O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VIII — Outubro de 1865.

(Idioma francês)

Os irmãos Davenport.

(Sumário)

1. — Os irmãos Davenport, que neste momento cativam a atenção em tão alto grau, são dois jovens de vinte e quatro e vinte e cinco anos, nascidos em Buffalo,  †  no Estado de Nova Iorque, e que se apresentam em público como médiuns. Todavia, sua faculdade é limitada a efeitos exclusivamente físicos, dos quais o mais notável consiste em se fazerem amarrar com cordas de maneira inextrincável e se acharem desatados instantaneamente, por uma força invisível, malgrado todas as precauções tomadas para garantir que são incapazes de o fazer eles próprios. A isto juntam outros fenômenos mais conhecidos, como o transporte de objetos no espaço, o toque espontâneo de instrumentos de música, a aparição de mãos luminosas, a apalpação por mãos invisíveis, etc.

Os Srs. Didier, editores de O Livro dos Espíritos, acabam de publicar uma tradução de sua biografia, contendo o relato minucioso dos efeitos que produzem e que, salvo as cordas, têm pontos muito numerosos de semelhança com os do Sr. Home. A emoção que a presença deles causou na Inglaterra e em Paris  †  dá a essa obra um poderoso interesse de atualidade. Seu biógrafo inglês, o Dr. Nichols — não foram eles que escreveram o livro, mas lhe forneceram os documentos — limitou-se ao relato dos fatos, sem explicações. Os editores franceses tiveram a feliz ideia de juntar à sua publicação, para compreensão das pessoas estranhas ao Espiritismo, nossos dois opúsculos: Resumo das leis dos fenômenos espíritas e O Espiritismo na sua expressão mais simples, além de numerosas notas explicativas no corpo do texto. n Assim, encontrarão nessa obra as informações que desejarem sobre a atuação desses senhores e em cujos detalhes não podemos entrar, pois temos de encarar a questão de outro ponto de vista.

Apenas diremos que sua aptidão para produzir esses fenômenos se revelou desde a infância, de maneira espontânea. Durante vários anos percorreram as principais cidades da América setentrional, onde adquiriram certa reputação. Pelo mês de setembro de 1864 vieram à Inglaterra, onde produziram viva sensação. Sucessivamente foram aclamados, denegridos, ridicularizados e mesmo injuriados pela imprensa e pelo público. Notadamente em Liverpool,  †  foram objeto da mais insigne malevolência, a ponto de verem comprometida a sua segurança pessoal. Sobre eles as opiniões se dividiram; segundo alguns, não passavam de hábeis charlatães; conforme outros, eram de boa-fé e podia-se admitir uma causa oculta para seus fenômenos; mas, em suma, ali conquistaram muito poucos prosélitos à ideia espírita propriamente dita. Naquele país, essencialmente religioso, o bom-senso natural repelia o pensamento de que seres espirituais viessem revelar sua presença por exibições teatrais e proezas admiráveis. Sendo ali pouco conhecida a filosofia espírita, o público confundiu o Espiritismo com essas representações, delas fazendo uma opinião mais contrária do que favorável à doutrina.

É verdade que na França o Espiritismo começou pelas mesas girantes, mas em condições muito diferentes. Tendo a mediunidade se revelado imediatamente em grande número de pessoas, de todas as idades e de ambos os sexos, e nas famílias mais respeitáveis, os fenômenos se produziram em condições que excluíam qualquer pensamento de charlatanismo; cada um pôde certificar-se por si mesmo, na intimidade e por observações repetidas, da realidade dos fatos, aos quais se ligou um interesse poderoso quando, saindo dos efeitos puramente materiais, que nada diziam à razão, viram as consequências morais e filosóficas deles decorrentes. Se, em vez disto, esse gênero de mediunidade primitiva tivesse sido privilégio de alguns indivíduos isolados, e que tivesse sido preciso comprar a fé nos palcos improvisados, há muito que não se cogitaria mais dos Espíritos. A fé nasce da impressão moral. Ora, tudo que é susceptível de produzir uma má impressão, a repele em vez de a provocar. Haveria hoje muito menos incrédulos, em relação ao Espiritismo, se os fenômenos sempre tivessem sido apresentados de maneira séria. O incrédulo, naturalmente predisposto à zombaria, não pode ser levado a tomar a sério o que está cercado de circunstâncias que nem impõem respeito nem confiança. Não se dando ao trabalho de aprofundar, a crítica forma sua primeira opinião sobre uma primeira aparência desfavorável e confunde o bom e o mau numa mesma reprovação. Muito poucas convicções se formaram nas reuniões de caráter público, ao passo que a imensa maioria saiu das reuniões íntimas, cuja notória honorabilidade de seus membros podia inspirar toda confiança e desafiar qualquer suspeita de fraude.


