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1 Noite. Retorno à Terra. Entre os aflitos
Que a luta impele aos últimos degraus,
Sinto a perturbação que envolve o caos
E a exalação de todos os detritos. n
2 Entre o mundo e meu pranto, a sós, vagueio,
Na torva indagação que me constringe.
A vida é aterradora e imensa esfinge
No horror que me tortura de permeio.
3 Ao coro estranho de sinistros ventos,
Ergue-se a angústia num milhão de vozes…
Do choro mudo a imprecações ferozes,
Há turbilhões de trágicos lamentos.
4 Paixões embatem com medonha fúria.
O fel da provação verte sem peias…
O homem é como alguém que abrindo as veias
Tenta fugir debalde à carne espúria.
5 Em toda a parte, a dor comprime o cerco,
E os que dormem, quais míseros cativos,
Assemelham-se a tristes mortos-vivos,
Agonizando em túmulos de esterco.
6 Acorrentada entre os horrendos muros
Dos seus próprios grilhões imanifestos,
A Humanidade escuta os vãos protestos
Dos sonhos que morreram nascituros…
7 Mas, dissipando a sombra por rompê-la,
Na gleba que de lodo se engalana,
Como sinal de Deus na furna humana,
Surge sublime e resplendente estrela. n
8 Há nova luz de amor que tudo invade.
E percebo, no pântano entrevisto,
Que a redenção virá, brilhando em Cristo,
Ante o Divino Sol da caridade.
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1 Hidra de sentimentos fesceninos,
A obsessão medonha em fúria avança;
O pranto amargo purga a intemperança
Do inferno de passados desatinos.
2 Dois revéis inimigos, dois destinos
Em que a treva letífera descansa:
Bela jovem, cobaia de vingança,
E um vampiro a sugar-lhe os intestinos.
3 Morde o hipocôndrio esquerdo a larva enorme,
Ovo teratológico disforme,
Gerando atividade corrutora.
4 Mas Deus e o tempo forjam doce jugo,
E encarceram-se vítima e verdugo
Sob a maternidade redentora.
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1 Calam-se os nervos álgidos, retesos,
Na estrutura ancestral da carne mole.
O corpo, enfim, repousa, como o fole,
Sob a horrenda pressão de ignotos pesos.
2 Sorvo cansado e inerme o extremo gole
Do fel que encharca os músculos surpresos,
Vendo os próprios tecidos indefesos,
Sob a fauna larval que aumenta a prole…
3 Sinto a orgia necrófaga medonha,
Como um balão que estala, geme e sonha
Ao contubérnio de sinistros lastros.
4 Mas, ave abrindo a grade hirta e marmórea,
Contemplo a vida eterna, ardendo em glória,
Que me acena sorrindo além dos astros!
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1 Ei-lo, o doente que se desengana… n
A úlcera enorme baba gosma escura;
O esqueleto senil se descostura
Ao bote da gangrena soberana.
2 Linfa, sangue e suor em papa insana,
Na fusão miasmática sem cura,
Por sânie e fel no ventre da amargura
Cospem a podridão da casca humana.
3 Última convulsão que desgoverna.
A morte chega brusca, horrenda e terna… (70) n
Corre na goela hirta fino gume. (71)
4 A alma ditosa nasce noutro nível.
É o parto novo… E a vida imperecível n
Desabrocha qual lírio sobre o estrume.
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1 Qual monstro hirsuto que se desenterra,
Aborto horrendo de sinistro abdômen, n
Torna Caim, sem látegos que o domem,
Para a nova balística da guerra!
2 As medonhas mandíbulas descerra,
Indiferente às chagas que o carcomem,
E, bramindo, desperta na alma do homem
As maldições anônimas da Terra… n
3 Fera oculta no brilho do proscênio,
Crava as unhas na bomba de hidrogênio,
Fitando o mundo que se desgoverna…
4 Mas o Cristo contempla o quadro obscuro,
E, embora em pranto, envolve de amor puro
O lobo famulento da caverna.
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[1] AUGUSTO Carvalho Rodrigues DOS ANJOS — Bacharelando-se em Direito, na cidade do Recife, três anos depois transfere-se Augusto dos Anjos para o Rio de Janeiro, onde permanece por dois anos, lecionando na Escola Normal e no Colégio Pedro II. Muda-se posteriormente para Leopoldina, Minas, tornando-se abnegado diretor do Grupo Escolar “Ribeiro Junqueira”, até à desencarnação. Cognominado o “Poeta da Morte” por Antônio Torres, emparelha-se com Antero de Quental, como sendo poeta filósofo do mais alto nível. Os temas científicos encontraram em A. dos Anjos “o seu grande explorador”, segundo a expressão usada por Darcy Damasceno (in A Lit. no Brasil, III, t. 1, pág. 388). Apesar do pessimismo empedernido do poeta paraibano, salienta Fernando Góes (Pan., V, pág. 64) que “em muitos passos de sua obra áspera e amarga há traços de um grande espiritualismo”. (Engenho Pau d’Arco, perto da Vila do Espírito Santo, Paraíba, 20 de Abril de 1884 — Leopoldina, Minas Gerais, 12 de Novembro de 1914.)
BIBLIOGRAFIA: Eu; Eu e Outras Poesias.
[2] Verso 4 - Observe-se a semelhança desta estância com a primeira de “As Cismas do Destino” (Eu e Outras Poesias, pág. 67), que vamos transcrever na íntegra:
“Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no destino e tinha medo!”
[3] Verso 28 - Atente-se na aliteração em s.
[4] Verso 61 - Ei-lo, o doente… “um pronome pessoal ou o demonstrativo átono o, explicados em seguida por uma espécie de aposto” — Cf. Nota aos versos 3 e 4 de Desobsessão. A respeito do metro deste verso, em que a 6ª sílaba tônica recai no que, cf. o 1º verso do soneto “Solitário”: “Como um fantasma que se refugia”; o 10º verso de “O Lamento das Coisas”: “Da transcendência que se não realiza…”, etc.
[5] Versos 70-71. - horrenda — hirta. Não raro, frequentavam o vocabulário do poeta estas palavras. Cf. “Os Doentes” — VII, VIII e IX; “Noite de um Visionário”; “Apóstrofe à Carne”; “Louvor à Unidade”; etc.
[6] Verso 73 - Aposiopese: “É o parto novo…”
[7] Verso 76 - abdômen: “A rima abdómen com domem é, do ponto de vista ortoépico, canônico, imperfeita. Mas em verdade revela que, embora requintado em muitos aspectos de sua pronúncia, Augusto dos Anjos se deixaria levar de certas tendências populares. A pronúncia canônica, aliás, de abdômen é praticamente inexistente, salvo nas situações tensas de cátedra, oratória ou teatro culto requintado.” (Nota de Antônio Houaiss — N. Cl., na 46, pág. 21.)
[8] Verso 82 - É ainda de M. Cavalcanti Proença que vamos citar uma estatística: “No Monólogo de uma sombra, de Augusto dos Anjos, 55 entre 186 decassílabos (30%) são acentuados na 6ª sílaba, que é a tônica do proparoxítono.” (Ritmo e Poesia, págs. 80-81.) Nos 88 decassílabos que ora estudamos, o poeta, que por este ritmo tem acentuado parentesco com Cesário Verde, ostentou 16 vocábulos proparoxítonos acentuados na 6ª sílaba (18%).