O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Reportagens de Além-túmulo — Humberto de Campos


8

O livre-pensador

1 Raimundo da Anunciação viera do materialismo para o conhecimento da doutrina dos Espíritos; entretanto, por maiores que fossem as advertências dos amigos sinceros, não se furtava ao vício das discussões sem propósito definido. Desde cedo, transformara-se em polemista contumaz, rebelde a qualquer ideia de humildade, ou de compreensão das necessidades alheias. Havia um ponto obscuro em alguma questão intrincada da vida? Não encontrava dificuldade para completar os casos e esclarecer o assunto, a seu modo. Essa mania de julgar precipitadamente e de terçar armas pela imposição de suas ideias, fora transportada às suas atividades espiritistas, com enorme prejuízo para a sua edificação interior. Parecia uma pilha humana em permanente irritação contra as demais confissões religiosas.

2 Funcionário com responsabilidade definida, levava à repartição suas polêmicas intermináveis. Enquanto o diretor despachava processos no gabinete, ele permanecia em trabalho ativo, atendendo a papéis que lhe requisitavam esmerada atenção. Contudo, logo que se afastava o chefe imediato, acendia um charuto distinto e tocava a explanar a situação do próximo ou dos companheiros.

— E você, Renato, — dizia a um colega, em tom de zombaria, — ainda não se decidiu pelo Espiritismo?

3 Em virtude do rapaz revelar-se confuso, mastigando um monossílabo, à guisa de resposta, o valente polemista continuava:

— Ah! Esses padres! Você anda seduzido pelos latinórios, perdendo tempo. É um absurdo entregar-se uma inteligência como a sua à exploração clerical; mas espero que, mais cedo ou mais tarde, toda essa organização detestável venha abaixo.

4 Era o início de longa perlenga. O companheiro idoso, da frente, católico romano fervoroso, vinha em socorro do jovem tímido:

— Mas, Raimundo, que tem você com os padres? Creio que a nossa Igreja é tão respeitável quanto as outras. Além disso, não podemos ignorar que a maioria está conosco.

5 O interpelado enrubescia e, atalhando, de pronto, exclamava colérico:

— Alto lá! Deus nos livre da influência do clero! Declaremos guerra aos traficantes do altar. O progresso humano há de afugentá-los como a luz da manhã expulsa os morcegos sugadores! Nada de transigência com os falsos sacerdotes. Odeio essa gente de roupa negra, que anda em serviço do interesse mesquinho, abusando da ignorância popular. Esses biltres hão de ser derrubados mais cedo do que se julga!

E um rosário de injúrias era desfiado ali, ante os companheiros assombrados.

6 Quando se oferecia a pausa natural, o antagonista revidava:

— Desconheço com que autoridade pode você movimentar tamanhas acusações.

— Não sabe? — Dizia Raimundo, neurastênico.

E depois de mastigar a ponta do charuto:

— Eu sou livre-pensador!

7 A discussão prosseguia acesa, até que um colega vinha pedir calma aos contendores, a fim de que o trabalho não fosse excessivamente perturbado.

Semelhantes características seriam facilmente compreensíveis, como índice de fanatismo individual, se fossem limitadas à análise das outras escolas religiosas; mas a situação era mais grave.

8 Raimundo da Anunciação vivia em controvérsias constantes com os irmãos de ideal. Depois de algum tempo de frequência a esta ou àquela instituição espiritista, voltava-se contra os amigos da véspera, numa atoarda de alegações injustas. Aludindo aos diretores da casa, de cujas realizações havia participado, comentava, levianamente:

— São intolerantes e arbitrários, não lhes tolero o fingimento.

Referindo-se à assistência, rematava irônico:

— Jamais vi no mundo tamanha turma de ignorantes e basbaques.

9 Um companheiro mais sensato chamava-lhe a atenção, com carinho:

— Mas, Raimundo, afinal de contas, ainda somos criaturas em aprendizado num mundo imperfeito. Se tivéssemos as qualidades superiores, exigidas pela existência nas Esferas elevadas, por certo que não permaneceríamos na Terra. É razoável que os anjos não povoem os abismos da sombra. Então, por que olvidar o dever da tolerância recíproca? Nossos companheiros não são maus e sim Espíritos incompletos nas virtudes divinas, à maneira de nós outros. Não acredita você que estejamos num processo de aproximação afetiva, em que os defeitos de todos vão desaparecendo pelo concurso amoroso de cada um?

10 O interlocutor não se dava ao esforço de maior exame e retrucava, intempestivamente:

— Detesto a hipocrisia!…

— Não se trata, porém, de hipocrisia, — ponderava o irmão na fé, — mas de compreender uma situação generalizada, de que não poderemos fugir, sem o testemunho individual, construindo a nossa parte.

— Não tolero confusões, nem subterfúgios, — exclamava Raimundo, irado.

— Todavia, por que alimentar semelhante estado dalma?

