O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O Livro dos Espíritos.

(1ª edição)

O papel de Allan Kardec na codificação espírita

I

“Só se confia o comando de um Exército a um hábil general, capaz de dirigi-lo. Julgais que Deus seja menos prudente que os homens?” 3


Nos últimos dias de sua passagem entre nós, quando já se vislumbravam no horizonte as nuvens tempestuosas do calvário, o Cristo de Deus reuniu os apóstolos a fim de transmitir-lhes suas derradeiras instruções. Profundo conhecedor da psicologia humana, e deixando extravasar todo o amor que lhe vinha da alma, o Mestre tranquilizou os discípulos e prometeu que não os deixaria órfãos.

Se me amais — dizia Jesus naquela ocasião — guardai meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e Ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: o Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece. Vós, porém, o conhecereis, porque ficará convosco e estará em vós. Mas o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. 4

Fácil é de ver-se, como mais tarde reconheceria Allan Kardec, 5 que Jesus não revelou tudo o que sabia, admitindo, além disso, que suas palavras seriam mal interpretadas ou mesmo falseadas pelos interesses subalternos mundanos, visto que sobre muitos assuntos Ele se viu obrigado, em razão da nossa indigência espiritual, a lançar os germens de verdades que só mais tarde desabrochariam no coração dos homens. Dotado da presciência que caracteriza os Espíritos superiores, o Mestre rasgava naquele momento os horizontes do futuro e divisava o vale de lágrimas em que se transformaria a Terra, cujas religiões, não obstante nascidas da fonte sem mácula do Cristianismo primitivo, seriam impotentes para consolar a Humanidade sofredora, razão pela qual se tornava necessária a presença de um Consolador que ficasse eternamente conosco.

Quando, porém, se daria o seu advento? Um século, dois séculos, três séculos mais tarde? Não, evidentemente. A Humanidade é lenta demais em suas conquistas. O Consolador, que viria consubstanciar-se na Doutrina Espírita, não podia chegar tão cedo ainda. Era preciso o concurso da lenta sucessão dos séculos para operar as transformações indispensáveis à sua eclosão e preparar o espírito humano para recebê-lo. Como imaginá-lo nas trevas da Idade Média, quando as fogueiras inquisitoriais consumiam milhares de criaturas, tão só por se insurgirem contra a ortodoxia oficial então reinante? Como antecipar sua vinda, antes que os progressos da Ciência, sobretudo nos campos da Física, da Química, da Psicologia, da Biologia, da Sociologia e da Antropologia viessem trazer sua contribuição valiosa, sem a qual Allan Kardec não poderia lançar as bases do edifício que os Espíritos superiores vinham edificar? Era preciso “dar tempo ao tempo”; aguardar que o povo conquistasse a liberdade de pensar e pudesse expressar as próprias ideias sem qualquer temor, especialmente sobre suas crenças religiosas. Por isso,

se viesse mais cedo, ter-se-ia chocado contra o materialismo todo-poderoso; em tempo mais recuado, teria sido sufocado pelo fanatismo cego. Apresenta-se no momento [certo] […] em que a reação espiritualista, provocada pelos próprios excessos do materialismo, já se apoderava de todos os espíritos […] preocupados com o futuro da Humanidade. 6

Chegados os tempos preditos, a quem confiar na Terra a missão de coordenar os ensinamentos que seriam revelados pela Espiritualidade Superior? Em outras palavras, quem seria encarregado de materializar neste mundo a promessa feita por Jesus, dezoito séculos antes, de ficar eternamente conosco? Como bem sabemos, nada se faz de improviso nos planos divinos. Tudo é programado com antecedência, tudo é planejado minuciosamente, de modo a garantir à obra o sucesso de sua execução. O instrumento a ser escolhido deveria, portanto, estar à altura da missão que vinha desempenhar. Para isso, a misericórdia de Jesus Cristo convocou um de seus “mais lúcidos discípulos”, 7 que, na França imperial de Napoleão III, se imortalizou sob o pseudônimo de Allan Kardec. Sua missão? – “Reorganizar o edifício desmoronado da fé, reconduzindo a civilização às suas profundas bases religiosas”. 8

Missão complexa, missão difícil. Quanto maior a tarefa, maiores as dificuldades, os percalços daqueles que estão incumbidos de sua execução. O escolhido tanto podia triunfar, como falir. Neste último caso, outro o substituiria, porquanto os desígnios de Deus não se assentam na cabeça de um homem. 9 A chance, porém, que tinha Allan Kardec de vencer era imensa, considerando-se os predicados morais e intelectuais que o distinguiam entre os homens. Por isso mesmo ele foi escolhido. Já não se tratava de levantar uma ponta do véu que encobre as verdades eternas, como faziam periodicamente os profetas do Velho Testamento e, em maior escala, como fez Jesus no seu tempo; tratava-se, isto sim, de rasgar esse véu de ponta a ponta, de escancarar a verdade, a fim de que a luz pudesse jorrar a mancheias, em todos os quadrantes da Terra, tanto na choupana como no palácio, de modo a beneficiar a Humanidade inteira exilada neste mundo.

