1.
A noite ia avançada, mas o nosso Instrutor, vagueando o olhar em torno,
parecia consultar a paisagem externa, ensimesmado, pensativo…
2 Logo após, fitou, enternecido,
a filha espiritual que passara a convalescer em brando e defendido repouso.
Orou, longamente, junto dela, na câmara íntima e, em seguida, veio anunciar-nos
o instante da partida.
3 Aves tornando ao ninho de
esperança e de paz, deveríamos, agora, transportar conosco outros pássaros
de asas semimutiladas que a tormenta das paixões ameaçava. Todos os
corações, ali socorridos, demandariam, junto de nós, outros campos de
ação regenerativa e redentora.
4 Aquelas entidades sofredoras
e amigas, ainda mesmo as que se conservavam nas imediações da loucura
pelos desequilíbrios do sentimento a que se haviam confiado, tinham
lágrimas de alegria e reconhecimento nos olhos. Em cada uma palpitava
o anseio de retificação e de vida nova. Por isto mesmo, talvez, cravavam
o olhar inquieto e jubiloso em nosso orientador, como que a lhe devorarem
as palavras.
5 — Todos os companheiros
incorporados à nossa missão destes dias, — avisava Gúbio, paternal,
— desde que se mantenham perseverantes no propósito de autorrestauração,
seguem ao nosso lado, com acesso aos Círculos de trabalho condigno,
onde estudantes do bem e da luz lhes acolherão, com simpatia, as aspirações
de vida superior. 6
Espero, contudo, que não aguardem milagres na Esfera próxima. 7
O trabalho de reajustamento próprio é artigo de lei irrevogável, em
todos os ângulos do Universo. 8
Ninguém suplique protecionismo a que não fez jus, nem flores de mel
às sementes amargas que semeou em outro tempo. 9
Somos livros vivos de quanto pensamos e praticamos e os olhos cristalinos
da Justiça Divina nos leem, em toda parte. 10
Se há um ministério humano, na Crosta da Terra, determinando sobre as
vidas inferiores da gleba planetária, temos, em nossas linhas de ação,
o ministério dos anjos, dominando em nossos caminhos evolutivos. 11
Ninguém trai os princípios estabelecidos. Possuímos agora o que ajuntamos
no dia de ontem e possuiremos amanhã o que estejamos buscando no dia
de hoje. 12 E como
emendar é sempre mais difícil que fazer, não podemos contar com o favoritismo,
na obra laboriosa do aprimoramento individual, nem provocar solução
pacífica e imediata para problemas que gastamos longos anos a entretecer.
13 A prece ajuda,
a esperança balsamiza, a fé sustenta, o entusiasmo revigora, o ideal
ilumina, mas o esforço próprio na direção do bem é a alma da realização
esperada. 14 Em razão
disso, ainda aqui, a bênção do minuto, a dádiva da hora e o tesouro
das oportunidades de cada dia hão de ser convenientemente aproveitados
se pretendemos santificadora ascensão. 15
Felicidade, paz, alegria, não se improvisam. Representam conquistas
da alma no serviço incessante de renovar-se para a execução dos Desígnios
Divinos. 16 Felizmente,
desde agora estamos abrigados no santuário da boa vontade e, ainda neste
instante, cabe-nos não esquecer a promessa evangélica: “quem perseverar
até ao fim, será salvo”. ( † )
17 A Graça Celestial,
sem dúvida, é um sol permanente e sublime. Urge, porém, a criação de
qualidades superiores em nós, para fixar-lhe os raios e recebê-los.
18 Doce intervalo mostrou-nos
o júbilo reinante.
Salutar otimismo transbordava de todos os rostos.
19 Saldanha, de olhos fitos
em nosso dirigente, confundia-nos pelo pranto de contrição purificadora,
a correr-lhe, abundante, dos olhos.
