1.
Eu guardava a impressão de haver perdido a ideia de tempo. A noção de
espaço esvaíra-se-me de há muito. 2 Estava convicto de não mais pertencer
ao número dos encarnados no mundo e, no entanto, meus pulmões respiravam
a longos haustos.
3 Desde quando me tornara
joguete de forças irresistíveis? Impossível esclarecer.
4 Sentia-me, na verdade,
amargurado duende nas grades escuras do horror. Cabelos eriçados, coração
aos saltos, medo terrível senhoreando-me, muita vez gritei como louco,
implorei piedade e clamei o doloroso desânimo que me subjugava
o espírito; 5 mas,
quando o silêncio implacável não me absorvia a voz estentórica, lamentos
mais comovedores que os meus respondiam-me aos clamores. 6
Outras vezes gargalhadas sinistras rasgavam a quietude ambiente. Algum
companheiro desconhecido estaria, a meu ver, prisioneiro da loucura.
7 Formas diabólicas,
rostos alvares, expressões animalescas surgiam, de quando a quando,
agravando-me o assombro. 8
A paisagem, quando não totalmente escura, parecia banhada de luz alvacenta,
como que amortalhada em neblina espessa, que os raios de Sol aquecessem
de muito longe.
9 E a estranha viagem
prosseguia… Com que fim? Quem o poderia dizer? Apenas sabia que fugia
sempre… O medo me impelia de roldão. Onde o lar, a esposa, os filhos?
Perdera toda a noção de rumo. 10
O receio do ignoto, o pavor da treva, absorviam-me todas as faculdades
de raciocínio, logo que me desprendera dos últimos laços físicos, em
pleno sepulcro!
11 Atormentava-me a consciência:
preferiria a ausência total da razão, o não-ser.
12 De início, as
lágrimas lavavam-me incessantemente o rosto e apenas, em minutos raros,
felicitava-me a bênção do sono. Interrompia-se, porém, bruscamente,
a sensação de alívio. Seres monstruosos acordavam-me, irônicos; era
imprescindível fugir deles.
2.
Reconhecia, agora, a Esfera diferente a erguer-se da poalha do mundo
e, todavia, era tarde. Pensamentos angustiosos atritavam-me o cérebro.
Mal delineava projetos de solução, incidentes numerosos impeliam-me
a considerações estonteantes. 2
Em momento algum, o problema religioso surgiu tão profundo a meus olhos.
Os princípios puramente filosóficos, políticos e científicos, figuravam-se-me
agora extremamente secundários para a vida humana. Significavam, a meu
ver, valioso patrimônio nos planos da Terra, mas urgia reconhecer que
a humanidade não se constitui de gerações transitórias e sim de Espíritos
eternos, a caminho de gloriosa destinação. 3
Verificava que alguma coisa permanece acima de toda cogitação meramente
intelectual. Esse algo é a fé, manifestação divina ao homem. Semelhante
análise surgia, contudo, tardiamente. 4
De fato, conhecia as letras do Velho Testamento e muita vez folheara
o Evangelho; entretanto, era forçoso reconhecer que nunca procurara
as letras sagradas com a luz do coração. Identificava-as através da
crítica de escritores menos afeitos ao sentimento e à consciência, ou
em pleno desacordo com as verdades essenciais. Noutras ocasiões, interpretava-as
com o sacerdócio organizado, sem sair jamais do círculo de contradições,
onde estacionara voluntariamente.
3.
Em verdade, não fora um criminoso, no meu próprio conceito. A filosofia
do imediatismo, porém, absorvera-me. A existência terrestre, que a morte
transformara, não fora assinalada de lances diferentes da craveira comum.
2 Filho de pais talvez
excessivamente generosos, conquistara meus títulos universitários sem
maior sacrifício, compartilhara os vícios da mocidade do meu tempo,
organizara o lar, conseguira filhos, perseguira situações estáveis que
garantissem a tranquilidade econômica do meu grupo familiar, mas, examinando
atentamente a mim mesmo, algo me fazia experimentar a noção de tempo
perdido, com a silenciosa acusação da consciência. 3
Habitara a Terra, gozara-lhe os bens, colhera as bênçãos da vida, mas
não lhe retribuíra ceitil do débito enorme. Tivera pais, cuja generosidade
e sacrifícios por mim nunca avaliei; esposa e filhos que prendera, ferozmente,
nas teias rijas do egoísmo destruidor. 4
Possuíra um lar que fechei a todos os que palmilhavam o deserto da angústia.
Deliciara-me com os júbilos da família, esquecido de estender essa bênção
divina à imensa família humana, surdo a comezinhos deveres de fraternidade.
5 Enfim, como a flor
de estufa, não suportava agora o clima das realidades eternas. Não desenvolvera
os germes divinos que o Senhor da Vida colocara em minh’alma. Sufocara-os,
criminosamente, no desejo incontido de bem-estar. 6
Não adestrara órgãos para a vida nova. Era justo, pois, que aí despertasse
à maneira de aleijado que, restituído ao rio infinito da eternidade,
não pudesse acompanhar senão compulsoriamente a carreira incessante
das águas; ou como mendigo infeliz, que, exausto em pleno deserto, perambula
à mercê de impetuosos tufões.
7 Oh! Amigos da Terra! Quantos
de vós podereis evitar o caminho da amargura com o preparo dos campos
interiores do coração? Acendei vossas luzes antes de atravessar a grande
sombra. Buscai a verdade, antes que a verdade vos surpreenda. Suai agora
para não chorardes depois.
André Luiz