JOÃO HUSS. — Nascido em Hussinec, na Boêmia, hoje República Tcheca,
em 1373, de uma família pobre que vivia da agricultura, ele recebeu
boa educação elementar e cursou a Universidade de Praga (capital atual
da República Tcheca), onde terminou seu mestrado em Filosofia no ano
de 1396. Dois anos depois, Huss começou ensinar na Universidade da qual,
em 1401, veio a ser o reitor. Em 1400, Huss foi ordenado padre e foi-lhe
entregue a responsabilidade da prestigiada Capela de Belém. Após o casamento
do rei inglês Ricardo II da Inglaterra com Ana, filha do imperador Carlos
IV da Boêmia, em 1382, os ensinamentos de Wycliff
(teólogo, reformador e tradutor da primeira Bíblia para o inglês) foram
logo introduzidos no país. Estudando-os bem de perto, Huss começou não
só a pregar, como também a traduzir as obras de Wycliff na língua tcheca.
Em 1403, João Huss se propôs a reformar a Igreja Romana na Boêmia, ensinando que o papado não tinha nenhuma autoridade de oferecer a remissão dos pecados por meio da venda de indulgências, como também questionou a legitimidade dos dois papas rivais Gregório XII e Alexandre V Por essa razão, em 1408, os padres e colegas da Universidade de Praga condenaram Huss e, como resultado, ele foi proibido de exercer suas funções eclesiásticas em Praga. Um ano depois, ele recebe novas acusações de estar ensinando heresias; mas não para de pregar na Capela de Belém. Em 1411, Huss é excomungado de sua congregação, e todos os cultos, cerimônias de batizado e funeral que realizara foram anulados. Tal ato trouxe grande revolta aos cidadãos de Praga, os quais defenderam Huss. O cúmulo da corrupção religiosa sucedeu em 1412, quando o papa lançou uma cruzada contra o Rei Ladislau de Nápoles e ofereceu a remissão completa de pecados a todos os que participassem da guerra, ou a venda de indulgências para os que a suportassem. Ao ouvir tal notícia contrária a todos os preceitos bíblicos, Huss se levanta e ataca o papado de usar sanções espirituais e indulgências para fins pessoais e políticos. Em contra-ataque, João Huss foi excomungado de Roma e obrigado a deixar Praga.
Durante seu exílio, Huss teve a oportunidade de concluir uma de suas obras mais importantes, “De ecclesia”. No ano de 1414, os líderes da Igreja Romana se reuniram para um Concílio em Constança (atualmente na Alemanha), e John Huss foi convocado a comparecer a fim de esclarecer seus ensinos controversos com os ensinamentos da época. O imperador boêmio, Sigismund, prometeu salvo-conduto, mas, após um mês em Constança, os seguidores do papa prenderam-no, e ele foi impelido pelo Concílio a se retratar, mas não o fez. Huss permaneceu preso durante os sete meses de seu julgamento, e pouca oportunidade foi-lhe dada de se defender. Por não voltar atrás, João Huss foi condenado como herege, despido e queimado na estaca fora da cidade, no dia 6 de julho de 1415. Huss morreu cantando o hino em grego “Kyrie eleison” (Senhor, tem misericórdia). O local de sua morte é marcado até hoje com uma pedra memorial. Como Wycliff, Huss lutou pela reforma da igreja pagando o preço com sua vida. Os perseguidores destruíram o corpo, mas não os ensinos de Huss, que foram espalhados por toda a Europa por seus discípulos mais radicais, conhecidos como Taboritas. Estes rejeitaram tudo da fé e da prática da Igreja Romana que não se encontrasse na Bíblia. Desses discípulos surgiu a Igreja Moraviana, a qual tornou-se mais tarde numa das igrejas de mais visão missionária da história da igreja. O resultado do trabalho de Huss e de tantos outros foi visto um século depois, na pessoa de Lutero. (Jornal Árvore da Vida. Ano 15, jornal 154, Setembro de 2005 — Publicação mensal. Registro de títulos e documentos nº 126540. Associação Árvore da Vida: www.arvoredavida.org.br — Av. Corifeu de Azevedo Marques, 137, Butantã. CEP 05581-000 — São Paulo.)