20 Antes que o nosso Instrutor
pudesse retomar o fio da palavra encorajadora e vigilante, algumas irmãs
entoaram formoso hino de louvor à bondade do Cristo, com visível desassombro
no olhar firme, dantes ansioso e dorido, enchendo-nos o coração de intraduzível
bem-estar.
21 Raios de safirina luz derramaram-se
profusamente sobre nós, enquanto as vozes harmoniosas e singelas se
espalhavam, em derredor, tangendo-nos as fibras mais recônditas, nos
recessos do ser.
2.
Terminado o cântico melodioso e tocante que nos recordava os pensamentos
sublimes de inolvidável Salmo de David, n o
Instrutor retomou a palavra e informou que, não obstante as santificadas
alegrias daquela hora, a batalha não estava finda.
2 Faltava-nos o epílogo, esclareceu
com inflexão mais grave na voz.
3 Matilde antecipara-se, de
modo a esperar-nos em região intermediária, em cujo clima vibracional
lhe seria possível materializar-se, de novo, aos olhos de todos, realizando
o sonhado reencontro espiritual com o filho de outras eras que, a breve
tempo, nos procuraria na condição de vingador.
4 Evidenciando manifesta
preocupação no olhar muito lúcido, o nosso orientador prosseguiu esclarecendo
que Gregório, ciente das novidades havidas no drama de Margarida e informado
acerca da renovação de muitos companheiros e colaboradores dele, agora
francamente inclinados ao bem, entediados da ignorância e do ódio, da
perversidade e da insensatez, se revoltara contra ele Gúbio, dispondo-se
a buscá-lo para um ajuste de que se julgava credor. 5
Explicou, emocionado, que num duelo espiritual, como aquele a esboçar-se,
esperava de todos nós o auxílio eficiente da prece e das emissões mentais
de amor puro. Não deveríamos receber os doestos e insultos de Gregório
por ofensas pessoais, nem levar suas atitudes à conta de maldade ou
grosseria. Competia-nos observar-lhe nos gestos de incompreensão a dor
que se lhe cristalizara no Espírito oprimido e inconformado, vendo-lhe
nas palavras, não a maldade deliberada, mas, sim, a eclosão de uma revolta
doentia e infeliz que não poderia prejudicar e ferir senão a ele próprio.
6 O pensamento é uma
força vigorosa, comandando os mínimos impulsos da alma e, se nos entregássemos
à reação espiritual, armada de ódio ou desarmonia, pactuaríamos com
a violência, impedindo, não só a manifestação providencial de Matilde,
a benfeitora, mas também a renovação de Gregório, que guardava a inteligência
centralizada no mal. 7
Emissões de mágoa ou revide colocar-nos-iam em trabalho contraproducente.
As vibrações de amor fraternal, quais as que o Cristo nos legou, são
as verdadeiras energias dissolventes da vingança, da perseguição, da
indisciplina, da vaidade e do egoísmo que atormentam a experiência humana.
8 Além disso, — tornou
o Instrutor bondoso, — cumpria-nos considerar que aquela mente transviada
do trilho divino se caracterizava muito mais pela moléstia do orgulho
ferido e impenitente, que pela perversidade. 9
Gregório era tão somente um infeliz, quanto nós mesmos em passado próximo
ou remoto, acicatado por rebeliões e remorsos interiores a lhe desajustarem
os sentimentos. Merecia, por isso mesmo, nossa dedicação carinhosa e
confortadora, ainda mesmo que nos visitasse com aparências de celerado
ou de louco. 10 Nossa
conduta, aliás, nada apresentava de surpreendente, em semelhante capítulo,
porque não fora para ensinar-nos outras lições que o Cristo trabalhara
em benefício de todos e padecera na cruz, sem ninguém.
11 Notificou-nos, ainda, que
o sacerdote das sombras se faria acompanhar, em sua vinda até nós, de
muitos companheiros tão envenenados mentalmente quanto ele, e que, contra
essa equipe de criaturas inimigas da luz, cabia-nos formar um todo de
defesa harmônica, através da fraternidade legítima, da oração intercessora
e do amor espiritual que se compadece e age em favor da restauração
do bem.