2. — Na última primavera, e depois de ter explorado a Inglaterra, os irmãos Davenport vieram a Paris. Algum tempo antes de sua chegada, uma pessoa veio ver-nos, da parte deles, para nos pedir que os apoiássemos em nossa Revista. Mas sabe-se que não nos entusiasmamos facilmente, mesmo pelas coisas que conhecemos e, com mais forte razão, pelas que não conhecemos. Assim, não pudemos prometer um concurso antecipado, já que temos por hábito só falar com conhecimento de causa. Na França, onde só eram conhecidos pelos relatos contraditórios dos jornais, a opinião, como na Inglaterra, estava dividida a seu respeito. Não podíamos, pois, formular prematuramente, nem uma censura, que poderia ter sido injusta, nem uma aprovação, da qual se teriam podido prevalecer. Por isto nos abstivemos.

Ao chegarem, foram morar no pequeno castelo n de Gennevilliers,  †  perto de Paris, onde permaneceram vários meses, não informando o público de sua presença. Ignoramos os motivos dessa abstenção. Nos últimos tempos deram algumas sessões particulares, de que os jornais noticiaram de um modo mais ou menos pitoresco. Enfim, foi anunciada sua primeira sessão pública para 12 de setembro na sala Hertz. Conhece-se o resultado deplorável dessa sessão que, em escala menor, repetiu as cenas tumultuosas de Liverpool, e na qual um dos espectadores, pulando para o palco, quebrou o aparelho desses senhores, mostrou uma tábua e exclamou: “Eis o truque.” Esse ato, inqualificável num país civilizado, levou a confusão ao cúmulo. Não tendo terminado a sessão, devolveram o dinheiro ao público. Mas como tinham sido dados muitos bilhetes de favor, e o caixa constatasse um déficit de setecentos francos, ficou provado que setenta assistentes gratuitos tinham saído com dez francos a mais no bolso, sem dúvida para se indenizarem dos gastos do deslocamento.


3. — A polêmica que se estabeleceu a respeito dos irmãos Davenport oferece vários pontos instrutivos, que vamos examinar.

A primeira pergunta que os próprios espíritas se fizeram é esta: Esses senhores são ou não são médiuns? Todos os fatos relatados em sua biografia entram no círculo das possibilidades mediúnicas, porque efeitos análogos, notoriamente autênticos, muitas vezes foram obtidos sob a influência de médiuns sérios. Se os fatos, por si mesmos, são admissíveis, as condições nos quais se produzem, é preciso convir, se prestam à suspeição. A que choca logo à primeira vista é a necessidade da obscuridade que, evidentemente, facilita a fraude; mas isto não seria uma objeção razoável. Os efeitos mediúnicos absolutamente nada têm de sobrenatural; todos, sem exceção, são devidos à combinação dos fluidos próprios do Espírito e do médium; esses fluidos, embora imponderáveis, não deixam de ser matéria sutil. Há, pois, aí uma causa e um efeito de certo modo materiais, o que sempre nos fez dizer que os fenômenos espíritas, por se basearem nas leis da Natureza, nada têm de miraculosos. Como tantos outros fenômenos, só nos pareceram miraculosos porque não se conheciam suas leis. Hoje conhecidas essas leis, desaparecem o sobrenatural e o maravilhoso, dando lugar á realidade. Assim, não há um só espírita que se atribua o dom dos milagres; é o que saberiam os críticos, se se dessem ao trabalho de estudar aquilo de que falam.