Temperado pelas experiências de múltiplas existências, numa das quais foi condenado à fogueira pela intolerância clerical, 10 Allan Kardec já divisava a complexidade da tarefa que o Alto lhe confiara. Já sabia que trabalhar na seara de Jesus não o isentava das dores nem das agruras a que está sujeita a Humanidade em sua lenta evolução para esferas mais elevadas. Não disse o Mestre: “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me?” 11 Além disso, fora advertido pelo próprio Espírito de Verdade de que a missão dos reformadores é cheia de escolhos e rude seria a dele, Kardec, pois se tratava de abalar e transformar o mundo. Não lhe bastava publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficar tranquilamente em casa. Tinha que expor sua pessoa; suscitaria contra si ódios terríveis; inimigos encarniçados se conjurariam para sua perda. Ver-se-ia a braços com a malevolência, a calúnia e mesmo com a traição dos que lhe pareciam mais dedicados. Suas melhores instruções seriam desprezadas e falseadas; por mais de uma vez sucumbiria ao peso da fadiga, e teria que sustentar uma luta quase contínua, com sacrifício do repouso, da tranquilidade, da saúde e mesmo da própria vida, pois sem isso viveria muito mais tempo. 12

Quando surgiram as primeiras manifestações espíritas, pouquíssima atenção foi dada aos fenômenos, imaginando seus contraditores que se tratasse de um modismo sem maiores consequências. Quando, porém, tomaram consciência de que a Doutrina não era um fogo de palha, se assentava na razão, tinha consequências morais e respondia aos grandes questionamentos da Humanidade, os que a combatiam passaram a servir-se de todos os expedientes para desmoralizá-la. Uma das primeiras medidas visava ridicularizar o Espiritismo perante os adeptos e simpatizantes; depois vieram outras, tentando indispor os espíritas contra as autoridades constituídas, por supostamente representarem aqueles um perigo para a sociedade e para a ordem política reinante, não sendo pequeno, para não dizer grande, o papel da Igreja nessa cruzada, excomungando os fiéis e lhes interditando a leitura de obras espíritas. Entretanto, quando se deram conta de que nem a zombaria, nem a oposição clerical, nem as perseguições individuais surtiam os efeitos desejados, passaram a lançar mão da calúnia. Sim, da calúnia, da hipocrisia, da mentira! E, como não podia deixar de ser, Allan Kardec atraiu a si a maior parte dos ataques dirigidos contra o Espiritismo. É que, tentando desmerecer o homem, pretendiam desacreditar a Doutrina; buscando destruir o chefe, imaginavam aniquilar a ideia, e por isso se lançaram sem dó nem piedade contra ele. Mas aquele espírito de escol era inquebrantável. Seu modelo era Jesus, e nele hauria as forças de que precisava para não desanimar nem sucumbir. Mesmo sabendo que o Mestre, a bondade por excelência, o “lenho verde” de que nos fala o Evangelho, 13 foi alvo de tudo que a maldade pôde imaginar; Allan Kardec, na sua aparente fragilidade de “lenho seco” e sem se deixar intimidar, arrostou todas as dificuldades para que o Consolador fincasse, definitivamente, suas imensas raízes por sobre a Terra inteira.

Triste, no entanto, foi haver ele constatado que os opositores se infiltravam até mesmo nas fileiras do Espiritismo. O que caracterizava esses pretensos adeptos era a tendência a fazer o Espiritismo sair dos caminhos da prudência e da moderação por seu ardente desejo do triunfo da verdade; era o estímulo às publicações excêntricas, o êxtase ante as comunicações apócrifas mais ridículas, a provocação de reuniões comprometedoras sobre política e religião, o elogio e a bajulação a pessoas e instituições. Os mais hipócritas, com olhar e palavras melífluas, sopravam a discórdia enquanto pregavam a união. Sustentavam com habilidade a discussão de questões irritantes ou ferinas, capazes de provocar dissidências; excitavam a inveja de predominância sobre os diversos grupos e ficariam contentíssimos se os vissem a se apedrejarem. Alguns, visando ao lucro, acrescentavam a cartomancia e a quiromancia, prediziam o futuro, liam a sorte, descobriam tesouros ocultos, indicavam a cotação na bolsa e os números premiados da loteria. Faziam, pois, o oposto do que o Espiritismo preconiza, e tudo isso com o intuito de comprometer a Doutrina, expô-la ao ridículo e excitar contra ela a ira dos opositores e das autoridades. Ora, reconhecia Allan Kardec, se todas as doutrinas têm tido os seus Judas, se até Jesus Cristo teve o seu, por que o Espiritismo se veria livre deles? 14