12 Valendo-se da pausa
que se impusera, natural, Saldanha perguntou ao nosso mentor se não
devíamos organizar pelo menos um movimento coordenado de repulsão enérgica,
ao que o dirigente, sábio e amigo, respondeu, sorrindo:
13 — Saldanha, em companhia
do Mestre que abraçamos, só há lugar para o trabalho sadio, com entendimento
das lições de sacrifício e iluminação que nos deixou. Não acredites
que um golpe possa desaparecer com outro golpe. Não se cura a ferida,
aprofundando o sulco da carne em sangue. A cicatriz abençoada surge
sempre à custa de enfermagem, remédio ou retificação, com ascendentes
de amor. Quem pretende o Reinado do Cristo entrega-se a Ele. Somos servos.
A defesa, qualquer que seja, pertence ao Senhor.
O ex-perseguidor calou-se, humilde.
3.
Decorridos alguns minutos, algo constrangidos afastamo-nos, em bloco,
da vivenda em que tantos ensinamentos preciosos havíamos recebido.
2 Amparados os mais doentes
naqueles que se mostravam mais fortes, retiramo-nos, cautelosos, pondo-nos
a caminho da zona preestabelecida.
3 Duas horas de jornada, sob
a supervisão de Gúbio perfeitamente treinado em experiências daquela
natureza, conduziram-nos ao local desejado.
4 O campo, em torno, era singularmente
belo.
Verdejante planalto, coroado de luar, convidava-nos à meditação e à prece, e brisas ligeiras e frescas da madrugada como que nos bafejavam o cérebro convidando-nos a reconfortar as fontes do pensamento.
5 Nosso Instrutor
fez-nos sentar em semicírculo, compelindo-nos a recordar várias cenas
evangélicas e informou, com visível emoção, que, segundo mensagem particular
por ele registada, Gregório e os dele já se haviam colocado em nosso
encalço e que, se alguns dos companheiros procurassem evitar-lhe a presença,
qualquer fuga, em nosso agrupamento, se fazia impraticável, em virtude
de a elevada percentagem de peregrinos, ali reunidos, se revelarem incapazes
de volitação em alto plano, pela densidade do padrão mental em que se
mantinham. Cabia-nos, pois, agora, a atitude de oração e expectativa
amorosa de quem sabia compreender, ajudar e perdoar.
6 Do zimbório estrelejado
desciam valiosos estímulos para nós.
Constelações tremeluziam distantes, enquanto a lua, silenciosa e bela, parecia disposta a testemunhar-nos o esforço cristão.
7 Reparei que o nosso dirigente,
insulado na relva macia, assumia a mesma posição de instrumento mediúnico,
qual acontecera na reunião que vínhamos de efetuar, porque me entregou,
confiante, a direção da assembleia, o que aceitei, dentro de preocupação
extrema, embora sem hesitar.
8 Providenciada semelhante
medida, Gúbio passou a elevada condição mental, por intermédio da oração.
Acompanhamo-lo, reverentes. Não havia gosto para conversações estranhas ao problema delicado daquela hora.
9 Demorávamo-nos em observação
expectante, quando ruído longínquo nos anunciou a alteração dos acontecimentos.
10 O Instrutor, não obstante
palidíssimo, dando-nos a ideia de que já se achava em comunicação com
entidades superiores e imperceptíveis ao nosso olhar, mais uma vez nos
exortou ao silêncio, à paciência, à serenidade e à prece, recomendando-nos
seguir todos os fatos, sem revolta, sem mágoa e sem desânimo.
4. Não foi preciso esperar muito.
2 Alguns minutos
se desdobraram apressados e Gregório, com algumas dezenas de assalariados,
surgiu em campo, investindo-nos com palavrões que se caracterizavam
pela dureza e violência. 3
Os recém-chegados apareceram acompanhados de grande cópia de animais,
em maioria monstruosos.
