1 Jovelino Soares, na sua vida calma de interior, desde algum tempo andava todo entregue às primeiras experiências mediúnicas. Não desprezava a pequena oficina de mecânica, onde, com a colaboração de alguns auxiliares, era, mais ou menos, o patrão de si mesmo. Entretanto, não se furtava às prosas longas com os amigos. Raro o cliente que, em trazendo máquinas a conserto, não lhe ouvisse extensas narrativas de casos pessoais. 2 Andava impressionado, sobretudo, com os fenômenos de desdobramento. Colecionava apreciável bagagem literária, nesse ramo dos conhecimentos espiritualistas, e lamentava que as suas faculdades incipientes lhe não proporcionassem os grandes voos. No entanto, dia e noite, procurava efetuar o tentâmen. Às vezes, enquanto os empregados iam e vinham, à cata de chaves ou parafusos, lá estava o Jovelino em concentrações reiteradas, no aposento íntimo. Queria, a qualquer preço, realizar os transportes de grande envergadura. 3 À noite, esquivava-se ao serviço humilde do bem, porque não se contentava em confortar um doente, aplicando-lhe fluidos curadores ou reconfortantes, nem se conformava com o exame dos ensinamentos morais que as reuniões evangélicas ofereciam. Dava preferência a tentativas mais vastas. Não se haviam verificado importantes desdobramentos com sensitivos diversos? Os livros científicos estavam repletos de relatórios, nesse particular. Seus estudos e investigações prolongavam-se noite a dentro.
4 Por vezes, a esposa dedicada chamava-o a melhores raciocínios.
— Jovelino, não será mais razoável que te consagres ao trabalho profissional com assiduidade e devotamento?! Chego a afligir-me por tua saúde. Creio que é muito justa a tua aspiração de maiores edificações espirituais; contudo, suponho que deves metodizar os teus esforços nesse plano, sem descurar os deveres que condizem com a paz de nosso lar.
5 O marido, com expressão quase rude nos olhos frios, murmurava com tédio:
— Ora essa! Que falta à nossa casa?
E concluía, resmungando:
— Como sempre acontece, não me podes compreender.
6 A companheira voltava, humilde, a novos argumentos, evidenciando enorme ternura:
— Não me refiro às tuas experiências, no sentido de condená-las. Conheço o valor da Espiritualidade e não me internaria em considerações descabidas. Não posso, porém, aprovar os excessos a que te vens entregando, desde algum tempo. Não nos falta pão à mesa; todavia, escasseia a nossa tranquilidade doméstica. Teus hábitos estão fundamente alterados pelas demasiadas concentrações, sem qualquer observação de tempo ou conveniência…
7 Jovelino, todavia, não a deixara terminar:
— Ignoras, acaso, meus propósitos? — Perguntou irritado. — Desconheces os poderes do homem que se torna senhor dos dons superiores da Natureza psíquica? Espero obter os grandes transportes, em breves dias.
8 E, numa antevisão das experiências gloriosas, exclamava de olhos parados, fixos na imensidade azul que se podia divisar além da janela aberta:
— Desdobrar-me! Ver os céus ilimitados… conhecer a intimidade dos outros seres!… Oh! Que ventura poderá ser igualada a essa?! Como tudo será então mesquinho, neste mundo, aos meus olhos!.
9 A esposa afastava-se do visionário,
procurando disfarçar as torturantes preocupações que lhe ralavam a alma
sensível. E, por muito tempo, Jovelino Soares prosseguiu em suas práticas
exaustivas, indiferente aos prejuízos domésticos. Mantinha-se nas atitudes
de recolhimento, num esforço incessante. Entregava-se às fórmulas verbais,
multiplicava os jejuns, onde havia muitos compromissos palavrosos, mas
nenhuma espontaneidade.
10 A situação permanecia nessa altura, quando, em noite de enorme esgotamento das energias físicas, o nosso amigo foi arrebatado a um sonho deslumbrante. Sentia-se afinal em prodigioso desdobramento. A região a que aportara, em voo célere, coroava-se de infinita beleza. Palácios de neblina dourada fulgiam a seus olhos; extasiado, no cume de um monte adornado de luz, contemplava a cena, admirando a maravilha, em humilde genuflexão.
11 Leve ruído denunciou a presença de alguém que parecia procurá-lo com interesse. O generoso benfeitor espiritual, que se adiantava, mostrou-lhe um sorriso bondoso e interrogou com doçura fraternal:
— Jovelino, a caridade augusta do Cristo n permitiu que viesses até aqui e estou pronto a atender-te. Que desejas do Senhor, com impulso tão forte?
12 Sentindo-se vitorioso, o interpelado redarguiu:
— Valoroso emissário, desejo receber os dons do desdobramento espiritual lá no mundo.
