O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VII — Fevereiro de 1864.

(Idioma francês)

VARIEDADES.


Cura de uma obsessão.

(Sumário)


1. — O Sr. Dombre, presidente da Sociedade Espírita de Marmande,  †  manda-nos o seguinte:


“Com o auxílio dos bons Espíritos, em cinco dias livramos de uma obsessão muito violenta e perigosa uma mocinha de treze anos, em completo poder de um Espírito mau, desde 8 de maio último. Diariamente, às cinco horas da tarde, sem falhar um só dia, ela tinha crises terríveis, de causar piedade. Esta menina reside num bairro afastado e os pais, que consideravam a doença como epilepsia, nem mesmo falavam do caso. Todavia, um dos nossos, que mora nas vizinhanças, foi informado e uma observação mais atenta dos fatos o levou a reconhecer facilmente a verdadeira causa. Seguindo o conselho de nossos guias espirituais, imediatamente nos pusemos à obra. A 11 deste mês, às oito horas da noite, começaram nossas reuniões com vistas a evocar o Espírito, moralizá-lo, orar pelo obsessor e pela vítima e a exercer sobre esta uma magnetização mental. As reuniões ocorriam todas as noites e na sexta-feira, 15, a menina sofreu a última crise. Não lhe resta senão a fraqueza da convalescença, consequência de tão longas e tão violentas convulsões, e que se manifesta pela tristeza, pela languidez e pelas lágrimas, como nos havia sido anunciado. Éramos informados diariamente, pelas comunicações dos bons Espíritos, das diversas fases da moléstia.

“Essa cura, encarada noutros tempos como milagre, por uns, e como feitiçaria, por outros, pelo qual, segundo a opinião, teríamos sido santificados ou queimados, produziu certa sensação na cidade.”

Cumprimentamos os nossos irmãos de Marmande pelo resultado que obtiveram naquela circunstância e sentimo-nos felizes ao ver que aproveitam os conselhos contidos na Revista, a propósito de casos análogos relatados ultimamente. Assim, puderam convencer-se da força da ação coletiva, quando dirigida por uma fé sincera e uma ardente caridade.


[Revista de março de 1864.]

2 A JOVEM OBSEDADA DE MARMANDE.

(Continuação.)

No número anterior relatamos a notável cura obtida por meio da prece, pelos espíritas de Marmande, de uma mocinha obsedada dessa cidade. Uma carta posterior confirma o resultado da cura, hoje completa. O semblante da jovem, alterado por oito meses de torturas, retomou seu viço, seu bom aspecto e sua serenidade.

Seja qual for a opinião que se tenha, a ideia que se faça do Espiritismo, qualquer pessoa animada de sincero amor do próximo deve ter-se alegrado de ver a tranquilidade voltar a essa família, e o contentamento substituir a aflição. É lamentável que o Sr. cura da paróquia não tenha julgado dever associar-se a esse sentimento, e que a circunstância lhe tenha fornecido o texto de um sermão pouco evangélico numa de suas prédicas. Suas palavras, ditas em público, são do domínio da publicidade. Se ele se tivesse limitado a uma crítica leal da doutrina conforme seu ponto de vista, disso não falaríamos; mas julgamos dever refutar os ataques dirigidos contra pessoas muito respeitáveis, por ele tratadas de saltimbancos, a propósito do fato acima.

Disse ele: “Assim, o primeiro engraxate que vier poderá então, se for médium, evocar um membro de uma família honrada, enquanto ninguém da família poderá fazê-lo? Não acrediteis nestes absurdos, meus irmãos; isto é trapaça, é tolice. De fato, que vedes nessas reuniões? Carpinteiros, marceneiros, que sei mais?… Algumas pessoas me perguntaram se eu havia contribuído para a cura da moça. Não, respondi-lhes; nada tenho a ver com isto; não sou médico”.

“Não vejo nisso”, dizia aos parentes, “senão uma afecção orgânica da alçada da Medicina”, acrescentando que se tivesse julgado que as preces pudessem operar algum alívio, ele as teria feito desde muito tempo.

