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1 Velho João, agonizas triste e pobre,
Sem que o mundo, sequer, a mão te estenda;
Ninguém te oferta um caldo por merenda,
Nem um trapo de pano que lhe sobre…
2 Ah! ninguém te agradece ao peito nobre
O cansaço na roça e na moenda;
Morres, lembrando as pompas da fazenda,
No seboso molambo que te encobre.
3 Percebes, pelos vãos da própria furna,
Flores aos borbotões, na paz noturna,
E abandonas o corpo, a fim de vê-las…
4 Fitas, em prece, a noite calma e santa
E sobes, velho João, como quem canta
Nos milharais do Céu, plantando estrelas! n
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1 Espancaram-te o rosto, Mãe Balbina.
Velha, furtaste um pão jogado ao solo,
Ama de tanta boca pequenina
Que afagavas, cantando, no teu colo.
2 Ninguém te viu, anêmica e franzina,
Com o filho da patroa a tiracolo, n
E a dor de mãe solteira, inda menina,
No suor da coivara e do monjolo.
3 Roubaste um pão apenas, Mãe querida,
Tu que foste roubada em toda a vida
Por tantos filhos que te abandonaram!… n
4 Mas Deus guarda-te, além, por luz e enfeite,
O tesouro de sangue, pranto e leite
Das pérolas de amor que te furtaram!
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1 “Doida! Maria Doida!” A meninada
Persegue a pobre louca em longas filas.
Cerrando as mãos nervosas e intranquilas,
Maria corre em fúria desgrenhada.
2 Ah! minha irmã, que em sombra te aniquilas;
Desditosa, sozinha, desprezada,
Bebes, com sede e fome, na calçada,
O pranto que te verte das pupilas!…
3 Mas, à noite, Maria, enquanto dormes,
Revês, de novo, as árvores enormes
Do teu solar de luxo noutras eras…
4 E agradeces, na palha seca e fria,
A rude provação de cada dia,
Como preço do júbilo que esperas!
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1 Dos olhos de Nhá Chica o pranto rola…
Não mais levanta a voz e o rosto ossudo.
Oitenta anos vivera… E, ao fim de tudo,
A palhoça vazia, o pão de esmola…
2 A professora anciã relembra a escola…
Pensa ver, entre o catre e o chão desnudo,
A mesa, o livro, a lousa, o giz do estudo n
E os meninos rixando junto à bola. n
3 Pobre Nhá Chica em lágrimas banhada (51) n
Morre, esquecida e só, assim sem nada,
Na tristura das últimas lembranças…
4 Mas acorda em florida caravela (54)
Num mar azul… E vê-se, moça e bela,
Carregada nos braços das crianças!…
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1 Conheci Dona Amélia na fazenda
— Dona Amélia Maria Liberata —,
Linda e rica mulher, mas rude e ingrata,
Sempre altiva, no estrado de ouro e renda.
2 Deixava o pão mofando preso à lata
E gritava: “ninguém me desatenda”.
Procurava conflitos de encomenda
Para zurzir os servos na chibata…
3 Mais tarde veio a morte… A nobre dama
Padecia o remorso como a chama
Quando o fogo se apega à carne nua.
4 O tempo voa… E agora, reencarnada,
Vejo-a sozinha, triste e abandonada,
Esmolando socorro em cada rua.
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1 Ah! minha outra mãe, Sinhá Teodora,
Ninguém te enxuga as lágrimas do rosto,
Mas prossegues gemendo a contragosto,
Arrimada à muleta que te escora…
2 Sofreste, sorridente, vida afora;
Cantarolavas, tonta de desgosto…
Para onde te encaminhas, ao sol-posto,
A tropeçar, cansada e triste, agora?
3 Que demandas com tantas agonias?
Ergues ao céu as mãos magras e frias…
Há luz que se derrama de alta esfera…
4 Choras… No entanto, a paz do firmamento
Diz-me que vais, assim, coxeando ao vento,
Para os braços do Cristo que te espera.
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1 O mendigo que chora, treme e passa
Fora cultivador de terra alheia.
Em dado instante, hesita, cambaleia…
Há quem o julgue cheio de cachaça.
