O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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E a vida continua… — André Luiz


11

Ernesto Fantini

(Sumário)

1. Chegada a vez de Ernesto, que tomou a poltrona de analisando algo desconcertado, o Instrutor formulou as explicações anteriores, solicitou-lhe articular perguntas e acendeu o espelho de gravação.

2 Fantini, um tanto mais à vontade, iniciou o interrogatório:

— Posso falar, como se estivesse realmente morto, como me fazem crer?

3 O mentor sorriu, ao escutar aquela frase de materialista inteligente, e objurgou sem aspereza:

— Fale tudo o que deseje, na convicção de que a teoria do “como se” está longe agora de nós. Estamos efetivamente desencarnados, encontrando a nós mesmos…


2. — Instrutor, se deixei meu corpo na Terra, sem lembrar-me disso, não é o caso de ter voltado ao ambiente natural do Espírito, com a obrigação de retomar a memória do tempo em que vivia, na condição de Espírito livre, antes de envergar, entre os homens, o corpo de que me desfiz? Por que motivo isso não acontece?

2 — A existência no carro físico, além de ser um estágio para aprendizagem ou cura, resgate ou tarefa específica, é igualmente um longo mergulho no condicionamento magnético, em que agimos, no mundo, induzidos ao que nos cabe fazer. 3 O livre arbítrio, na esfera da consciência, permanece vivo e intocado, porquanto, em quaisquer posições, a criatura encarnada é independente para escolher os próprios rumos; 4 no entanto, as demais potências da alma, no período da encarnação, jazem orientadas na direção desse ou daquele trabalho, segundo os propósitos que tenha assumido ou que tenha sido constrangida a assumir.

5 Isso determina o obscurecimento das memórias pregressas que, aliás, não é senão um fenômeno temporário, mais ou menos curto ou longo, conforme o grau de evolução que tenhamos atingido.

6 — Teríamos sofrido, enquanto no Plano físico, uma dilatada hipnose?

— Até certo ponto, sim. A passagem pelo claustro materno, o novo nome escolhido pelos familiares, os sete anos de semi-inconsciência no ambiente fluídico dos pais, a recapitulação da meninice, o retorno à juventude e os problemas da madureza, com as responsabilidades e compromissos consequentes, estruturam em nós — a individualidade eterna — uma personalidade nova que incorporamos ao nosso patrimônio de experiências. 7 É compreensível que no espaço de tempo, que se nos sucede, imediatamente à desencarnação, a memória profunda esteja ainda hermeticamente trancada nos porões do ser. Isso, porém, é francamente transitório. Gradativamente, reaveremos o domínio de nossas reminiscências…


3. — O senhor quer explicar que, nesta cidade, sou ainda Ernesto Fantini, a personalidade humana com o nome que me foi imposto na existência que deixei, largando o estudo de minhas memórias anteriores para depois?

2 — Perfeitamente. Cada um de nós permanece aqui, em núcleos de trabalho e renovação, na vizinhança do Plano físico, sob a mesma ficha de identificação, através da qual éramos conhecidos nela. 3 Até que nos promovamos por merecimento próprio a Círculos mais altos de sublimação, quedar-nos-emos entre a Espiritualidade Superior e o Estágio Físico, operando no aperfeiçoamento pessoal, da internação no berço à liberação para a vida espiritual e regressando da liberdade na vida espiritual a nova segregação no berço. Entendeu?

4 — Aqui somos então examinados pelo que fomos, nas ações praticadas, no tempo de retaguarda mais próximo de nós…

— Isto.

5 — Somos como éramos, na ficha individual, até…

— Até que as circunstâncias nos indiquem nova imersão no corpo carnal, como recurso inevitável aos objetivos de burilamento a que todos visamos, nas lides da vida eterna.

6 — Somos quais éramos, em tudo, até mesmo na sinalização morfológica?

— Não tanto. Quaisquer sinais morfológicos se modificam na pauta das ordenações mentais. 7 Isso ocorre, habitualmente, na própria Terra dos Homens, quando a ciência, sem maiores dificuldades, modifica os implementos da máquina genésica da criatura, de acordo com os impulsos psicológicos que a criatura apresente, harmonizando o binômio corpo-alma. 8 Além disso, não nos será lícito esquecer os serviços multiformes da plástica cirúrgica, que consegue efetuar prodígios no envoltório carnal das pessoas, quando essas pessoas mereçam as melhoras com que a ciência terrestre lhes acena, generosa e otimista.