Se o Sr. cura não crê na eficácia das preces em caso semelhante, agiu bem em não as fazer. Daí se pode concluir que, como homem consciencioso, se os pais lhe tivessem vindo pedir missas pela cura da jovem, teria recusado o pagamento, porque, caso o aceitasse, ter-se-ia feito pagar por uma coisa que considerava sem valor. Os espíritas creem na eficácia da prece pelos doentes e nas obsessões; oravam, curavam e nada cobravam; mais ainda: se os pais estivessem passando necessidades, eles os teriam assistido. Diz ele: “São charlatães e saltimbancos.” Desde quando se viu charlatães trabalhando de graça? Fizeram a doente usar amuletos? Fizeram sinais cabalísticos? Pronunciaram palavras sacramentais, atribuindo-lhes uma virtude eficaz? Não, pois o Espiritismo condena toda prática supersticiosa; oravam com fervor, em comunhão de pensamento; essas preces eram malabarismos? Aparentemente não; já que tiveram êxito, é porque foram ouvidas.

Que o Sr. cura trate o Espiritismo e as evocações de absurdos e tolices é direito seu, se tal é sua opinião; ninguém tem nada com isto. Mas quando, para denegrir as reuniões espíritas, diz que aí só se veem carpinteiros, marceneiros, etc., não é apresentar essas profissões como degradantes e os que as exercem como gente desprezível? Então esqueceis, Sr. cura, que Jesus era carpinteiro e que seus apóstolos eram todos pobres artesãos ou pescadores. Será evangélico lançar do alto do púlpito o desdém sobre a classe dos trabalhadores que Jesus quis honrar, nascendo entre eles? Compreendestes o alcance de vossas palavras, quando dissestes: “O primeiro engraxate que vier poderá, então, se for médium, evocar um membro de uma família honrada?” Então desprezais esse pobre engraxate, quando limpa os vossos sapatos? Ora vejam! Porque sua posição é humilde não o achais digno de evocar a alma de uma nobre personagem? Então temeis que essa alma se macule, quando, para ela, se erguerem ao céu mãos enegrecidas pelo trabalho? Então credes que Deus faça diferença entre a alma do rico e a do pobre? Não disse Jesus: Amai o próximo como a vós mesmos?  ( † ) Ora, amar o próximo como a si mesmo é não fazer nenhuma diferença entre si mesmo e o próximo; é a consagração do princípio: Todos os homens são irmãos, porque são filhos de Deus. Receberá Deus com mais distinção a alma do grande que a do pequeno? a do homem a quem fazeis um serviço pomposo, pago largamente, que a do infeliz, ao qual não concedeis senão as mais curtas preces? Falais do ponto de vista exclusivamente mundano e esqueceis que Jesus disse: “Meu reino não é deste mundo;  ( † ) lá não existem mais as distinções da Terra; lá os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos? Quando disse: “Há várias moradas na casa de meu pai”,  ( † ) significa que há uma para o rico e uma para o proletário? uma para o senhor e outra para o servo? Não; mas que há uma para o humilde e outra para o orgulhoso, pois ele disse: “Que aquele que quiser ser o primeiro no céu seja o servo de seus irmãos na Terra.”  ( † ) Então compete a esses a quem chamais profanos, vos lembrar o Evangelho?

Senhor cura, em qualquer circunstância tais palavras seriam pouco caridosas, sobretudo no templo do Senhor, onde só deveriam ser pregadas palavras de paz e de união entre todos os membros da grande família. No estado atual da sociedade são uma inabilidade, porque semeiam o fermento do antagonismo. Que tivésseis dito tais palavras numa época em que os servos, habituados a humilhar-se, se julgavam uma raça inferior, porque lho haviam dito, é compreensível; mas na França de hoje, em que todo homem honesto tem direito de levantar a cabeça, seja plebeu, seja patrício, é um anacronismo.

Se, como é provável, havia carpinteiros no auditório, marceneiros e engraxates, devem ter sido pouco tocados pelo sermão. Quanto aos espíritas, sabemos que pediram a Deus que perdoasse ao orador as suas palavras imprudentes, e que eles mesmos perdoaram ao que lhes dizia Raca.  ( † ) É o conselho que damos a todos os irmãos.


[Revista de junho de 1864.]

3 Relato completo da cura da jovem obsedada de Marmande.

(Vide os números de fevereiro e março de 1864.)