4 Noutras circunstâncias,
sem a bênção do aviso salutar, provavelmente teríamos debandado, mas
Gúbio, cuja superioridade conhecíamos por experiência própria, ali se
mantinha, resoluto e imperturbável, emitindo ondas de luminosidade intensa,
veiculando forças magnéticas, imponderáveis, que, dirigidas sobre nós,
como que nos supria de recursos necessários ao procedimento irrepreensível.
5 Por mim, ao reparar as máscaras
sinistras que se abeiravam de nós, confesso que, em tempo algum, senti
tamanha ameaça de medo e tão profundo contágio de confiança.
6 O sacerdote das sombras
avançou para o nosso orientador, à semelhança de general parlamentando
na praça, antes de começar a batalha, e acusou sem rodeios:
7 — Miserável hipnotizador
de servos ingênuos, onde se alinham tuas armas para o duelo desta hora?
8 Não contente em prejudicar-me
os projetos mais íntimos, num problema de ordem pessoal, aliciaste numerosos
colaboradores meus, em nome de um Mestre que não ofereceu aos que o
acompanharam senão sarcasmo, martírio e crucificação! 9
Acreditas, porventura, esteja eu disposto, por minha vez, a aceitar
princípios que relaxam a dignidade humana? Admites, acaso, permaneça,
a meu turno, fascinado pelos feiticeiros de tua estirpe? 10
Traidor da palavra empenhada, confundir-te-ei os poderes de bruxo desconhecido!
Não creio no amor açucarado que elegeste por senha de luta! Creio na
força que governa a vida e que te dobrará, igualmente, aos meus pés!
11 Percebendo que o nosso orientador
não se erguia, como que chumbado ao solo, compelido por indefinível
prostração, não obstante cercado de intensa luz, o sacerdote dos mistérios
negros, acariciando os copos da espada luzente, acentuou, irado:
12 — Covarde, não
te levantas para ouvir-me a acusação justa e digna? Perdeste também
o brio, semelhando-te a quantos te antecederam no movimento de humilhação
que persiste no mundo, há quase dois mil anos? 13
Também, noutra época, acreditei na celestial proteção através da atividade
religiosa, nos ideais em que hoje te empenhas. Entendi, contudo, a tempo,
que o Trono Divino paira distante demais para que nos preocupemos em
alcançá-lo. 14 Não
há um Deus misericordioso e, sim, uma Causa que dirige. Essa causa é
inteligência e não, sentimento. 15
Encastelei-me, assim, na força determinativa para não soçobrar. O “querer”,
o “mandar” e o “poder” estão em minhas mãos. 16
Se tuas mágicas prevalecem acima dos princípios que consagro e defendo,
aceita a luva que te lanço à face! Combatamos!
17 Gregório espraiou torvo
olhar pela assistência muda e exclamou:
— Aqui descansam inermes, ao teu lado, os meus colaboradores que adormeceram, vergonhosamente, ao teu cântico sedutor; entretanto, cada qual deles me pagará, muito caro, a defecção e a desobediência.
18 Fixou, com mais atenção,
os olhos felinos na assembleia, mas, exceto eu, que deveria permanecer
atento à tarefa direcional que me fora cometida, ninguém ousou modificar
a atitude de profunda concentração nos propósitos de humildade e amor
a que fôramos conclamados.
5.
Demonstrando acentuado desapontamento, em face dos insultos sem resposta,
o temível diretor de legiões sombrias abeirou-se, mais estreitamente,
de nosso Instrutor sereno e bradou:
2 — Levantar-te-ei, por mim
mesmo, usando os sopapos que mereces.