Outras categorias nunca estavam contentes, qualquer que fosse o ritmo e a direção que o Codificador imprimisse aos seus trabalhos. Uns achavam que ele andava depressa demais, outros com excessiva lentidão. Os primeiros o reprovavam por haver formulado princípios imaturos e de se impor como chefe filosófico. Os segundos, os que pretendiam que Kardec não andava com bastante rapidez, esses gostariam de empurrá-lo num caminho que ele não queria se arriscar. Assim, sem se deixar influenciar pelas ideias de uns nem de outros, prosseguia sua jornada; e como era sério o objetivo que perseguia e o visse claramente, não se inquietava com os clamores dos que passavam. Afora esses, havia espíritas cuja suscetibilidade era levada ao excesso; que se melindravam com as mínimas coisas, até com o lugar que lhes era destinado nas sessões se não os punham em evidência; médiuns obsidiados, ou melhor, fascinados, que se afastavam dos grupos quando não se dava crédito às mais ridículas mensagens que recebiam, sem falar de outros que não o perdoavam por ter sido bem sucedido na condução de seus trabalhos. Tudo isso levou Kardec a reconhecer que os maiores inimigos do Espiritismo são os falsos espíritas, os amigos inábeis, que fazem o contrário do que a Doutrina recomenda e não praticam a lei que proclamam. 15 Por aí já se vê o terreno minado em que pisava o Codificador.

Pedras, pois, não faltaram no seu caminho, pedras de todos os tamanhos, por cima das quais ele passava, mesmo sobre as maiores. 16 É que jamais uma doutrina filosófica causou tanta comoção quanto o Espiritismo e nenhuma foi atacada com tamanha obstinação, fato perfeitamente natural, por se tratar de uma ideia nova que vinha contrariar interesses e abalar as crenças. Entretanto, por levar a peito sua determinação de discutir sem disputar17 poucas vezes Allan Kardec se permitiu defender-se das aleivosias de que era alvo, e mesmo assim dentro das normas da mais estrita conveniência.

Nossa vida — dizia ele certa ocasião — é toda de labor e estudo, e até os momentos de repouso nós os consagramos ao trabalho […]. Como tantos outros, trazemos nossa pedra ao edifício que se levanta, embora não fazendo disso um degrau para alcançar o que quer que seja. Que outros tragam mais pedras que nós; que outros trabalhem tanto e melhor que nós e os veremos com sincera alegria. O que queremos, antes de tudo, é o triunfo da verdade, venha de onde vier, pois não temos a pretensão de ver sozinho a luz […]. 18

Ninguém, portanto, mais bem talhado que o futuro Codificador para secundar os Espíritos do Senhor, “que são as virtudes dos céus”, no sagrado labor de implantar na Terra os fundamentos de uma Nova Era para a regeneração da Humanidade. A razão disto? Porque Deus

só confia missões importantes aos que Ele sabe capazes de cumpri-las, já que as grandes missões são fardos pesados que esmagariam o homem demasiado fraco para carregá-los. Como em todas as coisas, o mestre tem de saber mais que o discípulo; para fazer que a Humanidade avance moral e intelectualmente, são precisos homens superiores em inteligência e moralidade, razão por que são sempre escolhidos, para essas missões, Espíritos já adiantados, que fizeram suas provas em outras existências, visto que, se não fossem superiores ao meio em que têm de atuar, nula seria sua ação. 19