O Sr. Dombre, de Marmande, enviou-nos o relato circunstanciado dessa cura, da qual já demos conhecimento aos leitores. Os detalhes que encerra são do mais alto interesse, do duplo ponto de vista dos fatos e da instrução. Como se verá, é, ao mesmo tempo, um curso de ensino teórico e prático, um guia para casos análogos e uma fonte fecunda de observações para o estudo do mundo invisível em geral, nas suas relações com o mundo visível.

Fui advertido — diz o Sr. Dombre em seu relatório — por um dos membros de nossa sociedade espírita, das crises violentas que todas as tardes, regularmente, no decurso dos últimos oito meses, sofria uma tal Tereza B…

Acompanhado do Sr. L…, médium, dirigi-me, em 11 de janeiro último, às quatro e meia da tarde, a uma casa vizinha à da doente, para tentar testemunhar a crise que, conforme ocorria todos os dias, devia acontecer às cinco horas. Lá encontramos a jovem e sua mãe, conversando com os vizinhos. A meia hora logo passou. De repente, vimos a moça levantar-se, abrir a porta, atravessar a rua entrar em sua casa, seguida pela mãe, que a tomou e a colocou toda vestida na cama. Começaram as convulsões; o corpo se contorcia; a cabeça tendia a tocar os calcanhares; o peito ofegava; numa palavra: era desagradável à vista. Entrando eu e o médium na casa vizinha, perguntamos ao Espírito Louis David, guia espiritual do médium, se era uma obsessão ou um caso patológico. O Espírito respondeu:


4. — “Pobre criança! Com efeito, ela se acha sob uma fatal influência, mesmo muito perigosa; vinde auxiliá-la. Obstinado e mau esse Espírito resistirá por muito tempo. Evitai, tanto quanto possível, que seja tratada por medicamentos, que lhe prejudicariam o organismo. A causa é toda moral. Tentai evocar esse Espírito; moralizai-o com delicadeza: nós vos auxiliaremos. Que todas as almas sinceras que conheceis se reúnam para orar e combater a mui perniciosa influência desse Espírito maldoso. Pobre pequena vítima do ciúme!”


Louis David. n


P. — Por que nome chamaremos este Espírito?

Resp. — Jules.


Evoquei-o imediatamente. O Espírito apresentou-se de modo violento, injuriando-nos, rasgando o papel e recusando responder a certas interpelações. Enquanto nos entretínhamos com o Espírito, o Sr. B…, médico, que tinha vindo examinar a crise, chegou junto de nós e disse com certo assombro: “É singular! De repente a menina deixou de se contorcer; agora está imóvel no leito, toda estendida.” — “Isto não me causa admiração”, disse-lhe eu, “porque o Espírito obsessor está junto de nós neste momento.” Exortei o Sr. B… a voltar para a doente e continuamos a interpelar o Espírito que, em dado momento, não mais respondeu. O guia do médium informou-nos que ele tinha ido continuar a sua obra, recomendando que não mais o evocássemos durante as crises, no interesse da menina, porque, voltando para ela com mais raiva, a torturava de modo mais intenso. No mesmo instante o médico entrou e nos informou que a crise recomeçava mais forte que nunca. Eu lhe fiz ler o aviso que acabava de nos ser dado e ficamos chocados com as coincidências, que não podiam deixar dúvidas quanto à causa do mal.

A partir dessa noite e sob recomendação dos bons Espíritos que nos assistem nos trabalhos espíritas, nós nos reuníamos todas as noites, até a cura completa.


5. — No mesmo dia 11 de janeiro, recebemos a seguinte comunicação do Espírito protetor de nosso grupo:


“Guardiã vigilante da infância infeliz, venho associar-me aos vossos trabalhos, unir os meus aos vossos esforços para libertar esta mocinha das garras cruéis de um mau Espírito. O remédio está em vossas mãos; velai, evocai e orai sem jamais vos cansardes, até a cura completa.”


Pequena Cárita. n


Este Espírito, que toma o nome de Pequena Cárita, é o de uma jovem que conheci, morta na flor da idade e que, desde a mais tenra infância, tinha dado provas de grande angelitude e de rara bondade.

A evocação do Espírito obsessor só nos valeu as mais grosseiras e obscenas injúrias, que é inútil repetir. Nossas exortações e nossas preces resvalavam sobre ele, mas não surtiram o efeito desejado.