HUSS, VÍTIMA DA INQUISIÇÃO CONCILIAR
Nos albores do século XV, a Igreja Católica apresentava um quadro bastante lamentável. Prosseguia ainda o “grande cisma” eclesiástico: havia dois papas — um em Avinhão e o outro em Roma —, entre os quais jazia uma luta furiosa.
Em 1409, o Concílio de Pisa tirou a tiara aos papas Benedito XIII e Gregório XII (de Avinhão e Roma, respectivamente), elegendo em substituição a Alexandre V. Mas os papas derrotados, longe de reconhecer a resolução desse foro, anatematizaram a todos os seus participantes. Assim, pois, o Concílio de Pisa agravou o grande cisma em vez de eliminá-lo: depois dele, três papas (e não dois como antes) aspiraram ao título de vigário de Jesus-Cristo. Alexandre V morreu um ano depois de sua eleição. Sucedeu-lhe, sob o nome de João XXIII, o antigo pirata Baltasar Cossa, “cínico e perverso, dado a luxúrias antinaturais”, segundo a definição de Marx. n Muitos consideraram ilegal a instalação de Cossa na Santa Sede. n Ao cabo de pouco tempo João derrotado em uma guerra com o rei napolitano, evadiu-se de Roma para estabelecer-se em Florença.
A porfiada contenda pela tiara apostólica foi tão só um dos aspectos da crise que a afetava tanto a cúpula como o clero inferior da Igreja Católica. Pese às fogueiras da Inquisição, no seio da Igreja aumentou a oposição à hierarquia eclesiástica; em toda parte exigia-se privá-la de suas colossais riquezas mundanas, em particular da propriedade territorial. A princípios do século XV, o centro dessa oposição se constituiu em Boêmia, onde os clérigos encabeçados por João Huss, continuador de J. Wyclif, n como apoio dos camponeses checos, a pequena nobreza, os plebeus urbanos e outros cidadãos, estigmatizaram a vida luxuosa do clero superior, sua cobiça e a venda de indulgências e se opuseram aos feudais e nobres alemães. Para fazer frente aos hussitas se formou uma união dos feudais alemães, encabeçada pelo imperador Segismundo e os hierarcas eclesiásticos com o Papa à frente.
Com o fim de por termo às discórdias na Igreja e dar ao traste com a heresia hussita, Segismundo e João XXIII convocaram em Constança o XVI Concílio Ecumênico. Este foro inaugurou-se em 5 de novembro de 1414 em presença de 3 patriarcas, 29 cardeais, 35 arcebispos, mais de 150 bispos, 124 abades 578 doutores em teologia e outros muitos eclesiásticos, acompanhados por elevado número de serviçais (umas 18.000 pessoas). Entre os delegados seculares figuraram o imperador Segismundo, os representantes de 10 reis, mais de 100 condes e príncipes, 2.400 cavalheiros e 116 representantes de cidades. No total, apresentaram-se em Constança — entre os participantes no Concílio, seus servidores e escoltas militares, os convidados, os artistas errantes (só os flautistas somaram 1400) e as prostitutas — cerca de 100.000 pessoas. n Foi, com efeito, um dos concílios mais representativos da Igreja Católica.
Na ordem do dia do Concílio incluía três pontos fundamentais: luta contra a heresia, restabelecimentos da unidade da Igreja Católica e reformas eclesiásticas.