E Allan Kardec encarnava perfeitamente esse “homem superior em inteligência e moralidade”. Educado na escola de Pestalozzi, foi em Yverdon que se lhe desenvolveram as ideias que mais tarde deviam fazer dele um observador atento e meticuloso, um pensador prudente e profundo. De cultura vasta e multifária, dominava todas as chamadas ciências fundamentais de Auguste Comte, assim como a Lógica, a Retórica, a Anatomia comparada e a Fisiologia. Além do francês, sua língua materna, conhecia bem o alemão e o holandês, e tinha noções de latim e grego. Educador emérito, durante trinta anos empenhou-se de corpo e alma em instruir a juventude parisiense, aí se preparando para ser o homem universal, aquele “bom senso encarnado” de que nos falou Camille Flammarion. Assim, muito antes que o Espiritismo lhe popularizasse e imortalizasse o pseudônimo Allan Kardec, já ele havia firmado bem alto, no conceito do povo francês e no respeito de autoridades e professores, sua reputação de distinguido mestre da pedagogia moderna. 20

Isto quanto ao preparo intelectual, ao “instruí-vos” de que nos fala o Espírito de Verdade. 21 Quanto ao “amai-vos”; quem melhor do que Allan Kardec para vivenciar o real sentido da palavra caridade, tal como o entendia e praticava Jesus? 22 Como ele mesmo afirmava, aqueles princípios não existiam apenas em teoria, visto que os punha em prática; fazia tanto bem quanto o permitia sua condição; prestava serviços quando podia; os pobres nunca foram repelidos de sua porta, ou tratados com dureza, sendo recebidos sempre e a qualquer hora com a mesma benevolência; nunca se queixou dos passos que deu para fazer um benefício; pais de família saíram da prisão graças aos seus esforços; sua consciência lhe dizia que nunca fez mal a ninguém e que praticou todo o bem que estava ao seu alcance, sem, contudo, se preocupar com a opinião alheia; desculpava os outros, para que o desculpassem também, a fim de poder dizer, como Jesus Cristo: Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado; ( † ) fazia todo o bem que lhe era possível, mesmo aos inimigos, porquanto o ódio não o cegava, estendendo-lhes sempre as mãos para tirá-los do precipício, caso se lhe oferecesse ocasião para isso. 23

Diante, pois, de tamanhas credenciais, como negar ao Codificador do Espiritismo os requisitos indispensáveis para secundar e mesmo ombrear os Mensageiros do Senhor, tendo à frente o próprio Cristo, na implantação definitiva do Reino de Deus na Terra? Como verdadeiro missionário de Deus e como intérprete fiel do Espírito de Verdade, Allan Kardec, talvez melhor que qualquer outro em seu lugar, justificou a missão que o Alto lhe confiou pela superioridade com que se conduziu na Terra, pela grandeza de que deu provas, pelas virtudes que lhe exornavam o caráter e, acima de tudo, pelo resultado e pela influência moralizadora de suas obras. 24



[3] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 21, It. 9.

[4] João, 14:15 a 17 e 26.

[5] Id. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 6, it. 4, p. 150-152.

[6] Id. Revista Espírita - Reação das ideias espiritualistas, v. 6, 1863, p. 400.

[7] XAVIER, Francisco Cândido. A Caminho da Luz, cap. 22, p. 233.

[8] Id. Ibid., cap. 23, p. 240.

[9] KARDEC, Allan. Obras Póstumas - 2ª parte, cap. 8 - Minha missão, p. 367.

[10] N.T.: Consta que Allan Kardec fora a reencarnação de Jan Huss, queimado vivo em Constança (Alemanha) no século XV.

[11] Mateus, 16:24.

[12] KARDEC, Allan. Obras Póstumas - 2ª parte, cap. 8 - Minha missão, p. 368.

[13] Lucas, 23:31.

[14] KARDEC, Allan. Obras Póstumas - 1ª parte, cap. 22 - Os desertores, p. 324.

[15] Id. Revista Espírita - Discurso do Sr. Allan Kardec, v. 4, 1861, p. 495.

[16] Id. Viagem Espírita em 1862 - Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux, p. 63.

[17] Id. Revista Espírita - Introdução, v. 1, 1858, p. 24.

[18] Id. Revista Espírita - Diatribes, v. 2, 1859, p. 103.

[19] Id. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 21, it. 9, p. 399.

[20] WANTUIL, Zêus (Organizador). Allan Kardec, a educador e o codificador, p. 183, 223-224.

[21] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 6, it. 5, p. 153.

[22] Id. O Livro dos Espíritos - Caridade e amor do próximo, livro 3º, cap. 11, questão 886, p. 532.

[23] Id. Obras Póstumas - 2ª parte, cap. 35 - Fora da caridade não há salvação, p. 435-436.

[24] Id. O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 399 [A referência remete a uma página do Índice Geral que não faz sentido; não obstante, sugerimos a leitura das Consequências morais do Espiritismo].


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