“Amigos, não desanimeis; ele se julga forte porque vos vê aborrecidos com a sua linguagem grosseira. Evitai pregar-lhe moral neste momento. Conversai com ele familiarmente e em tom amigável, pois assim ganhareis a sua confiança e mais tarde podereis voltar a falar a sério com ele. Amigos, perseverança.”


Vossos Guias.


Conforme a recomendação, tornamo-nos afáveis nas interpelações, às quais ele respondeu no mesmo tom.

No dia seguinte, 12 de janeiro, a crise foi tão longa e violenta que as dos dias precedentes; durou mais ou menos uma hora e meia. A menina erguia-se no leito, repelia o Espírito com força e lhe dizia: “Vai-te! vai-te!” O quarto da doente estava cheio de gente. Alguns de nós nos achávamos junto ao leito para observar atentamente as fases da crise.

Na reunião da noite recebemos a seguinte comunicação:


“Meus amigos, eu vos exorto a seguirdes, como tendes feito, passo a passo, esta obsessão que, para vós, é um fato novo. Vossas observações serão de grande utilidade, pois casos semelhantes, em que tereis de intervir, poderão multiplicar-se.

“Creio que esta obsessão, a princípio inteiramente física, será seguida de alguma obsessão moral, mas sem perigo. Logo vereis momentos de alegria em meio às torturas exercidas por esse mau Espírito. Reconhecê-los-eis pela presença e pela mão dos bons Espíritos. Se as torturas ainda durarem, notareis, depois da crise, a completa paralisação do corpo e, após essa paralisação, uma alegria serena e um êxtase que suavizarão a dor da obsessão.

“Observai bastante. Manifestar-se-ão outros sintomas e neles encontrareis novo material de estudo.

“O Senhor disse aos seus anjos: Ide levar minha palavra aos filhos dos homens. Ferimos a terra com a vara e esta gera prodígios. Curvai-vos, filhos: é a onipotência do Eterno que se vos manifesta.

Amigos, vigiai e orai; estamos junto de vós e do leito dos sofrimentos para secar as lágrimas.”


Pequena Cárita.


6. — Evocado, o Espírito Jules estava menos intratável do que na véspera; na verdade, respondemos às suas facécias com outras, o que lhe agradava. Antes de nos deixar, fizemos nos prometesse ser menos duro em relação à sua vítima. “Tratarei de moderar-me”, disse ele; e como, por nossa vez, prometemos orar por ele, respondeu-nos: “Aceito, embora não conheça o valor desta mercadoria.”


P. (Ao Espírito). Já que não conheceis a prece, quereis conhecê-la e escrever uma ditada por mim?

Resposta. — Gostaria muito.


Ditado por nós, o Espírito escreveu a seguinte prece: “Ó meu Deus! prometo abrir minha alma ao arrependimento; fazei penetrar no meu coração um raio de amor por meus irmãos, única coisa que pode purificar-me e, como garantia desse desejo, aqui faço a promessa de… (O fim da frase era: Cessar minha obsessão; mas o Espírito não escreveu estas três últimas palavras). Acrescentou: Alto! Quereis comprometer-me, sem me avisar. Cuidado! Não gosto de armadilhas. Andais muito depressa.” E como quiséssemos saber a origem de seu ciúme e de sua vingança, continuou: “Nunca mais me faleis da menina; apenas me afastaríeis de vós.

A crise do dia 13 não durou mais que meia hora; a luta com o Espírito foi seguida de sorrisos de felicidade, de êxtase e de lágrimas de alegria; com os olhos muito abertos e juntando as duas mãos, a menina erguia-se no leito e fitava o céu, como num quadro encantador. As predições da pequena Cárita realizaram-se em todos os pontos.

Na evocação ocorrida à noite, assim como nos dias anteriores, o Espírito Jules mostrou-se mais afável, mais submisso, e novamente prometeu moderar os seus ataques contra a menina, cuja história jamais quis contar; prometeu até mesmo orar.

Disse-nos o guia do médium: “Não confieis muito em suas palavras; podem ser sinceras, mas ele poderia estar querendo vos enganar para se livrar de vós. Ficai de guarda. Levai em consideração as suas promessas; se, mais tarde, tiverdes de o censurar, fazei-o com brandura, a fim de que ele sinta os bons sentimentos que tendes para com ele.


Louis David.