4. Fantini se mostrava agradavelmente surpreendido pela destreza mental com que o Instrutor sabia colocar-lhe os esclarecimentos precisos na cabeça faminta de luz.

2 — Caro amigo, — tornou ele à inquirição. — Embora o assunto de que vou tratar já tenha sido objeto de consideração na palestra que mantive com o Irmão Cláudio, estimaria recolher-lhe os avisos no mesmo tema… 3 Acontece que ouvi falar de mortos, e de mortos cultos, que atravessaram anos e anos atormentados em zonas inferiores, antes de reconquistarem lucidez e tranquilidade; n porque não me ocorreu isso, se estou efetivamente desencarnado e se sou um homem consciente das culpas que carrega?

4 — O estado de tribulação a que se refere é pertinente ao Espírito e não ao lugar. 5 Muitos de nós, os desencarnados, suportamos tempos difíceis, em paisagens determinadas que nos refletem as próprias perturbações íntimas. 6 Essa anomalia pode perdurar por muito tempo, de conformidade com as nossas inclinações e esforço indispensável para que nos aceitemos, imperfeitos como ainda somos, conquanto não ignoremos a necessidade de burilamento que as leis da vida nos estabelecem. 7 Somos, por agora, consciências endividadas ou expoentes de evolução deficitária, ante a Vida Maior, carregando o dever de podar os nossos defeitos em trabalho digno e incessante. 8 Enquanto estejamos em desequilíbrio, após a desencarnação, desequilíbrio que é sempre agravado pela nossa inconformidade ou rebeldia, orgulho ou desespero, ameaçando a segurança dos outros, permaneceremos compreensivelmente internados ou segregados em faixas de espaço, junto de quantos evidenciem perturbações ou conflitos semelhantes aos nossos, à maneira de doentes mentais, afastados do convívio doméstico para tratamento justo.

9 — Então, as ideias do castigo de Deus

— Razoável que as abracemos, até que aprendamos que a Divina Providência nos governa através de leis sábias e imparciais. 10 Cada um de nós pune a si mesmo, nos artigos dos Estatutos Excelsos que haja infringido. A Justiça Eterna funciona no foro íntimo de cada criatura, determinando que a responsabilidade seja graduada no tamanho do conhecimento…


5. — Instrutor Ribas, como definir, desse modo, o inferno engenhado pelas religiões no Planeta?

2 — Reportemo-nos a isso com o respeito que o assunto nos reclama, porque para milhões de almas o desconforto mental a que se entregam, ao lado de outras nas mesmas condições, é perfeitamente comparável ao sofrimento do inferno teológico, imaginado pelas crenças humanas. 3 A rigor, porém, e atentos à realidade de que Deus jamais nos abandona, o inferno deve ser interpretado na categoria de hospício, onde amargamos as consequências de faltas, no fundo, cometidas contra nós mesmos. 4 Fácil perceber que a área de espaço em que nos demoremos nessa desoladora situação venha a retratar os quadros mentais infelizes que criamos e projetamos, ao redor de nós.


6. — Ouso aprofundar-me em tantas inquirições, por achar-me convencido de que, positivamente, não mereço a generosidade com que me acolhem… 2 Tenho desfrutado aqui uma tranquilidade que não esperava, porquanto transporto comigo doloroso problema de consciência…

3 — Uma das funções de nosso Instituto é precisamente apoiar os irmãos desencarnados que surgem aqui, sem qualquer prejuízo na própria integridade moral, mas carreando consigo complexos de culpa, suscetíveis de arrojá-los em alterações de maior vulto. 4 O socorro de nossa casa faz-se tanto mais eficaz quanto mais força de fé patenteie a criatura na possibilidade de superação das fraquezas que nos são peculiares. 5 A sua estrutura psicológica imunizou-o contra os delírios de muita gente boa e digna que, às vezes, se obriga a muito tempo nas aflições purgativas dos grandes manicômios a que nos referimos, sanando os desequilíbrios a que se despenham, em muitos casos por haverem dado orientação falsa ao amor de que se nutriam.

6 Entregou-se Ribas a ligeira pausa, sorriu e alegou: — Ainda assim, apesar do seu índice admirável de resistência, o irmão não está seguro contra os resultados de seus próprios atos e deve aprestar-se a fim de ser defrontado por eles.

7 — Esclareça-me, por favor.