4. — Voltando à questão da obscuridade, sabe-se que em química há combinações que não podem operar-se à luz; que ocorrem composições e decomposições sob a ação do fluido luminoso. Ora, sendo todos os fenômenos espíritas, como dissemos, o resultado de combinações fluídicas, e sendo esses fluidos matéria, nada haveria de admirar que, em certos casos, o fluido luminoso fosse contrário a essa combinação.


5. — Uma objeção mais séria é a pontualidade com a qual os fenômenos se produzem, em dias e horas certos e à vontade. Esta submissão ao capricho de certos indivíduos é contrária a tudo quanto se sabe da natureza dos Espíritos, e a repetição facultativa de um fenômeno qualquer sempre foi considerada, e em princípio deve ser considerada, como legitimamente suspeita, mesmo em caso de desinteresse e, com mais forte razão, quando se trata de exibições públicas, feitas com fins especulativos, e às quais repugna à razão pensar que Espíritos possam submeter-se.


6. — A mediunidade é uma aptidão natural inerente ao médium, como a faculdade de produzir sons é inerente a um instrumento; mas, assim como se precisa de um músico para que um instrumento toque uma ária, necessita-se de Espíritos para que um médium produza efeitos mediúnicos. Os Espíritos vêm quando querem e quando podem, donde resulta que o médium mais bem dotado por vezes nada obtém; é como um instrumento sem músico. É o que se vê todos os dias; é o que acontecia ao Sr. Home, que muitas vezes ficava meses inteiros sem nada produzir, a despeito de seu desejo, ainda que em presença de um soberano.

Assim, resulta da própria essência da mediunidade — e se pode estabelecer como princípio absoluto — que um médium jamais está seguro de obter um efeito determinado qualquer, já que isto não depende dele; afirmar o contrário seria provar completa ignorância dos mais elementares princípios da ciência espírita. Para prometer a produção de um fenômeno a hora certa, é preciso dispor de meios materiais que não vêm dos Espíritos. É este o caso dos irmãos Davenport? Nós o ignoramos. Aos que acompanharam as suas experiências cabe fazer seu julgamento.


7. — Falaram de desafios, de entradas para jogos, propostas a quem fizesse as melhores mágicas. Os Espíritos não são fazedores de mágicas e jamais um médium sério entrará em luta com alguém e, ainda menos, com um prestidigitador. Este dispõe de meios próprios; o outro é o instrumento passivo de uma vontade estranha, livre, independente. Se o prestidigitador diz que faz mais que os médiuns, deixai-o fazer. Ele tem razão, pois age infalivelmente; diverte o público: é sua função; vangloria-se: é seu papel; faz a sua propaganda: é uma necessidade da posição. O médium sério, sabendo que não tem nenhum mérito pessoal no que faz, é modesto; não pode envaidecer-se daquilo que não é produto de seu talento, nem prometer o que de si não depende.

Contudo, os médiuns fazem algo mais. Por seu intermédio os bons Espíritos inspiram a caridade e a benevolência para com todos; ensinam os homens a se olharem como irmãos, sem distinção de raças nem de seitas, a perdoar aos que lhes dizem injúrias, a vencer as más inclinações, a suportar com paciência as misérias da vida, a encarar a morte sem medo, pela certeza da vida futura; consolam os aflitos, encorajam os fracos e dão esperança aos que não acreditavam.

Eis o que não ensinam nem as mágicas dos prestidigitadores, nem as dos Srs. Davenport.