No dia 14 a crise foi tão curta quanto na véspera e ainda menos viva. Foi igualmente seguida de êxtase e de manifestações de alegria. As lágrimas que corriam pelas faces da menina causavam nos assistentes uma emoção que não podiam ocultar.

Reunidos às oito horas da noite, como de costume, recebemos inicialmente a seguinte comunicação:

“Como deveis ter notado, operou-se hoje uma melhora sensível na menina. Devemos dizer que nossa presença influi bastante sobre o Espírito; nós lhe lembramos a promessa de ontem. A mocinha hauriu novos conhecimentos no êxtase e tentou repelir os ataques do obsessor. Na evocação de Jules, não useis de subterfúgios; evitai os detalhes que fatigam uns aos outros; sede francos e benevolentes com ele e o conquistareis mais cedo. Conforme pudemos notar nesta última crise, ele deu um grande passo à frente.”


Pequena Cárita.


7. — Evocação de Jules.

Resposta. — Eis-me aqui, senhores.


1. P. — Quais as vossas disposições de hoje?

Resposta. — São boas.


2. P. — Sentistes o efeito de nossas preces?

Resposta. — Não muito.


3. P. — Perdoai à vossa vítima e sentireis uma satisfação que não conheceis; é o que sentimos no perdão das injúrias.

Resposta. — Comigo é tudo ao contrário. Eu encontrava satisfação na vingança de uma injúria. A isto chamo pagar as dívidas.


4. P. — Mas o sentimento de ódio que conservais na alma é um sentimento desagradável que está longe de vos dar tranquilidade.

Resposta. — Se vos dissesse que é o apego, acreditaríeis em mim?


5. P. — Acreditamos. Não obstante, tende a bondade de explicar como conciliais esse apego com a vingança que praticais. Que era para vós o Espírito dessa criança numa outra existência, e que vos fez ela para merecer tanto rigor?

Resposta. — Inútil que mo pergunteis. Já vo-lo disse: não me faleis dessa menina.


6. P. — Pois bem! não falemos mais nisso. Mas devemos vos felicitar pela mudança em vós operada; estamos felizes por isto.

Resposta. — Faço progressos em vossa escola… Que vão dizer os outros?… Vão me vaiar e protestar: Ah! tu te fazes eremita!


7. P. — Que vos importa seu escárnio, se tendes os louvores dos bons Espíritos?

Resposta. — É verdade.


8. P. — Ora! Para provar aos maus Espíritos, vossos antigos companheiros, que rompeis completamente com eles, deveríeis perdoar completamente, a partir de hoje; mostrar-vos generoso e bom, deixando de modo absoluto a jovem pela qual nos interessamos.

Resposta. — Impossível, meu caro senhor. Isto não pode acontecer de maneira tão repentina. Deixai que me desfaça pouco a pouco do que me é uma necessidade. Sabeis a que vos arriscaríeis se eu cessasse subitamente? a me ver voltar de súbito. Entretanto, quero vos prometer uma coisa: é poupar a menina e torturá-la amanhã menos que hoje. Mas imponho uma condição: a de não ser trazido aqui à força; quero vir livremente ao vosso apelo e, se faltar à minha palavra, consinto em perder este favor. Devo dizer-vos que tal mudança em mim é devida a essa figura radiosa que aí está, junto de vós, e que também vejo ao lado da cama da menina, todos os dias, no momento da luta. Sentimo-nos tocado, mesmo sem o querer; sem isto, vós e os santos teríeis dificuldades por alguns dias. (O Espírito referia-se à pequena Cárita).


9. P. — Então ela é bonita?

Resposta. — Oh! sim, muito bela!


10. P. — Mas ela não está sozinha junto de vós durante as lutas?

Resposta. — Oh! não! Há outros: os antigos do corpo, os amigos. Eles jamais sorriem; mas agora zombo muito deles.


Observação. – O interrogador por certo queria falar dos outros bons Espíritos, mas Jules fazia alusão aos maus Espíritos, seus companheiros.


11. P. — Vamos! Antes de nos deixar, prometemos esta noite fazer uma prece por vós.

Resposta. — Eu peço dez; dizei-as de coração e amanhã estareis contentes comigo.


12. P. — Pois bem! que sejam dez. E já que estais em tão boas disposições, quereis escrever de cor uma prece em três palavras, ditada por mim?

Resposta. — De bom grado.


O Espírito escreveu: “Ó meu Deus, dai-me a força de perdoar.”


