O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VI — Julho de 1863.

(Idioma francês)

Primeira carta ao Padre Marouzeau.

(Sumário)


1. — Senhor vigário,

Admirai-vos de que depois de dois anos eu não tenha respondido à vossa brochura contra o Espiritismo; n laborais em erro, pois desde a sua aparição tenho tratado, em vários artigos de minha Revista, da maioria das questões que levantais. Bem sei que teríeis desejado uma resposta pessoal, uma contrabrochura; que eu tivesse tomado um a um os vossos argumentos, para vos dar o prazer da réplica. Ora, eu cometi o erro irreparável de nem mesmo vos citar; mas vossa modéstia, tenho certeza, não o considera um crime. Reparo hoje esta omissão, mas não penseis que seja para entabular convosco uma polêmica. Não; limito-me apenas a algumas reflexões simples e a vos explicar os meus motivos.

Antes de mais, dir-vos-ei que se não respondi diretamente à vossa brochura, foi porque me havíeis anunciado que ela deveria enterrar-nos vivos. Quis eu, então, aguardar o acontecimento e constato com prazer que não estamos mortos; que até o Espiritismo está um pouco mais vivaz que antes; que o número das sociedades se multiplica em todos os países; que por toda parte onde pregaram contra ele cresceu o número de adeptos; que tal crescimento está na razão da violência dos ataques. Não são hipóteses, mas fatos autênticos que, na minha posição e pela amplitude de minhas relações, ninguém melhor do que eu para o verificar.  Além disso, constato que os indigentes aos quais os padres zelosos tinham proibido de receber vales de pão dados pelos espíritas caridosos, porque era o pão do diabo, não morreram por os haver comido; que os padeiros aos quais tinham dito para não os receber, porque o diabo lhos roubaria, não perderam um só; que os industriais aos quais, sempre por zelo evangélico, quiseram cortar os víveres, roubando-lhes as suas práticas, acharam uma compensação nos novos clientes, que lhes valeram o aumento do número de adeptos. Não tenho dúvida de que desaprovais esta maneira de atacar o Espiritismo, mas os fatos estão aí. Havereis de convir que tais meios não são muito adequados para trazer à religião os que dela se afastam; o medo pode deter momentaneamente, mas é um laço frágil, que se desfaz na primeira oportunidade. Os únicos laços sólidos são os do coração, cimentados pela convicção; ora, a convicção não se impõe pela força.

Sabeis, senhor vigário, que a vossa brochura foi seguida de grande número de outras. A vossa tem, sobre muitas, um mérito: o da perfeita urbanidade. Quereis matar-nos polidamente e vos sou grato por isso. Mas em toda parte os argumentos são os mesmos, enunciados mais ou menos polidamente e num francês mais ou menos correto. Para as refutar todas, artigo por artigo, teria sido preciso que me repetisse sem cessar e, francamente, tenho coisas mais importantes a fazer. Ademais, isto não teria utilidade e ireis compreendê-lo.


2. — Sou um homem positivo, sem entusiasmo, que tudo julga friamente. Raciocino de acordo com os fatos e digo: Já que os espíritas são mais numerosos que nunca, apesar da brochura do Sr. Marouzeau e de todas as outras, e malgrado todos os sermões e pastorais, é que os argumentos invocados não convenceram as massas, provocando efeito contrário. Ora, julgar do valor da causa por seus efeitos, creio que é lógica elementar. Desde então, para que os refutar? Já que nos servem, em vez de nos prejudicar, devemos abster-nos de lhes opor obstáculo. Vejo as coisas de um ponto de vista diverso do vosso, senhor vigário. Como um general que observa o movimento da batalha, julgo a força dos golpes, não o ruído que fazem,. mas o efeito que produzem; é o conjunto que vejo. Ora, o conjunto é satisfatório; eis tudo o que é preciso. Assim, as respostas individuais não teriam utilidade. Quando trato de uma maneira geral das questões levantadas por algum adversário, não é para o convencer, coisa com que não me preocupo absolutamente, e ainda menos para o fazer renunciar à sua crença, que respeito quando sincera: é unicamente para a instrução dos espíritas e porque encontro um ponto a desenvolver ou a esclarecer. Refuto os princípios e não os indivíduos; os primeiros ficam e os indivíduos desaparecem, razão por que pouco me inquieto com personalidades que amanhã talvez não mais existam e das quais não mais se fale, seja qual for a importância que procurem dar-se. Vejo muito mais o futuro que o presente, o conjunto e as coisas importantes mais que os fatos isolados e secundários. Aos nossos olhos, reconduzir ao bem é a verdadeira conversão. Um homem arrancado às suas más inclinações e reconduzido a Deus e à caridade para com todos pelo Espiritismo é, para nós, a mais útil vitória; é a que nos causa a maior alegria e agradecemos a Deus por no-la dar tantas vezes. Para nós a mais honrosa vitória não consiste em afastar um indivíduo de tal ou qual culto, desta ou daquela crença, pela violência ou pelo medo, mas de o subtrair do mal pela persuasão. Valorizamos, sobretudo, as convicções sinceras e não as obtidas pela força ou que são apenas aparentes.


3. — É assim, por exemplo, que em vossa brochura perguntais quais os milagres que o Espiritismo pode invocar em seu favor. Respondi pela Revista no número de fevereiro de 1862, por meio do artigo intitulado: O Espiritismo é provado pelos milagres?, respondendo, ao mesmo tempo, a todos os que fizeram a mesma pergunta. Pedis milagres ao Espiritismo? Mas haverá um maior que sua incrível propagação, a despeito de todos os obstáculos, apesar dos ataques de que é objeto e, sobretudo, dos golpes tão terríveis que lhe desferistes? Não está aí um fato da vontade de Deus? “Não”, direis vós, “é a vontade do diabo.” Então havereis de convir que a vontade do diabo é maior que a de Deus, e que é mais forte que a Igreja, visto que esta não o pode deter. Mas não é o único milagre que faz o Espiritismo; ele os faz todos os dias, trazendo os incrédulos a Deus, convertendo a Deus os que se entregam ao mal, dando-lhes a força de vencer as paixões más. Vós lhe pedis milagres! Mas o fato relatado acima, do jovem A… não é um? Por que a religião não fez, deixando que o Espiritismo o fizesse, isto é, o diabo? — Não está aí o que se chama um milagre. — Mas a Igreja não qualifica certas conversões de miraculosas? — Sim, mas são conversões de heréticos à fé católica. — De sorte que, para vós, a conversão do mal ao bem não é um milagre; preferiríeis um sinal material: a liquefação do sangue de um santo qualquer, a cabeça de uma estátua que se move numa igreja, uma aparição no céu, como a cruz de Migné. O Espiritismo não faz essas espécies de milagres; os únicos aos quais liga um valor infinito e dos quais faz a sua glória, são as transformações morais que opera.

Senhor vigário, o tempo urge e o espaço me falta; de outra vez direi ainda algumas palavras que vos poderão servir para a nova obra que preparais e que deve aniquilar para sempre o Espiritismo e os espíritas. Desejo-lhe melhor sorte que à primeira. Algumas passagens deste número talvez vos possam esclarecer quanto às dificuldades que tereis de superar para vencer. [Vide: Segunda carta ao padre Marouzeau.]

Recebei, etc.

Allan Kardec.



[1] [Marouzeau (L’abbé) Réfutation complète de la doctrine spirite.]


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