8. — Assim, as condições inerentes à mediunidade não poderiam prestar-se à regularidade e à pontualidade, que são a condição indispensável das sessões a hora certa, onde é preciso satisfazer o público, custe o que custar. Se, no entanto, os Espíritos se prestassem a manifestações desse jaez, o que não seria radicalmente impossível, desde que os há de todos os graus possíveis de adiantamento, não poderiam ser, em todo o caso, senão Espíritos de baixa classe, porque seria extremamente absurdo pensar que Espíritos, por pouco elevados que fossem, viessem divertir-se fazendo exibições. Mas, mesmo nesta hipótese, o médium não deixaria de estar à mercê de tais Espíritos, que podem deixá-lo no momento em que sua presença fosse mais necessária, e fazer falhar a representação ou a consulta. Ora, como antes de tudo é preciso contentar o que paga, se os Espíritos faltam, tratam de os dispensar; com um pouco de habilidade é fácil enganar alguém. É o que acontece muitas vezes a médiuns dotados inicialmente de faculdades reais, mas insuficientes para o objetivo que se propõem.


9. — De todos os fenômenos espíritas, os que mais se prestam à imitação são os efeitos físicos. Ora, não obstante as manifestações reais tenham um caráter distintivo e só se produzam em condições especiais bem determinadas, a imitação pode chegar perto da realidade, a ponto de iludir as pessoas, sobretudo as que não conhecem as leis dos fenômenos verdadeiros. Mas, pelo fato de se poder imitá-los, seria tão ilógico concluir que não existem, quanto pretender que não há diamantes verdadeiros, porque os há falsos.

Não fazemos aqui nenhuma aplicação pessoal; enunciamos os princípios fundados na experiência e na razão, de onde tiramos esta consequência: só um exame escrupuloso, feito com perfeito conhecimento dos fenômenos espíritas, pode permitir a distinção entre a trapaça e a mediunidade real. E acrescentamos que a melhor de todas as garantias é o respeito e a consideração que se ligam à pessoa do médium, sua moralidade, sua notória honorabilidade, seu desinteresse absoluto, material e moral. Em tais circunstâncias, ninguém negaria que as qualidades do indivíduo constituem um precedente que impressiona favoravelmente, porque afastam até a suspeita de fraude.


10. — Não julgamos os Srs. Davenport e longe de nós pôr em dúvida a sua honorabilidade. Mas, à parte as qualidades morais, de que não temos nenhum motivo para suspeitar, é preciso confessar que eles se apresentam em condições pouco favoráveis para oficializar seu título de médiuns, e que é no mínimo com grande leviandade que certos críticos se apressaram em os qualificar de apóstolos e de sumo-sacerdotes da doutrina. O objetivo de sua viagem à Europa está claramente definido nesta passagem de sua biografia:

“Creio, sem cometer erro, que foi no dia 27 de agosto que os irmãos Davenport deixaram Nova Iorque,  †  trazendo em sua companhia, por causa de uma debilidade sobrevinda ao Sr. William Davenport, um ajudante na pessoa do Sr. William Fay, que não deve ser confundido com o Sr. H. Melleville Fay, que, segundo não sei que gênero de autoridade, ao que se diz, foi descoberto no Canadá, tentando produzir manifestações semelhantes, ou, ao menos, que se assemelhavam às dos irmãos americanos. Eram acompanhados pelo Sr. Paliner, muito conhecido como empresário e intermediário no mundo dramático e lírico, e a quem, graças à sua experiência, foi confiada a parte material e econômica do empreendimento.”