8. — No dia 15 de janeiro a crise se deu, como sempre, às cinco horas da tarde, mas durou apenas um quarto de hora. A luta foi fraca e seguida de êxtase, sorrisos e lágrimas, que exprimiam alegria e felicidade.

Na reunião da noite, a pequena Cárita nos deu a comunicação seguinte:

“Meus caros protegidos, conforme havíamos previsto o fenômeno espírita que se passa aos vossos olhos se modifica, melhora dia a dia, perdendo seu caráter de gravidade. Antes de mais, um conselho: Que seja para vós um tema de estudo, do ponto de vista das torturas físicas, e de estudos morais. Aos olhos do mundo não façais sinais exteriores; não digais palavras inúteis. Que vos importa o que hão de dizer? Deixai a discussão aos ociosos. Que o objetivo prático, isto é, a libertação desta menina e a melhora do Espírito que a obsidia, seja o elemento de vossas conversas íntimas e sérias; não faleis de cura em voz alta; pedi-a a Deus no recolhimento e na prece.

“Esta obsessão — sinto-me feliz em dizer — chega ao fim. O Espírito Jules melhorou sensivelmente. Também eu, com todo o meu poder, agi sobre o Espírito da menina, a fim de que essas duas naturezas tão opostas se tornassem mais compatíveis entre si. A combinação dos fluidos não oferecerá mais nenhum perigo real em relação ao organismo; o abalo que sentia esse corpo jovem ao contato fluídico desaparece sensivelmente. Vosso trabalho não acabou; a prece de todos deve sempre preceder e seguir a evocação.”


Pequena Cárita.


9. — Após a evocação de Jules e a prece, na qual é qualificado de Espírito mau, diz ele:

“Eis-me aqui! Em nome da justiça, peço a reforma de certas palavras de vossa prece. Reformei os meus atos; reformai as qualificações que me dais.”


1. P. — Tendes razão; não erraremos mais. Hoje viestes sem constrangimento?

Resposta. — Sim, vim livremente; cumpri minhas promessas.


2. P. — Agora que estais calmo e com bons sentimentos, concordais em nos confiar os motivos de vosso rigor em relação a essa menina?


Resposta. — Por favor, deixai o passado. Quando o mal está cauterizado, para que revolver a ferida? Ah! sinto que o homem deve tornar-se melhor. Tenho horror ao meu passado e encaro o futuro com esperança. Quando uma boca de anjo vos diz: A vingança é uma tortura para quem a exerce; o amor é a felicidade para aquele que o prodigaliza, então, [para que] esse fermento que azeda e seca o coração se extingua: é preciso amar.


Estais admirados de minhas palavras? Não são criação minha; foram-me ensinadas e tenho prazer em vo-las repetir. Ah! como seríeis felizes se, mesmo por um minuto, pudésseis perceber este anjo bom, radioso como o sol, suave como o orvalho refrescante que cai em gotículas finas sobre uma planta queimada pelo fogo do dia! Como vedes, não tenho dificuldade de falar: bebo na fonte.

“Um rápido golpe de vista em minha vida vagabunda:

“Nascido no seio da miséria, ligado ao vício, desde cedo experimentei os amores grosseiros da vida. Sorvi com o leite a poção envenenada que me ofereciam todas as paixões. Errei sem fé, sem lei, sem honra. Quando se tem de viver ao acaso, tudo é bom. A galinha do camponês, como o carneiro do castelão, servia-nos de refeição. A pilhagem era a minha ocupação, quando sem dúvida o acaso, pois não creio que a Providência cuide de semelhantes celerados, me tomou e me equipou. Orgulhoso da roupa batida, que substituía meus andrajos, e munido de uma alabarda, juntei-me a um bando de… maus companheiros, vivendo a expensas de um senhor cobarde que, por sua vez, distinguia-se pelo talhe sobre seus companheiros. Mas que nos importava, a nós, a fonte de onde corriam para as nossas mãos a moeda e as provisões! Não entrarei em detalhes sobre os fatos que me são pessoais: eles são maus, horríveis e indignos de serem contados. Compreendeis que, educado em semelhante escola, a gente possa tornar-se um homem de bem?

