amor de Deus e o devotamento aos teus irmãos? Sim; pois bem: tu és católico.” Depois acrescenta: “Assinado… Zenon!… Zenon! um filósofo grego, um pagão, um idólatra que, do fundo do inferno onde se queima há vinte séculos, vem nos dizer que se pode ser católico e não acreditar neste inferno que o tortura e que aguarda a todos quantos, como ele, não morrerem humildes e submissos no seio da santa Igreja… Mas, insensatos e cegos que sois! com toda a vossa filosofia, não tereis senão esta prova, esta única prova que a doutrina que proclamais emana do demônio, que será mil vezes suficiente!”
“Depois de longas considerações sobre esta questão e sobre o privilégio exclusivo que tem a Igreja de expulsar os demônios, acrescenta:
“Pobres insensatos, que vos divertis em falar com os Espíritos e pretendeis exercer sobre eles alguma influência! Não temeis que, como aquele de que fala São Lucas, esses Espíritos batedores e espalhafatosos — e eles são bem classificados, meus caros irmãos — não vos perguntem também: E vós, quem sois? Quem sois para virdes nos perturbar? Credes que nos submetereis impunemente aos vossos caprichos sacrílegos? e que, tomando as cadeiras e as mesas que fazeis girar, eles não se apoderem de vós, como se apoderaram do filho de Sceva n e não vos maltratem a tal ponto que sejais forçados a fugir, nus e feridos, reconhecendo, mas tarde demais, toda a abominação que há em brincar com os mortos?
“Diante desses fatos tão patentes e que falam tão alto que nos resta fazer? Que temos a dizer? Ah! meus caros irmãos! guardai-vos cuidadosamente do contágio. Resisti com horror a todas as tentativas que os maus não deixarão de fazer para vos arrastar com eles ao abismo! Mas, ah! já é muito tarde para fazer tais recomendações; o mal já fez rápidos progressos. Esses livros infames, ditados pelo príncipe das trevas, a fim de atrair para o seu reino uma multidão de pobres ignorantes, de tal modo se espalharam que, como outrora em Éfeso, caso se computasse o preço dos que circulam em Bordeaux, tenho certeza de que ultrapassaria a enorme soma de cinquenta mil denários de prata (170.000 francos em nossa moeda; chamada de uma citação feita em outra parte do sermão). E eu não me surpreenderia se, entre os numerosos fiéis que me ouvem, não houvesse alguns que já foram arrastados à sua leitura. A estes só podemos dizer isto: Depressa! aproximai-vos do tribunal da penitência; depressa! vinde abrir os corações aos vossos guias espirituais. Cheios de doçura e bondade, e seguindo em todos os pontos o magnífico exemplo de São Paulo, apressamo-nos a vos dar a absolvição. Mas, como ele, não vo-la daremos senão com a condição expressa de nos trazerdes esses livros de magia que quase vos perderam. E que faremos desses livros, caros irmãos? sim, o que faremos com eles? Como São Paulo, faremos uma grande pilha em praça pública e nós mesmos atearemos o fogo.”