Está, pois, comprovado que foi uma empresa conduzida por um empresário e intermediário de negócios dramáticos. Os fatos relatados na biografia estão, ao que nos disseram, nas possibilidades mediúnicas; a idade e as circunstâncias em que começaram a manifestar-se afastam o pensamento de embuste. Tudo, pois, tende a provar que esses rapazes eram realmente médiuns de efeitos físicos, como se encontram muitos em seu país, onde a exploração dessa faculdade tornou-se hábito e nada tem de chocante para a opinião pública. Teriam ampliado suas faculdades naturais, como fazem outros médiuns exploradores, para aumentar o seu prestígio e suprir a falta de flexibilidade dessas mesmas faculdades? É o que não podemos afirmar, pois não temos nenhuma prova. Mas, admitindo a integridade de suas faculdades, diremos que se iludiram quanto ao acolhimento que lhe dispensou o público europeu -apresentadas sob forma de espetáculo de curiosidade — e em condições tão contrárias aos princípios do Espiritismo filosófico, moral e religioso. Os espíritas sinceros e esclarecidos, que aqui são numerosos, sobretudo na França, não os podiam aclamar em tais condições, nem os considerar apóstolos, mesmo supondo perfeita sinceridade da parte deles. Quanto aos incrédulos, cujo número também é grande, e que ainda ocupam as primeiras posições na imprensa, a ocasião de exercerem sua verve trocista era muito bela para que a deixassem escapar. Assim, aqueles senhores se expuseram à mais larga crítica, dando a cada um o direito que se espera ao comprar o bilhete de um espetáculo qualquer. Ninguém duvida que se eles se tivessem apresentado em condições mais sérias, outra teria sido a acolhida; teriam fechado a boca dos detratores.


11. — Um médium é forte quando pode dizer corajosamente: “Quanto vos custou vir aqui, e quem vos forçou a vir? Deus me deu uma faculdade e pode ma retirar quando lhe aprouver, como me pode tirar a visão ou a palavra. Só a utilizo para o bem, no interesse da verdade, e não para satisfazer a curiosidade ou servir aos meus interesses; dela só recolho o trabalho do devotamento; nem mesmo procuro a satisfação do amor-próprio, pois não depende de mim. Considero-a como uma coisa santa, porque me põe em relação com o mundo espiritual e me permite dar a fé aos incrédulos e consolo aos aflitos. Consideraria como um sacrilégio traficar com ela, porque não me julgo no direito de vender a assistência dos Espíritos, que vêm gratuitamente. Visto que dela não tiro qualquer proveito, não tenho, pois, nenhum interesse em vos iludir.” O médium que assim pode falar é forte, repetimos. É uma resposta irretorquível, e que sempre impõe respeito.


12. — Nesta circunstância, a crítica foi mais que maléfica; foi injusta e injuriosa, englobando na mesma reprovação todos os espíritas e todos os médiuns, aos quais não poupou os mais ultrajantes epítetos, sem pensar até que ponto feria e atingia as mais respeitáveis famílias. Não lembraremos expressões que só desonram os que as proferem. Todas as convicções sinceras são respeitáveis; e todos vós, que incessantemente proclamais a liberdade de consciência como um direito natural, ao menos a respeitai nos outros. Discuti as opiniões: é direito vosso; mas a injúria sempre foi o pior dos argumentos, e nunca o de uma boa causa.

Nem toda a imprensa é solidária com esses desvios do decoro. Entre os críticos, em relação aos irmãos Davenport, uns há em que o espírito não exclui as conveniências, nem a moderação, e que são justos. A que vamos citar ressalta justamente o lado fraco de que falamos. É tirada do Courrier de Paris du Monde illustré, número de 16 de setembro de 1865, e assinada por Neuter.

“Uma primeira objeção parecia-me suficiente para demonstrar que os bons rapazes, que deram uma sessão pública na sala Hertz, eram hábeis nos exercícios aos quais os mundos superiores ficavam completamente estranhos. Tiro esta objeção da própria regularidade com que exploravam seu pretenso poder miraculoso. Como! garantiam que eram Espíritos que vinham manifestar-se em público em seu proveito, e eis que os irmãos Davenport tratavam esses Espíritos que, afinal de contas, não são seus empregados, com tanta sem-cerimônia quanto um diretor de teatro, ditando regras às suas coristas! Sem perguntar aos seus comparsas sobrenaturais se o dia lhes convinha, se não estavam cansados, se o calor não os incomodava, marcavam uma data fixa, uma hora determinada, e era preciso que os seres fluídicos se deslocassem naquela data, entrassem em cena naquela hora, executassem suas facécias musicais com a precisão de um músico, a quem o seu café-concerto outorga um cachê de alguns vinténs!