“Separado pela morte, o bando foi restabelecer-se no mundo dos Espíritos. Longe de evitar as ocasiões de fazer o mal, nós as buscávamos. Em meus passeios errantes, encontrei uma vítima a fazer e o fiz. O resto já sabeis.

“Orai também pelo bando, senhores, por favor! Muitas vezes vos admirais de que uma região contenha mais malfeitores que outras. É muito simples. Não querendo separar-se, lançam-se sobre uma região como uma nuvem de gafanhotos: aos lobos, as florestas; aos pombos, os pombais.

“Vivi esta existência terrena ao tempo de Luís XIII.  †  Minha última experiência passou-se sob o Império. Fui guerrilheiro; o bacamarte e o chapéu cônico adornado com fitas me agradavam muito. Amava o perigo, o roubo e as ações arriscadas. Triste gosto, direis; mas que fazer alhures? Estava habituado a viver nos bandos. Deveis estar admirados dessa mudança súbita: é a obra de um anjo.

“Nada vos prometo para amanhã. Julgar-me-eis por meus atos. Uma prece, por favor; por minha vez, vou fazer uma:

“Anjinho, abre tuas asas, levanta voo para o trono do Senhor; pede-lhe o meu perdão, pondo a seus pés o meu arrependimento.”


Jules.


3. P. — Já que estais em tão bom caminho, pedi a Deus pela pobre menina…

Resposta. — Não posso… seria irrisão ou crueldade que o carrasco abraçasse sua vítima.

No dia seguinte, 16 de janeiro, a menina não teve crise, mas apenas um desconforto gástrico. Aos nossos olhos, havia-se operado a libertação.


10. — Às oito horas da noite, respondendo ao nosso apelo, o Espírito Jules deu a seguinte comunicação:

“Meus amigos, permiti-me este nome. Eu, o Espírito obsessor, astuto e perverso; eu que, ainda há poucos dias, apodrecia no mal e nisso tinha prazer, vou, com o auxílio do anjo, vos pregar moral. Eu mesmo me encontro surpreso por esta mudança; pergunto-me se sou eu mesmo quem fala.

“Julgava que todo sentimento se tivesse apagado em minha alma; mas uma fibra ainda vibrava; o anjo a adivinhou e a tocou; começo a ver e a sentir. O mal me causa horror. Lancei o olhar sobre o meu passado e só vi crimes. Uma voz suave me disse: Espera; contempla a alegria e a felicidade dos bons Espíritos; purifica-te; perdoa, em vez de te vingar; ama, ao invés de odiar. Também te amarei, eu, se quiseres amar, se te tornares melhor. Sinto-me comovido. Agora compreendo a felicidade que experimentarão os homens, quando souberem praticar a caridade.

“Mocinha, (dirigia-se à sua vítima, presente na sessão) tu, que eu havia escolhido para minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim e que o nome do reprovado se apague da tua memória. Recebi o batismo do amor das mãos do Senhor e agora visto a roupa da inocência. Pobre menina, desejo que tuas preces, dirigidas ao Senhor em meu benefício, logo me livrem do remorso que me vai acompanhar como uma expiação justamente merecida.

“Meus amigos, tende a bondade de continuar, também, vossas preces por meus miseráveis companheiros, que me perseguem com a sua inveja maldosa, porque lhes escapo. Ainda ontem eu me perguntava o que eles dirão de mim; hoje eu lhes digo: Venci; meu passado está perdoado, pois soube arrepender-me. Fazei como eu, travai a batalha contra o mal, que vos mantém cativo nesse lugar de tormentos e de desespero; saí de lá vencedores. Se, como a vossa, a minha mão criminosa encharcou-se de sangue, ela vos levará a água santa da prece que lava os estigmas do reprovado. Meu Deus, perdão!

“Obrigado, meus amigos, pelo bem que me fizestes. Pedirei para ficar junto de vós, a partir de hoje, para assistir às vossas reuniões. Necessito beber na fonte pura, conselhos para viver uma nova existência, que rogarei a Deus, quando tiver sofrido a expiação de meu passado infame, que a consciência censura.”


Jules.


A 17 de janeiro, conforme a promessa de Jules, a menina não sentiu qualquer mal-estar do estômago. A Pequena Cárita anunciou que ela sofreria uma prova moral, às cinco horas da tarde, durante alguns dias, ou durante o sono, prova que nada teria de penoso para ela e cujos únicos sintomas seriam sorrisos e doces lágrimas, o que realmente aconteceu, durante dois dias. Nos dias seguintes houve a mais completa ausência do menor sinal de crise. Nem por isso deixamos de observar a menina e de orar.


