1.
“Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!” — Gritos assim, cercavam-me de
todos os lados. Onde os sicários de coração empedernido? Por vezes,
enxergava-os de relance, escorregadios na treva espessa e, quando meu
desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando extremas energias.
Em vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera. Gargalhadas
sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros desapareciam
na sombra.
2 Para quem apelar?
Torturava-me a fome, a sede me escaldava. Comezinhos fenômenos da experiência
material patenteavam-se-me aos olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava
a romper-se com os esforços da resistência, na região desconhecida.
3 A circunstância mais
dolorosa, no entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado,
mas o assédio incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos
ermos e obscuros. Irritavam-me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar
ideias. 4 Desejava
ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e estabelecer novas
diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados
de acusações nominais, desnorteavam-me irremediavelmente.
2.
— Que buscas, infeliz! Aonde vais, suicida?
Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o coração.
2 Infeliz, sim; mas,
suicida? — Nunca! — Essas increpações, a meu ver, não eram procedentes.
Eu havia deixado o corpo físico a contragosto. 3
Recordava meu porfiado duelo com a morte. Ainda julgava ouvir os últimos
pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; lembrava a assistência
desvelada que tivera, os curativos dolorosos que experimentara nos dias
longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos. 4
Sentia, no curso dessas reminiscências, o contato do termômetro, o pique
desagradável da agulha de injeções e, por fim, a última cena que precedera
o grande sono: minha esposa ainda jovem e os três filhos contemplando-me,
no terror da eterna separação. 5
Depois… o despertar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada
que parecia sem-fim.
6 Por que a pecha
de suicídio, quando fora compelido a abandonar a casa, a família e o
doce convívio dos meus? 7
O homem mais forte conhecerá limites à resistência emocional. Firme
e resoluto a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos de
desânimo, e, longe de prosseguir na fortaleza moral, por ignorar o próprio
fim, senti que as lágrimas longamente represadas visitavam-me com mais
frequência, extravasando do coração.
3.
A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do
mundo, não poderia alterar, agora, a realidade da vida. 2
Meus conhecimentos, ante o infinito, semelhavam-se a pequenas bolhas
de sabão levadas ao vento impetuoso que transforma as paisagens. Eu
era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito longe. 3
Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser essencial.
Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência
vigilante, esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento
e a cultura colhidos na experiência material. 4
Persistiam as necessidades fisiológicas, sem modificação. Castigava-me
a fome todas as fibras, e, nada obstante o abatimento progressivo, não
chegava cair definitivamente em absoluta exaustão. 5
De quando em vez, deparavam-se-me verduras que me pareciam agrestes,
em torno de humildes filetes d’água a que me atirava sequioso. Devorava
as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente turva, enquanto
mo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para a frente.
6 Muita vez suguei
a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia, vertendo copioso
pranto. 7 Não raro,
era imprescindível ocultar-me das enormes manadas de seres animalescos,
que passavam em bando, à maneira de feras insaciáveis. 8
Eram quadros de estarrecer! Acentuava-se o desalento. Foi quando comecei
a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse. Essa
ideia confortou-me. 9
Eu, que detestara as religiões no mundo, experimentava agora a necessidade
de conforto místico. 10
Médico extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunha-se-me
atitude renovadora. Tornava-se imprescindível confessar a falência do
amor-próprio, a que me consagrara orgulhoso.
4.
E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamente
colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguer-me, pedi ao Supremo
Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.
2 Quanto tempo durou
a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica, de mãos-postas, imitando
a criança aflita? Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto;
que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa. 3
Estaria, então, completamente esquecido? Não era, igualmente, filho
de Deus, embora não cogitasse de conhecer-lhe a atividade sublime quando
engolfado nas vaidades da experiência humana? 4
Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando providenciava ninho às
aves inconscientes e protegia, bondoso, a flor tenra dos campos agrestes?
5 Ah! É preciso haver
sofrido muito, para entender todas as misteriosas belezas da oração;
é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura,
para tomar com eficácia o sublime elixir de esperança. 6
Foi nesse instante que as neblinas espessas se dissiparam e alguém surgiu,
emissário dos Céus. Um velhinho simpático me sorriu paternalmente. Inclinou-se,
fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e falou:
— Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.
7 Amargurado pranto banhava-me
a alma toda. Emocionado, quis traduzir meu júbilo, comentar a consolação
que me chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam, pude
apenas inquirir:
— Quem sois, generoso emissário de Deus?
8 O inesperado benfeitor sorriu
bondoso e respondeu:
— Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.
E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:
— Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para reaver energias.
9 Em seguida, chamou dois
companheiros que guardavam atitude de servos desvelados e ordenou:
— Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.
Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-se ambos os cooperadores a me transportarem generosamente.
10 Quando me alçavam, cuidadosos,
Clarêncio meditou um instante e esclareceu, como quem recorda inadiável
obrigação:
— Vamos sem demora. Preciso atingir “Nosso Lar” com a presteza possível.
André Luiz