1 Um dia, o Senhor, reunindo seus Apóstolos ao pé das águas claras e alegres do Jordão, † descortinou-lhes o panorama imenso do mundo.
Lá estavam as grandes metrópoles, cheias de faustos e de grandezas.
Alexandria † e Babilônia, † junto da Roma dos Césares, acendiam na terra o fogo da luxúria e dos pecados.
2 E Jesus, adivinhando a miséria e o infortúnio do Espírito mergulhado nos humanos tormentos, alçou a mão compassiva em direção à paisagem triste do planeta, declarando aos seus discípulos:
“Ide e pregai! ( † ) Eu vos envio ao mundo como ovelhas ao meio de lobos, mas não vim senão para curar os doentes e proteger os desgraçados.” ( † )
E os Apóstolos partiram, no afã de repartir as dádivas do seu Mestre.
3 Ainda hoje, afigura-se-nos que a voz consoladora do Cristo mobiliza as almas abnegadas, articulando-as no caminho escabroso da moderna civilização. Os filhos do sacrifício e da renúncia abrem clareiras divinas no cipoal escuro das descrenças humanas, constituindo exércitos de salvação e de socorro aos homens, que se debatem no naufrágio triste das esperanças; e, se a vida pôde cerrar os nossos olhos e restringir a acuidade das nossas percepções, a morte vem descerrar-nos um mundo novo, a fim de que possamos entrever as verdades mais profundas do Plano espiritual.
4 Foi Miguel Couto † que exclamou, em um dos seus momentos de amargura, diante da miséria exibida em nossas praças públicas:
“Ai dos pobres do Rio de Janeiro, se não fossem os Espíritas.”
5 E hoje que a morte reacendeu o lume dos meus olhos, que aí se apagava, nos derradeiros tempos de minha vida, como luzes bruxuleantes dentro da noite, posso ver a obra maravilhosa dos espíritas, edificada no silêncio da caridade evangélica.
6 Eu não conhecia somente o Asilo São Luiz, que se derrama pela enseada do Caju como uma esteira de pombais claros e tranquilos, onde a velhice desamparada encontra remanso de paz, no seio das tempestades e das dolorosas experiências do mundo, como realização da piedade pública, aliada à propaganda das ideias católicas. Conhecia igualmente o Abrigo Tereza de Jesus e o Amparo Tereza Cristina e outras casas de proteção aos pobres e aos desafortunados do Rio de Janeiro, que um grupo de criaturas abnegadas do proselitismo espírita havia edificado. 7 Mas, o meu coração, que as dores haviam esmagado, trucidando todas as suas aspirações e todas as suas esperanças, não podia entender a vibração construtora da fé dos meus patrícios, que Xavier de Oliveira † taxara de loucos no seu estudo mal avisado do Espiritismo no Brasil.
8 A verdade hoje é para mim mais profunda e mais clara. Meu olhar percuciente de desencarnado pôde alcançar o fundo das coisas e a realidade é que a organização das consoladoras doutrinas dos Espíritos no Brasil não está formada à revelia da vontade soberana, do amor e da justiça que nos presidem aos destinos. Obra extreme da direção especializada dos homens, é no Alto que se processam as suas bases e as suas diretrizes.
9 Por uma estranha coincidência, defrontam-se na Avenida Passos, quase frente a frente, o Tesouro Nacional e a Casa de Ismael. n
Tesouros da Terra e do Céu, guardam-se no primeiro as caixas fortes do ouro tangível, ou das suas expressões fiduciárias, e, no segundo, reúnem-se os cofres imortalizados das moedas do Espírito.
De um, parte a corrente fertilizante das economias do povo, objetivando a vitalidade física do país, e, do outro, parte o manancial da água celeste que sacia toda sede, derramando, energias espirituais e intensificando o bendito labor da salvação de todas as almas.