O Concílio de Constança durou três anos. Suas deliberações foram mui tumultuosas, houve muitas controvérsias agudas. Subordinou-se ao Concílio e apresentou sua abdicação o Papa Gregório XII. Mas Benedito XIII, o Papa de Avinhão, negou-se a reconhecer a autoridade do Concílio; encontrou asilo na Espanha, onde continuou insistindo, ainda que sem êxito, em seu direito de levar a tiara pontificial. João XXIII, acusado de vários delitos, fugiu de Constança, mas foi detido, regressando a essa cidade (em 1415) e foi recluso em um castelo. Recuperou a liberdade só três anos depois, por ordem do Papa Martin V, instalado na Santa Sede pelo mesmo Concílio.
O sucesso mais dramático e, segundo os cronistas, “memorável”, do foro de Constança, foi a vista da causa do pensador e humanista João Huss, distinguido representante do movimento pela Reforma em Boêmia, e sua execução, típicos para a atividade da Inquisição conciliar.
Huss foi chamado por João XXIII a comparecer ante o Concílio; já havia sido excomungado e anatematizado pela Igreja, mas continuava, com o apoio da população, a propaganda pela Reforma em Praga. Decidiu apresentar-se no Concílio, com tanta maior razão porquanto ele mesmo havia exigido reiteradamente a convocatória desse foro e tinha um salvo-conduto outorgado pelo imperador Segismundo, que lhe garantia a imunidade. A negativa houvera equivalido, em tais circunstâncias, a uma manifestação de covardia, coisa inconcebível em um lutador por uma causa justa como era Huss. Ademais, significaria reconhecer-se culpável de ações heréticas, enquanto ele mesmo se considerava um cristão autêntico e imputava aos hierarcas eclesiásticos oponentes o desprezo da “verdadeira” doutrina de Jesus-Cristo.
Aos 25 dias de sua chegada a Constança, Huss foi encarcerado, por ordem de João XXIII e dos cardeais, em um subterrâneo de um convento dominicano, em uma cela oprobriosa contígua à latrina (in quodam carcere juxta latrinas). Detiveram-no sem fazer caso do salvo-conduto expedido pelo imperador Segismundo.
O próprio imperador, que figurava entre os delegados ao Concílio, declarou, com a escrupulosidade própria dos príncipes em casos desta índole, que o salvo-conduto por ele firmado tinha “uma finalidade especial”, é dizer, devia assegurar a Huss a “vista equitativa” de sua causa no Concílio e oferecer-lhe a possibilidade de defender-se ante os padres conciliares, mas de nenhum modo exonerá-lo do castigo pelas convicções heréticas. “Se alguém — disse Segismundo — continuar obstinando-se em sua heresia, me encarregaria pessoalmente de acender a fogueira e queimá-lo”. n
Ademais ao imperador não foi necessário de modo algum justificar-se ante Huss, porque, segundo os cânones eclesiásticos, o descumprimento de qualquer promessa, tratado ou acordo era justo e lícito se beneficiava ao Papa e à religião. Enquanto ao herege, a Igreja eximia automaticamente aos crentes de todo compromisso que houvessem contraído com eles. No caso dado, Segismundo bem podia não sentir o menor escrúpulo, pois a responsabilidade de suas ações recaía sobre o próprio Papa, vigário de Jesus-Cristo na Terra.
Ao deter João Huss, o Concílio se adjudicou as funções de tribunal inquisitorial. Nomeou juízes de instrução e fiscais, os quais engenharam uma ata de acusação de 42 pontos contra o teólogo checo, encarregando aos comissários especiais de interrogar ao recluso. Os interrogatórios duraram vários meses. Nesse período precisamente fugiu de Constança, segundo adiantamos, o Papa João XXIII.
Cabia esperar que, uma vez desaparecido de cena João XXIII, Huss recobraria a liberdade. Mas tudo se limitou a seu translado de uma prisão a outra (de um monastério dominicano ao castelo de Totleben) e a substituição dos comissários do Papa fugitivo por outros novos.