3 Antes, porém, que conseguisse
ligar o intento à ação, delicado aparelho luminoso surgiu no alto, à
maneira de garganta improvisada em fluidos radiantes, como as que se
formam nas sessões de voz direta, entre os encarnados, e a voz cristalina
e terna de Matilde ressoou, acima de nossas cabeças, exortando-o, com
amorosa firmeza:
4 — Gregório, não
enregeles o coração quando o Senhor te chama, por mil modos, ao trabalho
renovador! O teu longo período de dureza e secura está terminado. 5
Não intentes contra os abençoados aguilhões de nosso Eterno Pai! O espinho
fere, enquanto o fogo o não consome; e a pedra mostra resistência, enquanto
o fio d’água a não desgasta! 6
Para a tua alma, filho meu, findou a noite em que a tua razão se eclipsou
no mal. A ignorância pode muito; no entanto, é simples nada quando a
sabedoria espalha os seus avisos. 7
Não admitas que os monstros da negra magia te alimentem o coração com
a felicidade desejável!
8 O temido perseguidor mantinha-se
confundido, semi-aterrado, ao passo que nós mesmos, os circunstantes
ligados à missão de Gúbio, não conseguíamos dissimular a imensa surpresa
que nos dominava, ante o quadro imponente e inesperado.
9 Compreendi que a benfeitora
se valia dos fluidos vitais de nosso orientador para exprimir-se, naquele
Plano, qual o fizera, horas antes, na residência de Margarida.
10 O sacerdote transviado,
num complexo de espanto, rebelião e amargura, tinha agora o aspecto
de uma fera enjaulada.
11 — Acreditas,
porventura, — prosseguiu a voz materna, adulçorada, — que o amor pode
alterar-se no curso do tempo? Supuseste, um dia, que eu te pudesse esquecer?
Olvidaste a imantação de nossos destinos? 12
Peregrine minhalma através de mil mundos, suspirarei sempre pela integração
de nossos Espíritos. A luz sublime do amor que nos arde nos sentimentos
mais profundos pode resplandecer nos precipícios infernais, atraindo
para o Senhor aqueles que amamos. 13
Gregório, ressurge!
14 E, numa inflexão de lágrimas
que desarmaria o raciocínio mais enrijecido, acentuou:
15 Lembra-te! Deixaste
morrer nos séculos os projetos de amor que traçamos na Toscana e na
Lombardia distantes? n
Esqueceste nossos votos ao pé dos altares humildes? Olvidaste as cruzes
de pedra que nos ouviam as orações? Não prometemos ambos trabalhar em
comum pela purificação dos santuários de Deus na Terra? 16
Sempre grande e belo no combate à política venal dos homens, cristalizaste
na mente os desvarios do orgulho e da vaidade, adquiridos ao contato
de uma coroa putrescível. 17
Afogaste ideais preciosos na corrente de ouro mundano e perdeste a visão
dos horizontes divinos, mergulhando-te na sombra dos cálculos pela extensão
do império de teus caprichos. 18
Incensaste a grandeza dos poderosos do mundo em desfavor dos humildes;
incentivaste a tirania espiritual, crendo-te possuidor de autoridade
infalível, e supunhas que o Céu, além da morte, nada mais fosse que
simples cópia dos Tribunais e das Cortes da Terra. 19
Tremendos desenganos surpreenderam-te o despertar, e, embora humilhado
e padecente, coagulaste os pensamentos no ácido venenoso da revolta
e elegeste a escravização das inteligências inferiores por única posição
digna de conquistar. 20
Durante séculos, tens sido apenas rude disciplinador de almas criminosas
e perturbadas que o túmulo encontrou na imprudência e no vício. 21
Não te doerá, porém, filho meu, a triste condição de gênio desprezível?