7. — Faremos apenas uma ligeira observação sobre esse sermão: é que o autor se engana de data e, talvez, novo Epimênides, dormiu desde o século quatorze. Outro fato que se destaca é a constatação do rápido desenvolvimento do Espiritismo. Os adversários de uma outra escola também o comprovam, desesperados, tão grande é o amor pela razão humana. Lê-se no Moniteur de la Moselle, † de 7 de novembro de 1862: “O Espiritismo faz perigoso progresso. Invade a alta, a média e a baixa sociedade. Magistrados, médicos, pessoas sérias também se entregam a esse equívoco.” Achamos essa asserção repetida na maior parte das críticas atuais; é que em presença de um fato tão patente, era preciso vir dos confins do Texas para avançar num auditório onde se acham mais de mil espíritas, que há dois anos disso não mais se ocupam. Então, por que tanta cólera se o Espiritismo está morto e enterrado? Pelo menos o Padre Lapeyre não tem ilusões. Seu temor até exagera a extensão do pretenso mal, pois avalia numa cifra fabulosa o valor dos livros espíritas espalhados apenas em Bordeaux. Em todo o caso, é reconhecer uma ideia muito poderosa. Seja como for, em presença de todas essas afirmações, ninguém nos tachará de exagero quando falamos dos rápidos progressos da doutrina. Que uns os atribuam ao poder do diabo, lutando vantajosamente contra Deus; os outros, a um acesso de loucura que invade todas as classes da sociedade, o círculo das pessoas sensatas vai se estreitando cada vez mais, de tal sorte que em breve não mais haverá lugar senão para alguns indivíduos; que uns e outros deplorem este estado de coisas, cada um do seu ponto de vista e se perguntem: “Aonde vamos, grande Deus?”, é um direito que lhes assiste. Disso resulta mais o fato que o Espiritismo vence todas as barreiras que lhe opõem. Portanto, se é uma loucura, em breve só haverá loucos na Terra. É conhecido o provérbio. Se é obra do diabo, logo só haverá danados; e se os que falam em nome de Deus não o podem deter, é que o diabo é mais forte que Deus. Os espíritas são mais respeitosos para com a divindade; não admitem que haja um ser capaz de lutar com ela de poder para poder e, sobretudo, vencê-la. De outro modo os papéis estariam invertidos e o diabo se tornaria o verdadeiro senhor do Universo. Dizem os espíritas que sendo Deus soberano absoluto, nada acontece no mundo sem a sua permissão. Assim, se o Espiritismo se espalha com a rapidez do relâmpago, façam o que fizerem para detê-lo, há que ver nele um efeito da vontade de Deus. Ora, sendo Deus soberanamente justo e bom, não pode querer a perda de suas criaturas, nem deixá-las cair em tentação, certo de que, em virtude de sua presciência, sucumbirão e serão precipitadas nos tormentos eternos. Hoje, o dilema está posto; está submetido à consciência de todos; o futuro se encarregará da conclusão.
Se fazemos estas citações é para mostrar a que argumentos estão reduzidos os adversários do Espiritismo para o atacar. Com efeito, é preciso estar privado de boas razões para recorrer à calúnia, como a que o representa pregando a desunião das famílias, o adultério, o aborto, o comunismo, a subversão da ordem social. Temos necessidade de refutar semelhantes asserções? Não; basta remeter ao estudo da doutrina, à leitura do que ela ensina, que é o que se faz em toda parte. Quem poderá acreditar que pregamos o comunismo depois das instruções que demos a respeito no discurso publicado in extenso no relatório de nossa viagem em 1862? Quem poderá ver nas palavras seguintes uma excitação à anarquia, encontradas na mesma brochura, página 58: “Em todo o caso, os espíritas devem ser os primeiros a dar exemplo de submissão às leis, caso a isso sejam convocados.”
Avançar tais coisas numa região distante, onde o Espiritismo fosse desconhecido, ou onde não houvesse nenhum meio de controle, poderia produzir algum efeito. Mas afirmá-las do alto da cátedra da verdade, em meio a uma população espírita, que aí dá incessantemente um desmentido pelos seus ensinos e seu exemplo, é falta de habilidade e não se pode deixar de dizer que é necessário estar tomado por singular vertigem para iludir-se a tal ponto e não compreender que, assim falando, se presta serviço à causa do Espiritismo.
Entretanto, seria erro acreditar seja esta a opinião de todos os membros do clero. Ao contrário, muitos há que não a compartilham e conhecemos bom número que deplora tais desvios, mais prejudiciais à religião que à Doutrina Espírita. São, pois, opiniões individuais, que não podem fazer lei. E o que prova que são apreciações pessoais é a contradição que existe entre elas. Assim, enquanto um declara que todos os Espíritos que se manifestam são necessariamente maus, pois desobedecem a Deus, comunicando-se, outro reconhece que há bons e maus, mas que só os bons vão à Igreja, e os maus, ao vulgo. Um acusa o Espiritismo de aviltar a mulher; outro o censura por elevá-la ao nível dos direitos do homem. Um pretende que “arrasta os homens ao materialismo e aos prazeres sensuais”, e um outro, o Sr. cura Marouzeau, reconhece que destrói o materialismo.