Em Totleben, Huss esteve aferrado com grilhões, e à noite se lhe sujeitava além disso a uma cadeia fixa na parede. Ao cabo de pouco tempo foi posto em reclusão no mesmo castelo João XXIII, depois de sua detenção, mas diferentemente do reformador checo, ofereciam-lhe todo conforto. Isto se explica perfeitamente pela circunstância de que o ex-Papa penitenciava-se, reconhecendo todas as inculpações do Concílio; Huss, por outro lado, insistia em sua inocência, diga-se, na opinião dos eclesiásticos, se comportou como um herege recalcitrante.
Huss denunciou a venalidade, a libertinagem, o afã de lucro e a avidez do clero. Não por isso era herege, já que muitos padres conciliares censuravam os vícios dos clérigos, e o Concílio mesmo havia sido convocado para encontrar-lhes um antídoto.
A doutrina hussita era uma heresia porque exigia ao clero a estrita observância das virtudes cristãs proclamadas pela Igreja. “Os hierarcas eclesiásticos dizem que são herdeiros dos apóstolos do Cristo? — perguntava o pensador checo. E respondia: — Se se portam como ensinou o Cristo, assim são, com efeito; do contrário, são mentirosos e embusteiros. Neste caso o poder secular está facultado para privá-los de títulos e benefícios eclesiásticos”.
Um cardeal veneziano assinalou então, a propósito das manifestações de Huss no Concílio, que os hereges agregavam uma porção de verdade a suas doutrinas falsas, para enganar à gente simples. n Mas não se podia enganar com arquesabidas citas do Evangelho e dos trabalhos de todos os teólogos de fama, aos padres conciliares, que odiavam a Dolcino e a seus partidários e haviam condenado já a Wyclif, pregador de ideias análogas. Se davam perfeita conta de que na pessoa de Huss não se lhes apresentava um inimigo imaginário, senão verdadeiro, um adversário tremendo e intransigente.
E não lhes custou muito trabalho prová-lo. Porque Huss, além de mestre em Teologia, foi autor formidável de tratados teológicos. Ainda quando estava recluso em Constança seguiu escrevendo, com a aquiescência dos carcereiros, sobre diversos aspectos da doutrina eclesiástica. E cada página nova de seus trabalhos provia a seus inimigos de novos argumentos para acusá-lo de heresia. “Deem-me duas linhas de um autor e lhe farei condenar”, disse jactanciosamente, não sem razão, um inquisidor medieval. n Com efeito, o caráter contraditório da Bíblia e das numerosas disposições dos concílios, encíclicas e bulas dos papas, fazia possível interpretar qualquer texto em prejuízo de seu autor. Pelo que respeita aos que intentaram verdadeiramente criticar ou por em tela de juízo textos canônicos ou manifestações e declarações oficiais do sumo pontífice, sua ousadia equivalia ao suicídio: os inquisidores lançavam ao audaz à fogueira, ou o encarceravam até o fim de seus dias, salvo se a semelhante “herege” lhe falhassem os nervos e abjurasse no último momento, de seus “erros abomináveis”. Os inimigos de Huss não dispunham de “duas linhas”, senão de um montão de obras suas, das que se podia arrancar facilmente uma infinidade de citações demonstrativas da heresia de seu autor.
Assim pois, não tem nada de estranho que os padres conciliares amanharam sem dar-se grandes penas uma ata acusatória contra Huss, salpicada de citações de suas obras. Isso foi um jogo de criança para os adversários do rebelde checo, mas em vão se desvelaram por conseguir que reconhecesse seus “erros asquerosos”.
O caso é que este último objetivo constituía a meta principal do processo dirigido a Huss. A começos de junho de 1415, terminada a formação da causa, se lhe transladou encadeado ao monastério franciscano de Constança, onde deliberava o Concílio. Em 6 de junho, Huss compareceu ante os padres conciliares. O informe fiscal esteve ao cargo do bispo Lodi.