Semelhante pergunta não morre sem resposta. Falam por ti o imenso tédio
do mal e a profunda solidão interior que presentemente te invadem as
horas. 22 Aprendeste
com infinito desapontamento que os tesouros divinos não repousam em
frias arcas de valores amoedados, e sabes, agora, que Jesus dispõe de
escasso tempo para frequentar basílicas suntuosas, não obstante respeitáveis,
porque da escura senda humana emergem soluços de peregrinos sem luz
e sem lar, sem arrimo e sem pão…
23 Via-se que a benfeitora,
quase asfixiada pela emoção, apresentava enorme dificuldade para continuar,
mas, após longa pausa, que ninguém ousou interromper, prosseguiu, comovida:
24 — Como pudeste
esquecer, por alguns dias de autoridade efêmera na Terra, as nossas
redentoras visões do Cristo angustiado na cruz? 25
Aderiste aos Dragões do Mal n
pela simples verificação de que a tiara passageira não te poderia aureolar
a cabeça nos domínios da vida eterna a que a morte nos arrebatou; entretanto,
o Divino Amigo jamais descreu das nossas promessas de serviço e espera
por nós com a mesma abnegação do princípio. 26
Vamos! Sou Matilde, alma de tua alma, que, um dia, te adotou por filho
querido e a quem amaste como dedicada mãe espiritual.
27 Calou-se a voz da mensageira,
interditada pela corrente de pranto.
28 Foi então que Gregório,
fazendo quanto lhe era possível por manter-se de pé, gritou, como ansioso
por fugir a si mesmo.
— Não creio! Não creio! Estou só! Consagrei-me ao serviço das sombras e não tenho outros compromissos.
29 Trasbordava-lhe
da voz menos altiva um tom de pavor indescritível. Parecia disposto
à fuga, francamente transformado. Mas, ante a assembleia extática e
silenciosa, mantinha-se magnetizado pela palavra da benfeitora que se
fazia ouvir, austera e doce, bela e terrível, escalpelando-lhe a consciência.
30 Espraiou o olhar
de leão ferido através de todos os ângulos do campo que nos situava,
e, sentindo-se no centro de quantos assistiam, ali, atônitos, à cena
inesperada, exteriorizou na expressão fisionômica todo o desespero extremo
que lhe vagava nalma, arrancou a espada da bainha e bradou encolerizado:
31 — Vim para combater, não
para argumentar. Não temo sortilégios. Sou um chefe e não posso perder
os minutos com palavras tergiversantes. Não admito a presença de minha
mãe espiritual de outras eras. Conheço as artimanhas dos fascinadores
e não tenho outra alternativa senão duelar.
32 Fitando a delicada forma
de luz que pairava no espaço, acrescentou:
— Por quem és! Anjo ou demônio, aparece e combate! Aceitas meu desafio?
33 — Sim… — respondeu Matilde,
com ternura e humildade.
— Tua espada?! — Trovejou Gregório, arquejante.
— Vê-la-ás dentro em breve…
6.
Após alguns momentos de ansiosa expectativa, apagou-se a garganta luminosa
que brilhava sobre nós, mas leve massa radiante e disforme surgiu, não
longe, à nossa vista.
2 Compreendi que a valorosa
emissária se materializaria, ali mesmo, utilizando os fluidos vitais
que o nosso orientador lhe forneceria.
Júbilo e assombro dominavam a assembleia.
3 Em poucos instantes, erguia-se
Matilde, ao nosso olhar, de rosto velado por véu de gaze tenuíssima.
A túnica alva e luminescente, aliada ao porte esguio e nobre, sob a
auréola de safirina luz de que se tocava, traziam à lembrança alguma
encantada madona da Idade Média, em repentina aparição.
4 Adiantava-se, digna e calma,
na direção do sombrio perseguidor; todavia, Gregório, perturbado e impaciente,
atacou-a de longe e empunhou a lâmina em riste, exclamando, resoluto:
— Às armas! Às armas!…
5 Matilde estacou, serena
e humilde, embora imponente e bela, com a majestade de uma rainha coroada
de sol.
Decorridos alguns instantes ligeiros, movimentou-se novamente e, alçando a destra radiosa até ao coração, caminhou para ele, afirmando, em voz doce e terna:
— Eu não tenho outra espada, senão a do amor com que sempre te amei!
6 E de súbito desvelou o semblante
vestalino, revelando-lhe a individualidade num dilúvio de intensa luz.