“Francamente, era fazer do mundo espírita uma ideia muito mesquinha, no-lo apresentar assim como povoado de gênios por encomenda, de duendes assalariados, que iam à cidade a um sinal do patrão. Pois quê! nenhuma folga para esses figurantes supra-terrestres! Enquanto uma simples inchação dá ao mais humilde comediante o direito de mudar o espetáculo, as almas da trupe Davenport eram escravas, a quem era interdito tirar pequenas férias. Vale a pena morar em planetas fantásticos para ser reduzido a esse grau de escravidão?

“E para que tarefa eram convocadas essas almas infelizes do além? Para fazer passar suas mãos — mãos de almas! — através da fresta de um armário! Para as aviltar a ponto de se exibirem como saltimbancos! para as constranger a fazer malabarismos com violões, esses instrumentos grotescos, que nem mesmo querem os trovadores que cantam nas praças, com os olhos em moedas de I cinco centavos!…”


13. — Com efeito, não é pôr o dedo na ferida? Se o Sr. Neuter tivesse sabido que o Espiritismo diz exatamente a mesma coisa, embora de maneira menos espirituosa, não teria dito: “Mas isto não é Espiritismo!” absolutamente como vendo um curandeiro, diz: “Isto não é Medicina.” Ora, assim como nem a Ciência nem a religião são solidárias com os que delas abusam, o Espiritismo não se solidariza com os que lhe tomam o nome. A má impressão do autor vem, pois, não da pessoa dos irmãos Davenport, mas das condições nas quais se colocam perante o público e da ideia ridícula que dão do mundo espiritual as experiências feitas em tais condições, que chocam a própria incredulidade, por ver aquele mundo explorado e levado à força nos palcos improvisados. Essa foi a impressão da crítica em geral, que a traduziu em termos mais ou menos polidos, e será a mesma toda vez que os médiuns não forem capazes de respeitar a crença que professam.

O insucesso dos irmãos Davenport é um feliz acontecimento para os adversários do Espiritismo, que, no entanto, precipitam-se ao cantar vitória, ridicularizando, desafiando e gritando que seus adeptos estão mortalmente feridos, como se o Espiritismo estivesse personificado nos irmãos Davenport. O Espiritismo não está personificado em ninguém; está em a Natureza, e de ninguém depende travar-lhe a marcha, porque os que tentam fazê-lo trabalham pelo seu avanço. O Espiritismo não consiste em se fazer amarrar por cordas, nem nesta ou naquela experiência física; jamais tendo patrocinado esses senhores, nem os apresentando como pilares da doutrina, que nem mesmo conhecem, nenhum desmentido recebe de sua desventura. Seu fracasso não depõe contra o Espiritismo, mas contra os exploradores do Espiritismo.

De duas, uma: ou são hábeis prestidigitadores, ou são verdadeiros médiuns. Se são charlatães, devemos ser gratos a todos os que ajudam a desmascará-los; a propósito, devemos agradecimentos particulares ao Sr. Robin, por prestar em tudo isto notável serviço ao Espiritismo, que só poderia sofrer caso as suas fraudes se tivessem propagado. Todas as vezes que a imprensa assinalou abusos, explorações ou manobras capazes de comprometer a doutrina, os espíritas sinceros, longe de se lamentarem, aplaudiram. Se são verdadeiros médiuns, não podem servir utilmente à causa, pois as condições em que se apresentam são susceptíveis de produzir uma impressão desfavorável. Num e noutro caso o Espiritismo não tem nenhum interesse em tomar-lhes a defesa.


14. — Agora, qual será o resultado de todo esse escândalo?

Ei-lo: A crônica, que nesses dias de calor tropical estava de folga, ganha um assunto que se apressa em segurar para encher suas colunas, carentes de acontecimentos políticos, de notícias teatrais ou de salões.