Todas as tentativas do processado de provar a inconsistência das acusações foram rechaçadas brutalmente pelos “juízes”. Simplesmente não lhe deixavam falar. Gritavam, cuspiam-no, cobriam-no de vilipêndios, injúrias e maldições. Os padres conciliares clamavam que era pior que um sodomita, tratavam-no de Caim, Judas, turco, tártaro e judeu. Comparavam-no com uma “serpente rasteira” e “víbora lúbrica”. Interrompiam seus discursos com silvos, pateadas e gritos: “À fogueira!”
Assim continuou dia a dia durante um mês, sem que lograra intimidar e dobrar ao acusado. Huss exigiu valente e desassombradamente que o Concílio examinasse o assunto em essência. “Provem — disse a seus juízes — que minhas concepções são heréticas, e as abdicarei”.
O imperador Segismundo e os padres conciliares não regatearam esforços para obrigar ao preso reconhecer-se culpado e abjurar dos supostos erros heréticos; de conseguir que sua vítima se arrependesse em público, haviam assestado um golpe aos hussitas na Boêmia. Mas Huss não se arredou. Como alternativa às exigências dos juízes acedeu a jurar que não havia compartilhado nem pregado nunca os erros incriminados, nem os compartilharia ou pregaria jamais. Mas o Concílio rechaçou essa fórmula.
Propôs outra: o acusado declara não ter nunca compartilhado os erros em questão, mas apesar disso se desdiz, retrata e abjura deles, assim como aceita qualquer censura eclesiástica que o Concílio, “por sua bondade” e em aras da salvação do acusado mesmo, estime necessário impor-lhe. Huss replicou que não era possível fazê-lo sem pecar contra a verdade e incorrer em perjúrio. Disseram-lhe que se acedera a abjurar na forma prescrita pelo Concílio, o responsável dessa abjuração seria o Concílio mesmo; enquanto ao perjúrio carregariam com a responsabilidade os autores da fórmula de abjuração. Huss se negou redondamente. Como na maioria dos casos desse gênero, não faltou um judas. Os inimigos de Huss lograram atrair um correligionário seu, Stephan Palec, que aceitou ser testemunho de cargo. Foram aproveitados também alguns amigos de Huss, para incitá-lo a cumprir a vontade do Concílio. O imperador Segismundo exigiu-lhe o mesmo. O teólogo checo rechaçou todo acordo de transação com seus inimigos. Preferia suportar o suplício da queimação, antes que renegar covardemente suas convicções. Havendo-se convencido de que não podia obter de Huss a autoacusação nem a abjuração, o Concilio declarou-o herege impenitente; foi destituído de sua dignidade sacerdotal, excomungado e condenado à fogueira.
Fixou-se a data da execução: 6 de julho de 1415. Naquele dia teve lugar o auto-de-fé mais solene de quantos registra a história da Inquisição.
Estiveram presentes na cerimônia todos os padres conciliares, o imperador Segismundo, acompanhado de um séquito esplêndido, os príncipes, cavalheiros e outros convidados de honra do Concílio. Durante o serviço divino, Huss esteve junto à porta da catedral, vigiado por guardas. Depois conduziram-no ao altar e se leu a sentença do Concílio. Huss negou em voz alta sua culpabilidade.
Logo entregaram-lhe o chamado cálice de redenção e um dos bispos pronunciou a maldição seguinte: “Oh, Judas maldito! Posto que hás abandonado este concílio de paz e te hás conciliado com os judeus, te tiramos esse cálice de redenção”. Ao que Huss replicou soberbamente: “Creio em Deus Todo-Poderoso, em cujo nome suporto com paciência este vilipêndio, creio que não me tirará o cálice de sua redenção e espero firmemente beber dele hoje em seu reino”. n
Disseram-lhe que se calasse, e como se negou, os guardas lhe taparam a boca com as mãos. Sete bispos lhe tiraram o traje sacerdotal e lhe exortaram de novo a abjurar. Huss declarou, voltando-se aos presentes, que não podia confessar os erros que não havia compartilhado nunca. Então lhe impuseram silêncio a gritos.