Contemplando-lhe, então, a beleza suave e sublime, banhada de lágrimas,
e sentindo-lhe as irradiações enternecedoras dos braços que, agora,
se lhe abriam, envolventes e acolhedores, Gregório deixou cair a lâmina
acerada e de joelhos se prosternou, bradando:
— Mãe! Minha mãe! Minha mãe!…
7 Matilde enlaçou-o e exclamou:
— Meu filho! Meu filho! Deus te abençoe! Quero-te mais que nunca!
8 Verificara-se, ali, naquele
abraço, espantoso choque entre a luz e a treva, e a treva não resistiu…
9 Gregório, como que abalado
nos refolhos do ser, regressara à fragilidade infantil, em pleno desmaio
da força que o sustinha. Finalmente, iniciara sua libertação.
10 A benfeitora, enlevada,
recolhera-o, enlanguescido, nos braços, enquanto numerosos membros da
sombria falange fugiam espavoridos.
11 Matilde, vitoriosa, agradeceu
em palavras que nos faziam vibrar as fibras mais recônditas da alma,
e, em seguida, confiou aos nossos cuidados o filho vencido, asseverando-nos
que o abnegado Gúbio se encarregaria de guardar, por algum tempo, aquele
que ela considerava o seu divino tesouro.
12 Após abraçar-nos, generosa,
desmaterializou-se ao nosso coro de hosanas, a fim de seguir, de mais
longe, a preparação do futuro glorioso.
13 Refez-se o nosso orientador,
reintegrando-se em nosso grupo de serviço.
14 Edificado, feliz, Gúbio
sustentou Gregório, inerte, nos braços à maneira do cristão fiel que
se orgulha de suportar o companheiro menos feliz. Orou, cercado de claridade
santificante, arrancando-nos lágrimas irreprimíveis de alegria e reconhecimento
e, depois, ante a paz que se estabelecera, triunfante e ditosa, deu
por finda a nossa tarefa, dispondo-se a guiar a heterogênea, mas expressiva
coletividade de novos estudantes do bem, recolhidos nos trabalhos de
salvação de Margarida, até a importante e abençoada colônia de trabalho
regenerador.
15 Surgira, para mim,
a despedida.
Tinha meus olhos úmidos de pranto.
16 O Instrutor abraçou-me e,
retendo-me junto do coração, falou, bondoso:
— Jesus te recompense, filho meu, pelo papel que desempenhaste nesta jornada de libertação. Nunca te esqueças de que o amor vence todo ódio e de que o bem aniquila todo mal.
17 Quis responder, esclarecendo
que somente a mim, discípulo inábil, cabia o dever de gratidão; todavia,
incoercível emotividade prendeu-me a voz.
18 O orientador, no entanto,
leu-me no olhar os sentimentos mais profundos e sorriu, em retirada.
Elói, também, rumou para longe, em busca de outros setores.
19 E voltando, sozinho, ao
meu domicílio espiritual, roguei, chorando:
— Mestre de Bondade Infinita, não me abandones! Ampara-me a insuficiência de servo imperfeito e infiel!
20 Em torno, reinava insondável
e sublime silêncio. Mas, enquanto o horizonte se tingia de rubro, preludiando
a festa da aurora, a estrela matutina brilhava, tremeluzindo aos meus
olhos, qual celeste resposta de luz.
André Luiz
FIM
[1]
Salmo
90. — Nota do autor espiritual.
[2] [Vide
notícias de Condessa
Matilde de Canossa, protetora de Gregório VII.]
[3]
[“Aderiste aos Dragões do Mal”: — Para mais informações sobre essa organização
espiritual da maldade e sua influência sobre a humanidade encarnada,
recomendamos a leitura do livro Os
dragões, psicografado pelo Espírito Maria Modesto Cravo através
do médium Wanderley Oliveira, obra espírita subsidiária, cujo conteúdo
apresenta excelente material para reflexão aos espíritas menos preconceituosos.]