O Sr. Robin aí encontra, para seu teatro de prestidigitação, uma excelente publicidade [Vide: Aparições simuladas no teatro], que explorou com muita habilidade, que lhe desejamos seja muito frutuosa, porque todos os dias ele fala dos Espíritos e do Espiritismo.

Com isto a crítica perde um pouco de consideração, pela excentricidade e pela incivilidade de sua polêmica.

Os mais prejudicados, materialmente falando, talvez sejam os Srs. Davenport, cuja especulação se acha singularmente comprometida.

Quanto ao Espiritismo, evidentemente é quem mais lucrará. Seus adeptos o compreendem tão bem que absolutamente não se emocionam com o que se passa e esperam o resultado com confiança. Na província, onde são, mais que em Paris, vítimas das zombarias dos adversários, contentam-se em lhes responder: Esperai, e em pouco tempo vereis que estará morto e enterrado.

Antes de mais, o Espiritismo ganhará com isto uma imensa popularidade e se tornará conhecido, ao menos de nome, por uma porção de gente que dele nunca tinha ouvido falar. Mas, nesse número, muitos não se contentam com o nome; sua curiosidade é excitada pela salva dos ataques; querem saber o que há nesse doutrina, supostamente tão ridícula; irão à fonte, e quando virem que apenas lhes deram uma paródia, dirão a si mesmos que a coisa não é tão má assim. Assim, pois, o Espiritismo ganhará por ser mais bem compreendido, mais bem julgado e mais bem apreciado.

Ganhará ainda pondo em evidência os adeptos sinceros e devotados, com os quais se pode contar, e os distinguir dos adeptos de fachada, que da doutrina só tomam as aparências ou a superfície. Seus adversários não deixarão de explorar a circunstância, para suscitar divisões ou defecções, reais ou simuladas, com a ajuda das quais esperam arruinar o Espiritismo. Depois de terem fracassado por todos os outros meios, é seu supremo e último recurso, mas que não lhes propiciará melhor êxito, porque só destacarão do tronco os galhos mortos, que não davam nenhuma seiva. Privado dos ramos paralíticos, o tronco será mais vigoroso.

Estes resultados, e vários outros, que nos abstemos de enumerar, são inevitáveis e não nos surpreenderíamos se os bons Espíritos tivessem provocado todo esse reboliço apenas para lá chegarem mais depressa.


[Revista de novembro.]

15. Da crítica a propósito dos irmãos Davenport.

(2º artigo.)

A agitação causada pelos irmãos Davenport começa a acalmar-se. Após a saraivada lançada pela imprensa contra eles e o Espiritismo, restam apenas alguns atiradores que, aqui e ali, queimam os últimos cartuchos, à espera de que outro assunto venha alimentar a curiosidade pública. De quem será a vitória? O Espiritismo está morto? É o que não tardarão a saber. Suponhamos que a crítica tenha matado os Srs. Davenport, o que não nos diz respeito; que resultado teria isto? O que dissemos em nosso artigo anterior. [v. Alocução do Sr. Allan Kardec na abertura das sessões da Sociedade de Paris a 6 de outubro de 1865.] Em sua ignorância do que é o Espiritismo, ela atirou sobre aqueles senhores, exatamente como um caçador que atira num gato pensando atirar numa lebre: o gato morreu, mas a lebre corre sempre.