Antes de entregar um condenado às chamas havia que prepará-lo pertinentemente para esse “auto-de-fé”. A Huss cortaram-lhe as unhas e o cabelo da cabeça. Logo coroaram-lhe com uma tiara de palhaço feita de papel e coberta de demônios desenhados, na qual estava escrito: “És herético”.
O bispo que dirigia essas operações mágicas disse a Huss: “Encomendamos tua alma ao diabo”. Mas o mártir não deixou de aparar dignamente cada golpe, com uma firmeza e tenacidade que infundiam respeito incluso a seus inimigos. “E eu a encomendo — replicou — ao Senhor Jesus-Cristo que perdoa a todos”. n
Produziu-se um azáfama, e caiu da cabeça de Huss o gorro de palhaço. Então um dos guardas ordenou a um sacristão: “Põe-lhe de novo esse gorro, para que se possa queimá-lo com os demônios, seus donos, aos quais serviu aqui na Terra”. n
Nisto terminou a parte religiosa do auto-de-fé. Agora devia-se executar ao excomungado, entregar à fogueira seu corpo “pecaminoso” para “salvar” sua alma. Huss teve que apurar seu cálice de redenção…
O imperador Segismundo entregou Huss ao conde palatino Luís, e este mandou ao preboste de Constança: “Tome a esse homem, que nós dois temos condenado, e queime-o como herege”.
Pedro de Mladenovice (cerca de 1390-1451), testemunho ocular da execução, deixou como exemplo instrutivo para os descendentes uma descrição detalhada da mesma. “O lugar de seu suplício foi uma espécie de prado em meio dos hortos das cercanias de Constança. Assim pois, tiraram-lhe a roupa negra superior e ficou em camisa; logo ataram-lhe firmemente com cordas, em seis pontos, a um rolo grosso. Atando as mãos às costas. Depois de aguçar o rolo num extremo cravaram-no na terra, e como Huss estava voltado para Este, alguém dos que ali se encontravam disse: “Não deixem que esteja de cara para Este, porque é um herege, voltem-no até o Oeste”.
Assim se fez. Quando o ataram pelo pescoço com uma cadeia coberta de fuligem, fitou-a e disse, sorrindo, aos verdugos: “O Senhor Jesus-Cristo, meu Redentor e Salvador, estava atado com uma cadeia mais dura e pesada. E eu, miserável, não me envergonho de levar por seu santo nome esta”. Pôs-se debaixo de seus pés duas achas de lenha (ainda tinha os sapatos e um cepo em seus pés). Amontoou-se lenha misturada com palha ao redor de seu corpo, até a garganta. Antes que fosse acesa se aproximou o marechal imperial Hoppe von Poppenheim em companhia do filho do finado Clem [conde palatino Luís, filho do imperador Ruperto II Clem], e exortou ao magistral a que abjurasse de sua doutrina e suas prédicas para salvar sua vida. Mas o magistral Huss replicou, levantando os olhos ao céu: “Deus é testemunho que não tenho ensinado nem pregado nunca o que se me atribui e se me imputa pelo falso testemunho. A intenção principal de minha prédica e de todos os demais atos e escritos meus foi unicamente salvar homens do pecado. E por essa verdade do Evangelho, sobre a que escrevi e que preguei em consonância com as palavras e exposições dos santos doutores, quero gostosamente morrer hoje”. Depois de ouvir-lhe, o marechal e o filho de Clem deram umas palmadas e se retiraram. Os verdugos puseram fogo e o mestre começou a cantar em voz alta: “Cristo, filho de Deus vivo, perdoa-nos”. n
Levantou-se vento, o fogo e o fumo envolveram seu rosto e se calou. Os verdugos remexeram durante muito tempo a fogueira em vias de extinção. Segundo a narração do mesmo Pedro de Mladenovice, destroçaram com estacas a cabeça do mártir e cobriram de tições os pedaços. Encontraram o coração nas entranhas, atravessaram-no com um pau agudo e o queimaram com esmero. Desgarraram por meio de tenazes o corpo carbonizado, para facilitar o trabalho do fogo. Arrojaram à fogueira também os objetos pessoais do magistral de Praga. Quando as chamas se haviam apagado, os verdugos recolheram minuciosamente as cinzas e incluso a terra do lugar de execução e jogaram-nas ao Reno, para que nada ficasse do herege queimado.