8. — Em sua brochura [Marouzeau (L’abbé) Réfutation complète de
la doctrine spirite.] assim se exprime o abade
Marouzeau:
“Na verdade, a dar ouvidos aos partidários das comunicações de além-túmulo, seria preconceito do clero combater o Espiritismo a qualquer preço. Por que supor que os padres tenham tão pouca inteligência e bom-senso e uma mente estúpida? Por que acreditar que a Igreja, que em todos os tempos deu tantas provas de prudência, sabedoria e alta inteligência para discernir o verdadeiro do falso, seja hoje incapaz de compreender o interesse de seus filhos? Por que condená-la sem a ouvir? Se ela recusa reconhecer a vossa bandeira, é que esta não é a dela; tem cores que lhe são essencialmente hostis; é que, ao lado do bem que fazeis, combatendo o horrendo materialismo, ela vê um perigo real para as almas e a sociedade.” E mais adiante: “Concluamos de tudo isto que o Espiritismo deve se limitar a combater o materialismo e a dar ao homem provas palpáveis de sua imortalidade, por meio de manifestações de além-túmulo bem constatadas.”
9. — De tudo isto resulta um fato capital: é que todos esses senhores estão de acordo sobre a realidade das manifestações; apenas cada um as aprecia a seu modo. Negá-las, com efeito, seria negar a verdade das Escrituras e os próprios fatos sobre os quais se apoia a maioria dos dogmas. Quanto à maneira de encarar a coisa, desde já é possível constatar em que sentido se faz a unidade e se pronuncia a opinião pública, que também tem o seu veto. Ressalta ainda outro fato: é que a Doutrina Espírita agita profundamente as massas; enquanto uns nela veem um fantasma terrível, outros enxergam o anjo da consolação e da libertação e uma nova era de progresso moral para a Humanidade.
10. — Já que citamos a brochura do abade Marouzeau, talvez perguntem por que ainda não a respondemos, uma vez que nos foi dirigida pessoalmente. Os motivos podem ser vistos no nosso relatório de viagem, a propósito das refutações. Quando tratamos de uma questão, fazemo-lo do ponto de vista geral, abstraindo das pessoas que, aos nossos olhos, não passam de individualidades que se apagam diante das questões de princípio. Oportunamente falaremos do Sr. Marouzeau, assim como de alguns outros, quando examinarmos o conjunto das objeções. Para isto era útil esperar que cada um se tivesse manifestado, com maior ou menor competência — e vimos acima alguns bem competentes — para apreciar a força da oposição. Respostas especiais e individuais teriam sido prematuras e incessantemente repetidas. A brochura do Sr. Marouzeau era um tiro de fuzil. Pedimos-lhe desculpas por colocá-lo na classe dos simples atiradores; mas sua modéstia cristã não ficará ofendida. Prevendo esse levante, pareceu-nos conveniente deixar que descarregassem todas as armas, mesmo a artilharia pesada que, como se vê, acaba de ser dada, a fim de julgar do seu alcance. Ora, até o momento não temos por que lamentar as baixas que ela fez em nossas fileiras, porquanto, ao contrário, seus tiros ricochetearam contra ela. Por outro lado, não era menos útil deixar desenhar-se a situação, e hão de convir que, de dois anos para cá o estado das coisas, longe de piorar, diariamente nos traz novas forças. Responderemos, pois, quando julgarmos oportuno [v. Primeira carta ao padre Marouzeau]. Até agora não houve tempo perdido; sem isso temos ganhado terreno incessantemente e os próprios adversários se encarregam de tornar mais fácil a nossa tarefa. Devemos somente deixá-los agir.
[1] [Os filhos de Scéva eram dois exorcistas judeus.]