— Queremos dizer que você necessita revestir-se de calma para comparecer diante daqueles que deixou no mundo, de modo a compreender-se e compreendê-los… 8 Na Esfera física, muitas vezes ouvimos a afirmativa de que é preciso coragem para ver os mortos e ouvi-los!… A situação aqui não é diferente, em relação aos chamados vivos. 9 De maneira geral, todos nós, imediatamente depois da desencarnação, somos levados a cursos preparatórios de entendimento, para ganhar o ânimo indispensável, a fim de rever os vivos e escutá-los de novo, sem danos para eles e para nós…

10 Os olhos de Ernesto fizeram-se esbugalhados nas órbitas ao assinalar aquelas advertências. Lágrimas grossas deslizaram-lhe na face, enquanto que, como se sofresse a pressão de molas invisíveis, constrangendo-o a lançar para fora de si as ideias de culpa, que remoia nos recessos da alma, ajoelhou-se à frente do benfeitor, qual criança atemorizada e gritou:


7. — Instrutor, segundo creio, meu delito é um só; entretanto, é suficiente para criar muitos infernos em meu espírito. Matei um amigo, há mais de vinte anos, e nunca mais tive paz… 2 Sabia-o no encalço de minha esposa com intenções menos dignas, a espreitar-lhe os passos e atitudes… Via-o sondar minha casa, em minha ausência… Algumas vezes, registei frases inconvenientes da parte dele para com aquela que me partilhava o nome… 3 Um dia, tive a impressão de surpreender nos olhos da companheira certa inclinação afetiva para com o inimigo de minha tranquilidade e, muito antes que minhas suposições se confirmassem, aproveitei o momento que se me figurou oportuno e alvejei-o durante uma caçada a codornas… 4 Atirei para acertar e, satisfeito o meu intento, ocultei-me na folhagem, até que o outro companheiro, pois éramos três homens no entretenimento, deu alarme ao esbarrar com o cadáver… 5 A vítima, porém, caíra ao solo em condições tais que a versão de um acidente senhoreou a convicção de todos os circunstantes… 6 Aterrado perante o meu crime, qual me achava, aceitei, aliviado, a falsa interpretação… 7 Jamais, no entanto, recuperei o sossego íntimo… Ele, o homem que eliminei, era casado, tanto quanto eu mesmo, e não mais tive coragem de procurar-lhe a família, que, para logo, abandonou a região do terrível acontecido, sequiosa de esquecimento… Esse esquecimento, contudo, não veio para mim… 8 A morte que provoquei, como que me trouxe o temido desafeto para dentro de casa… Desde a ocorrência dolorosa, passei a sentir-lhe a presença no lar, à feição de sombra invariável que me ironiza e me insulta sem que os outros percebam… 9 Em meu círculo doméstico, reconheço-me algemado a ele, como se o infeliz estivesse mais vivo e mais forte, a cada dia… Rara a noite em que não lutava com ele em sonho, antes da cirurgia que motivou minha vinda para cá… Então, acordava, como se houvéssemos travado um duelo mortal, para continuar a vê-lo, com os olhos da imaginação, compartilhando-me a vida cotidiana!… 10 Oh! Instrutor Ribas! Instrutor Ribas!… Diga-me, por Deus, se há remédio para mim!… Esperava encontrar, depois da morte, um lugar de punição onde as potências infernais cobrassem de mim a falta que ocultei à justiça da Terra; entretanto, estou usufruindo uma proteção exterior que me agrava o tormento íntimo!… Oh!… Meu amigo, meu amigo, que será então de mim, que não mais consigo suportar a mim mesmo?

11 Assim dizendo, Fantini abraçou-se ao mentor, soluçando qual menino desamparado, suplicando refúgio.

O Instrutor acolheu-o no regaço paternal e consolou-o:

— Asserena-te, meu filho!… Somos Espíritos eternos e Deus, nosso Pai, não nos deixará sem arrimo.

12 Os olhos de Ribas mostravam lágrimas que não chegavam a cair. Dir-se-ia que ele, o competente orientador, conhecia por si semelhante martírio da consciência, porque, longe de repreender, afagou-lhe a cabeça fatigada, que se lhe abrigara sobre os joelhos, e rematou simplesmente:

— A justiça de Deus não vem sem apoio na misericórdia. Confiemos!…

13 E sem maior delonga, o amigo espiritual ergueu-se, sensibilizado, apagou o espelho de serviço e encerrou a sessão.


André Luiz



[1] [Vide como exemplo a experiência de André Luiz, que desencarnou prematuramente, vítima de suicídio indireto.]


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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