Dá-se o mesmo com o Espiritismo, que não foi nem podia ser atingido pelos golpes que caíam de lado. A crítica, pois, equivocou-se, o que teria evitado facilmente se se tivesse dado ao trabalho de verificar a etiqueta. Contudo, não lhe faltaram avisos; alguns escritores até confessaram a influência das refutações que lhes chegavam de todos os lados, e isto da parte das mais honradas pessoas. Isto não lhes deveria ter aberto os olhos? Mas, não; haviam se embrenhado por um caminho e não queriam recuar; era preciso ter razão, custasse o que custasse. Muitas dessas refutações nos foram dirigidas; todas se distinguiam por uma moderação que contrasta com a linguagem dos nossos adversários e, em sua maioria, são de perfeita justeza de apreciação. Certamente ninguém pretendeu impor sua opinião àqueles senhores; mas a imparcialidade sempre impõe um dever admitir as retificações para pôr o público em condições de julgar os prós e os contras. Ora, como é mais cômodo ter razão quando se fala sozinho, pouquíssimas dessas publicações viram a luz da publicidade. Quem sabe mesmo se a maior parte foi lida? Então é preciso ser grato aos jornais que se mostraram menos exclusivos. Neste número está o Journal des Pyrénées-Orientales que, em seu número de 8 de outubro, contém a seguinte carta:


“Perpignan,  †  5 de outubro de 1865.

“Senhor Gerente,

“Não venho me lançar na polêmica; apenas solicito de vossa equidade que me permita, uma única vez, responder aos vivos ataques contidos na carta parisiense, publicada no último número de vosso jornal, contra os espíritas e o Espiritismo.

“Como os verdadeiros católicos, os verdadeiros espíritas não dão espetáculo público; estão penetrados do respeito de sua fé, aspiram ao progresso moral de todos e sabem que não é nos teatros de feira que se fazem prosélitos.

“Eis o que concerne aos irmãos Davenport.

“Haveria muito a dizer para refutar os erros do autor desses ataques irônicos; apenas direi que, tendo Deus dado ao homem o livre-arbítrio, atentar contra sua liberdade de crer, de pensar é colocar-se acima de Deus e, por conseguinte, um enorme pecado do orgulho.

“Dizer que esta nova ciência fez imensos progressos, que muitas cidades contam grande número de adeptos, que têm suas sedes, seus presidentes, e que suas reuniões incluem homens cultos, eminentes por sua posição na sociedade civil e militar, na advocacia, na magistratura, não é confessar que o Espiritismo está baseado na verdade?

“Se o Espiritismo não passa de um erro, por que se ocupam tanto com ele? O erro tem apenas uma duração efêmera, é um fogo-fátuo, que dura algumas horas e desaparece. Se, ao contrário, é uma verdade, por mais que façais, nem o podereis destruir nem o deter. A verdade é como a luz: só os cegos lhe negam a beleza.

“Dizem também que o Espiritismo provocou casos de alienação mental. Direi isto: o Espiritismo não causou mais loucura que o Cristianismo e os demais cultos, que não podem ser responsabilizados pelos casos de idiotismo que se encontram muitas vezes entre os praticantes das diversas religiões; os espíritos transtornados estão sujeitos à exaltação e à perturbação. Deixemos, pois, de uma vez por todas, esse último argumento no arsenal das armas fora de uso.

“Termino esta resposta dizendo que o Espiritismo nada vem destruir, a não ser a crença nos castigos eternos. Ele fortalece a nossa fé em Deus; torna evidente que a alma é imortal e que o Espírito se depura e progride pelas reencarnações; prova-nos que as diferentes posições sociais têm sua razão de ser; ensina-nos a suportar nossas provações, sejam quais forem; enfim, demonstra-nos que um só caminho nos leva a Deus: o amor do bem, a caridade!

“Aceitai, Senhor Gerente, meus agradecimentos e minhas atenciosas saudações.

“Tenho a honra de ser o vosso servo.”

Breux.


Todas as refutações que temos sob os olhos, e que foram dirigidas aos jornais, protestam contra a confusão que fizeram entre o Espiritismo e as sessões dos Srs. Davenport. Se, pois, a crítica persiste em prestar-lhe solidariedade, é porque quer.


Nota. — Num outro artigo, que a falta de espaço nos obriga a adiar para o próximo número, examinaremos as proposições mais importantes que ressaltam da polêmica suscitada a propósito dos Srs. Davenport. [Vide: Os Quiproquós.]



[1] Vide o Boletim bibliográfico.


[2] [O colégio Pasteur foi construído sobre a localização do château de Gennevilliers.]


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