13 O mensageiro tomou uma atitude benevolente e esclareceu:
— Mas já fizeste as experiências que a Terra te oferece nesse sentido? És um Espírito desdobrado nas obrigações diversas? Podes ser pai, filho, irmão, amigo, servo ou mordomo ao mesmo tempo, sem inclinações prejudiciais, sabendo amar, corrigir, orientar, administrar, obedecer ou servir, simultaneamente?
14 Jovelino experimentou um choque intraduzível. Entendeu, de relance, a complexidade dos deveres que lhe eram exigidos e obtemperou:
— Conheço, porém, pessoas que se desdobram sem tão grandes preocupações.
— Em geral, — respondeu-lhe o emissário, com solicitude, — nem todos os frutos são colhidos na época adequada e, quase sempre, os frutos verdes são presa de crianças que os inutilizam desastradamente.
15 Ante a observação justa, que consubstanciava um feixe de ensinamentos felizes, o visitante da Esfera espiritual voltou a dizer, tentando explicar-se:
— Talvez não tenha sido bastante claro. O que desejo é a permissão para os transportes sublimes da alma!…
— Já efetuaste, porém, o aprendizado dessa natureza que o mundo te proporciona? Encontras-te senhor de semelhante aquisição? Como te transportas da alegria para a dor, da saúde para a enfermidade, da união para a separação, do conforto para as dificuldades? Guardas, em tudo, o mesmo padrão de confiança em Deus, portando-te, em todas as circunstâncias, como em serviço de sua vontade e de seu amor? O Espírito terrestre não conhecerá os transportes sublimes, sem essa preparação justa.
16 Jovelino Soares ficou atônito. Francamente, não havia pensado nisso. Embora se esforçasse, não encontrava recursos, a fim de responder. O generoso mensageiro, percebendo-lhe a confusão natural, acariciou-lhe a fronte com inexcedível carinho e falou brandamente:
— Teus serviços, entretanto, não estão perdidos. Fixa a atenção, porque te conduzirei, neste momento, à melhor região em que te podes manter com benefícios. Mais tarde, poderás atravessar os vastos domínios de outros mundos, o sistema solar exporá aos teus olhos maravilhas indescritíveis; mas, a solução do problema é igual ao da escada ou da montanha — é preciso equilibrar-se ao subir. O lugar a que serás agora conduzido não é tão luminoso e todavia possui a sua beleza peculiar. É a zona compatível com a tua posição atual, mesmo porque, bem sabes que não se pode trair a classificação gradual da Natureza. No entanto, se conseguires ver, como se torna necessário, encontrarás aí numerosas maneiras de enriqueceres as tuas faculdades. Reconhecerás as diversas potências que permanecem a serviço de tua iluminação.
17 Jovelino exultava. A seu ver, ia, enfim, descortinar os segredos do céu. Não seria naturalmente arrebatado às constelações mais altas, contudo seria levado a regiões de sublime surpresa.
O bondoso mensageiro estendeu-lhe a mão e disse em voz firme:
— Vamos!
O mecânico experimentou indefinível sensação de deslocamento. Guardava a impressão de que tombava sobre um abismo de luz.
18 Daí a momentos acordou violentamente, no leito.
Como interpretar a visão inesquecível? Qual se fora auxiliado por benfeitores intangíveis, começou a fixar a atenção em si mesmo. Contemplou os pés e meditou nos benefícios que deles poderia auferir, caminhando exclusivamente para a bondade; deteve-se no exame das mãos e refletiu na imensidade de tarefas generosas que lhe era possível cumprir. E os olhos? Não conseguiria com eles realizar o trabalho de seleção perfeita da verdade e do bem, de modo a se afastar de todo o mal? E os ouvidos? Não seria justo convertê-los em arquivos de prudência e sabedoria? Jovelino passou revista às faculdades comuns, identificando-lhes o valor que, até então, desconhecera. Não seriam elas as potências preciosas concedidas por Deus para o bem de sua iluminação?
19 Extremamente reconhecido, parecia tocado de uma vibração nova. Não conseguiu permanecer no leito por mais tempo. Enquanto a esposa e os filhinhos repousavam, levantou-se e abriu uma janela. Os sopros da madrugada penetraram a habitação em baforadas frescas. As últimas estrelas tornavam-se mais pálidas. O cântico repetido dos galos chamava os seres à atividade cotidiana e toda a Natureza figurou-se-lhe em marcha jubilosa.
20 O nosso amigo, experimentando intraduzível emotividade, sentiu estranha atração para a vida e para o trabalho. Seu coração descobrira uma revelação poderosa. Compreendeu que a região divina, compatível com a sua posição espiritual, a que fora conduzido por um emissário do Cristo, era o seu próprio corpo terrestre. Era aí mesmo que poderia descortinar belezas sem conta e infinitas possibilidades de iluminação.
Humberto de Campos
(Irmão X)
[1] No original: “de Cristo.” — Vide porém a explicação de Allan Kardec sobre ser: “do Cristo” e não “de Cristo”.