No outro dia da execução os padres conciliares rezaram um tedeum, com a participação de Segismundo e a rainha, os príncipes e outros altos dignitários, 19 cardeais, 2 patriarcas, 70 bispos e todos os demais clérigos assistentes ao Concílio. — (Historia de la Inquisicion: I. Grigulevich. Traducción abreviada del ruso al español, 1980, por M. Kuznetsov. Editorial Progreso. Impreso en la URSS) K. J.
Os perseguidores podem destruir os corpos dos homens, mas não podem destruir ideias, e as de Huss foram disseminadas por seus seguidores. Seus discípulos mais radicais, conhecidos como Taboritas, rejeitaram tudo na fé e na prática da Igreja Romana que não se encontrasse na Bíblia. Os Utraquistas achavam que apenas aquilo que a Bíblia proibia devia ser erradicado. Alguns do grupo taborita formaram aquilo que ficou conhecido como Unitas Fratrum (Irmãos Unidos) ou Irmãos Boêmios em meados do século XV. Foi deste grupo que saiu a Igreja Morávia, que até hoje existe.
Embora a Igreja Romana tirasse a sua vida, ela não pôde destruir a influência
de João Huss. A Igreja Morávia tornou-se mais tarde numa das igrejas
de mais visão missionária da história da Igreja Cristã. Jan Amos Comenius
(1592-1670), o grande educador evangélico, foi um dos Irmãos, ele escreveu
o Grande Didático. Pode-se dizer que Huss influenciou indiretamente
a Wesley, porque foram os Morávios que ajudaram a Wesley encontrar a
luz, em Londres. Os ensinos e o exemplo de Huss foram uma inspiração
para Lutero que enfrentou problemas semelhantes na Alemanha de seus
dias. [Jan Hus deixou escrito um livro intitulado
De Ecclesia - Google Books.] (O Cristianismo através dos
séculos: Uma história da Igreja Cristã, págs. 206 e 207. Earle E. Cairns.
Trad. de Israel Belo de Azevedo. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova.
Caixa Postal 21486. S. Paulo-SP.)
[1] Arquivo de Marx e Engels, t. VI, p. 215.
[2] Na lista oficial da Igreja, Baltasar Cossa/João XXIII figura como antipapa. Isso permitiu ao cardeal Roncalli, eleito papa em 1959, tomar o nome de João XXIII.
[3] John Wyclif (1320-1384), teólogo inglês, impugnou o princípio da infalibilidade dos papas, rechaçou o culto dos santos e o comércio de indulgências e exigiu que a Igreja renunciasse à propriedade territorial. A Igreja Católica condenou a doutrina de Wyclif como herética. Mas seu autor, protegido pelo rei inglês, evitou a sorte de outros heresiarcas e faleceu de morte natural.
[4] J. Gill. Constance et Bale-Florence. Paris, 1965, pp. 41-42.
[5] Veja-se John Hus at the Coucil of Constance. Translated from the Latin and the Czech with notes and introduction by Matthew Spinka. New York and London, 1965, p. 180.
[6] The Coucil of Constance. The Unification of the Church. Translated by Louise Ropes Loomis. New York — London, 1961, p. 284.
[7] Paul de Vooght. L’Hérésie de Jean Huss. Louvain, 1960, p. VII
[8] John Hus at the Council of Constance, p. 230.
[9] Ibid., p. 231.
[10] Ibid., p. 232.
[11] Ibid., pp. 232-233.