11. — Em 18 de fevereiro a Pequena Cárita nos ditou a seguinte instrução:

“Meus bons amigos, bani todo o medo; a obsessão está acabada e bem-acabada; uma ordem de coisas estranhas para vós, mas que logo vos parecerão naturais, talvez seja a consequência desta obsessão, mas não obra de Jules. Algumas explanações são aqui necessárias como ensinamento.

“Hoje, que conheceis a doutrina, a obsessão ou a subjugação do ser material se vos apresenta não como um fenômeno sobrenatural, mas simplesmente com um caráter diferente das doenças orgânicas.

“O Espírito que subjuga penetra o perispírito do ser sobre o qual quer agir. O perispírito do obsedado recebe como uma espécie de envoltório o corpo fluídico do Espírito estranho e, por esse meio, é atingido em todo o seu ser; o corpo material experimenta a pressão sobre ele exercida de maneira indireta.

“Causa admiração que a alma possa agir fisicamente sobre a matéria animada. Entretanto, é ela a autora de todos esses fatos. Ela tem por atributos a inteligência e a vontade; por sua vontade ela dirige, e o perispírito, de natureza semimaterial, é o instrumento do qual ela se serve.

“O mal físico é aparente, mas a combinação fluídica, que vossos sentidos não podem captar, esconde um número infinito de mistérios, que se revelarão com o progresso da doutrina, considerada do ponto de vista científico.

“Quando o Espírito abandona sua vítima, sua vontade não age mais sobre o corpo, mas a impressão que recebeu o perispírito pelo fluido estranho de que foi carregado, não se apaga de repente e continua ainda por algum tempo a influir sobre o organismo. No caso de vossa jovem doente: tristezas, lágrimas, langores, insônias, distúrbios vagos, tais são os efeitos que poderão produzir-se em consequência dessa libertação; mas, tranquilizai-vos, vós, a menina e sua família, pois essas consequências não representarão perigo para ela.

“O dever me chama, de maneira especial, a levar a bom termo o trabalho que iniciei convosco. Agora é preciso agir sobre o próprio Espírito da menina, por uma doce e salutar influência moralizadora.

“Quanto a vós, meus amigos, continuai a orar e a observar atentamente todos esses fenômenos; estudai sem cessar; o campo está aberto e é vasto. Dai a conhecer e fazei compreender todas as coisas, e pouco a pouco as ideias espíritas se insinuarão no Espírito de vossos irmãos, que o aparecimento da doutrina encontrou incrédulos ou indiferentes.”


Pequena Cárita.


Observação. – Devemos um justo tributo de elogios aos nossos irmãos de Marmande pelo tato, prudência e devotamento esclarecido de que deram prova nessa circunstância. Por este retumbante sucesso Deus lhes recompensou a fé, a perseverança e o desinteresse: moral, já que não buscavam nenhuma satisfação ao amor-próprio; o mesmo não teria ocorrido se o orgulho tivesse ofuscado sua boa ação. Deus retira seus dons a quem quer que não os use com humildade; sob o império do orgulho, as mais eminentes faculdades mediúnicas se pervertem, alteram-se e se extinguem, porque os bons Espíritos retiram o seu concurso. As decepções, os dissabores, as desgraças efetivas desde esta vida, muitas vezes são a consequência do desvio da faculdade de seu objetivo providencial. Poderíamos citar mais de um exemplo infeliz entre os médiuns que suscitavam as mais belas esperanças.

A tal respeito, nunca nos penetraríamos demasiadamente das instruções contidas na Imitação do Evangelho, nº 285, 326 e seguintes, 333, 392 e seguintesn

Recomendamos às preces de todos os bons espíritas o Espírito obsessor Jules, acima citado, a fim de o fortalecer em suas boas resoluções e fazer que compreenda o que se ganha fazendo o bem. [Vide o caso da jovem Valentine Laurent na Revista de janeiro de 1865: Nova cura de uma jovem obsedada de Marmande.]



[1] [v. Louis David.]


[2] [v. Pequena Cárita.]


[3] [Citações redirecionadas para as passagens correspondentes do Evangelho.]


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