2 “Ti” Pedro cai e é preso em plena praça
E, morrendo, nas lajes da cadeia,
Revê toda a fortuna a que se enleia:
Cinco tostões num trapo de alcobaça.
3 De Espírito liberto, estrada afora,
Ouve música ao longe… É quase aurora…
“Ti” Pedro sobe leve como o vento;
4 E crê que o próprio Deus lhe acalma as dores,
Nas estrelas que pendem como flores
No pau d’arco de luz do firmamento. n
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1 E assim viveu Cantídio Maldonado,
Deitando anedotário e latinório,
Bela figura, qual D. Juan Tenório,
Lampeiro, bonitão e remoçado.
2 Aqui e ali, promessas de noivado,
Meninas lastimando amor inglório,
Lares desfeitos, casos de cartório
E crimes, vários crimes de contado. n
3 Contudo, a morte veio… O pobre amigo
Acumulava em lágrimas consigo
Dor e remorso em trágico binômio…
4 Corre o tempo… Hoje encontro Maldonado,
Andrajoso, esquecido e reencarnado,
A rir e soluçar num manicômio.
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[1] CORNÉLIO PIRES — Além de poeta, contista, jornalista, humorista e conferencista, era Cornélio Pires devotado pesquisador do nosso folclore. “Seja bom” — recomendou-lhe, certa vez, Amadeu Amaral. E Cornélio Pires, ao fazer-se tarefeiro da Doutrina Espírita, não foi apenas um bom, mas verdadeiro herói da bondade permanente, a benefício dos semelhantes. Pouco antes de desencarnar, fundou em Tietê, SP, a “Granja de Jesus”, entidade de amparo ao menor abandonada. Escreveu para inúmeros jornais e revistas, tendo iniciado a sua vida literária em O Malho, do Rio. Alguns dos seus livros continuam a ter numerosas e sucessivas reedições. “Sua obra” — di-lo Joffre Martins Veiga — “é eminentemente popular e de cunho essencialmente brasileiro.” (Tietê, Est. de S. Paulo, 13 de Julho de 1884 — S. Paulo, Estado de S. Paulo, em 17 de Fevereiro de 1958.)
BIBLIOGRAFIA: Musa Caipira; O Monturo; Versos; Coisas d’Outro Mundo; Onde estás, ó morte?; etc.
[2] Verso 14 - Excelente imagem: “Velho João, como quem canta nos milharais do céu, plantando estrelas.”
[3] Verso 20 - Leia-se com o, numa sílaba. C. Pires, com frequência, servia-se da ectlipse. Cf. “O Enterro” (ap. J. M. Veiga, Antol. Caipira, pág. 139) 11º verso: “e com ele se foi a doce paz da roça.”; “À Quelque Chose”, 11º verso: “com o dia de amanhã que é sempre o mesmo” (apud Op. cit., pág. 111).
[4] Verso 25 - Cf. nota nº 61, pág. 287, a respeito do metro.
[5] Verso 49 - Atente-se na enumeração.
[6] Verso 50 - As rimas em “ola” e “olo” eram muito usadas pelo artista de Musa Caipira. Cf. “Casa Rústica” (Op. cit., pág. 97), 1º terceto; “O Sol e o Cabo” (id., pág. 99), última estrofe; “Desencanto” (id., pág. 113) em todas as quadras; “Peripécias de Viagem” (id. pág. 117), último terceto.
[7] Versos 51-54. - Observem-se os “enjambements”.
[8] Verso 98 - Cf. a nota 14 deste capítulo.
Digna de observação é a constante repetição das expressões “Nhá”, “Sinhá” e outras que tais, tanto na poesia de além-túmulo quanto na que ficou esparsa em seus livros.
“Vai-se levar à vila o corpo de Nhá Cota,
balouçando na rede a uma vara amarrada…” —
eis os dois primeiros versos do soneto “O Enterro”, que, misturado aos de “Nhá Chica”, “Sinhá Teodora” ou qualquer outro soneto com que agora comparece o poeta, dificilmente distinguiríamos dos demais.
[9] Verso 106 - Mesarquia: “E crimes, vários crimes de contado.” — Cf. nota nº 7, pág. 42.