10 A obra da Federação Espírita Brasileira é a expressão do pensamento imaterial dos seus diretores do Plano invisível, indene de qualquer influenciação da personalidade dos homens. Semelhantes àqueles discípulos que partiram para o mundo como o “Sal da Terra”, ( † ) na feliz expressão do Divino Mestre, os seus administradores são intérpretes de um ditame superior, quando alheados de sua vontade individual para servir ao programa de amor e de fé a que se propuseram. O roteiro de sua marcha é conhecido e analisado no mundo das verdades do Espírito e a sua orientação nasce da fonte das realidades superiores e eternas, não obstante todas as incompreensões e todos os combates. A história da Casa de Ismael nos Espaços está cheia de exemplos edificantes, de sacrifícios e dedicações.
11 Se Augusto Comte † afirmou que os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos, nas intuições do seu positivismo, nada mais fez que refletir a mais sadia de todas as verdades. A Federação, que guarda consigo as primícias da sede do Tesouro espiritual da Terra de Santa Cruz, não está de pé somente à custa do esforço dos homens, que, por maior que ele seja, será sempre caracterizado pelas fragilidades e pelas fraquezas. Muitos dos seus diretores desencarnados aí se conservam, como aliados do exército de salvação que ali se reúne.
12 Ainda há poucos dias, enquanto a Avenida fervilhava de movimento, vi às suas portas uma figura singela e simpática de velhinho, pronto para esclarecer e abençoar com as suas experiências.
— Conhece-o? — disse-me alguém, rente aos ouvidos.
— ?…
— Pedro Richard…
13 Nesse Ínterim, passa um companheiro da humanidade, cheio de instintos perversos, que a morte não conseguiu converter à piedade e ao amor fraterno.
E Pedro Richard abre os seus braços paternais para a entidade cruel.
— Irmão, não queres a benção de Jesus?
Entra comigo ao seu banquete!…
— Porque? — replica-lhe o infeliz transbordando perversidade e zombaria — Eu sou ladrão e bandido, não pertenço à sociedade do teu Mestre.
14 — Mas, não sabes que Jesus salvou Dimas, † apesar das suas atrocidades, levando em consideração o arrependimento de suas culpas? — diz-lhe o velhinho com um sorriso fraterno.
— Eu sou o mau ladrão, Pedro Richard. Para mim não há perdão, nem paraíso.
Mas, o irmão dos infelizes abraça em plena rua movimentada o leproso moral e lhe diz suavemente aos ouvidos:
— Jesus salvou o bom ladrão e Maria salvou o outro…
E o que eu vi foi uma lágrima suave e clara rolando na face do pecador arrependido.
15 Senhor, eu não estive aí no mundo na companhia dos teus servos abnegados e nem comunguei à mesa de Ismael, † onde se guarda o sangue do teu sangue e a carne da tua carne, que constituem a essência de luz da tua doutrina.
16 Eu não te vi senão como Tomé, † na sua indiferença e na sua amargura, e como os teus discípulos no caminho de Emaús, † com os olhos enevoados pelas neblinas da noite. Todavia, podia ver-te na tua casa, onde se recebe a água divina da fé, portadora de todo o amor, de toda a crença e de toda a esperança.
Mas, não é tarde, Senhor!… Desdobra sobre o meu Espírito a luz da tua misericórdia e deixa que desabroche, ainda agora, no meu coração de pecador, as açucenas perfumadas do teu perdão e da tua piedade, para que eu seja incorporado às falanges radiosas que operam na tua casa, exibindo com o meu esforço de Espírito a mais clara e a mais sublime de todas as profissões de fé.
Humberto de Campos
(Irmão X)
12 de junho de 1936.
[1] Nessa época, em 1936, o Tesouro Nacional estava situado na Avenida Passos — (Nota da Editora em edições posteriores à 1ª edição.)
Crônica de Humberto de Campos sobre a Casa Máter do Espiritismo no Brasil, recebida na residência do Sr. Manuel Quintão no Rio de Janeiro por ocasião da primeira visita do médium Francisco Cândido Xavier à Federação Espírita Brasileira. Mensagem publicada pelo “Diário da Noite” do Rio de Janeiro, de 13 de junho de 1936. Essa mensagem foi publicada primeiramente em 1935 pela LAKE e é a 14ª da 1ª Parte do
livro “Palavras do Infinito.”