— Sou livre-pensador! — Explicava, repetindo o velho estribilho.

11 Era assim que a rebeldia se lhe assenhoreava, integralmente, do espírito.

Antes de entregar à terra o corpo abatido, sua generosa progenitora chamou-o, um dia, preocupada:

— Raimundo, meu filho, sei que estou a me despedir do mundo; no entanto, desejaria que a morte me surpreendesse somente quando me fosse possível guardar a certeza de tua renovação.

12 E com um olhar amoroso e triste, continuava:

— Não discuta esterilmente. Aprenda a reconhecer nos outros necessidades diferentes das nossas. Nem todos os homens poderão partilhar de tuas crenças. Não vemos que a idade assinala as criaturas? Entre a meninice, a mocidade e a decrepitude, há numerosos graus de posição física. Não considera você que o mesmo ocorre quanto à situação espiritual das pessoas? Abstenha-se da imposição. A romagem terrestre é tão curta!… Por que lutar, improficuamente, quando se pode semear simpatias para a colheita do amor? Se Deus não tiraniza os seus filhos, que argumento justificaria nossa intransigência com os irmãos? Modifique o teu temperamento, meu filho! O tempo é um patrimônio sagrado que ninguém malbarata sem graves reparações…

13 O discutidor renitente estava comovido, mais pela humildade maternal, que pelas reflexões judiciosas.

— Agradeço-lhe, mamãe, — disse ele, depois de um ósculo na destra encarquilhada da anciã, — reconheço a delicadeza de suas preocupações; mas a senhora sabe que sou um homem sincero e que devo pensar livremente.

14 A velhinha enferma esboçou um olhar de desânimo e murmurou com ternura, desejosa de evitar as contendas habituais:

— Deus te abençoe sempre.

15 Foram inúteis todos os conselhos. Raimundo da Anunciação chegou ao fim da experiência terrestre, discutindo irremediavelmente. Cultivou antagonismos ferozes e procurou impor suas convicções pessoais, no próprio leito de morte, espantando os que o visitavam por mera cortesia.

Novamente na Esfera espiritual, o nosso amigo, após lutas enormes no círculo das surpresas que o esperavam, foi admitido ao local mais próximo, onde os recém-chegados do mundo recebiam solução de certos problemas de natureza imediata.

16 Conduzido à presença do iluminado diretor da instituição de esclarecimento aos desencarnados, Raimundo rogou, humilde, os informes necessários, com referência ao seu caso. Queixou-se em tom amargo. Sentia-se em abandono, sem ninguém.

— Em geral, — esclareceu o mentor com generosidade fraternal, — os que permanecem aqui, neste estado, são os homens que não cogitaram de um esforço sério.

— Como assim? — perguntou, contrafeito — fui na Terra um batalhador das ideias novas.

17 O instrutor encaminhou-se a um móvel de vastas proporções, de contornos indescritíveis pelo lápis humano e, retirando de seu interior uma folha luminosa, exclamou com bondade:

— Tenho a cópia de suas notas, vejamos.

— Quê? — Interrogou Raimundo, desapontado, — as fichas individuais existem aqui?

— Por que não? — Respondeu o interpelado serenamente. — Acaso terá esquecido que sua repartição fichava processos comuns, preservando-lhes a integridade? Supõe que os Espíritos imortais sejam inferiores aos papéis terrenos?

18 O recém-chegado, observando a mudança da situação, entrou em profundo silêncio.

— Leiamos os dados informativos de sua última experiência no planeta terrestre, — prosseguiu o diretor da casa espiritual, com generosidade; — você esteve cinquenta e três anos e cinco dias na Terra, excetuado o período da infância e da juventude, que constam de outras anotações, num total de quatrocentas e sessenta mil horas. Um terço você gastou em repouso, sono e distrações, nos quais fixaremos a atenção para exames mais complexos, em seguida à análise desta ficha de tempo. Restam trezentas e nove mil e seiscentas horas, das quais cinquenta e oito mil e cinquenta foram utilizadas em serviço mecânico de escritório, cinquenta e uma mil e quinhentas e cinquenta em atividades de alimentação do corpo, sobrando duzentas mil horas que você empregou em discussões improdutivas, mentais ou verbais, diretas e indiretas.

19 Raimundo estava quase sufocado na atitude de doloroso assombro.

— Não fui um preguiçoso, — protestou.

O mentor voltou a dizer, serenamente:

— Não se condena um homem que discute edificando. O esclarecimento justo, a seu tempo, constitui coluna poderosa no edifício do Reino de Deus. Entretanto, no seu caso, as circunstâncias são altamente desfavoráveis, porque o esmagador coeficiente de atritos apenas serviu para agravar as suas vaidades, sem nenhuma construção espiritual definitiva, em si mesmo, ou no Planeta, dignificando sua passagem.

20 O interlocutor hesitava, surpreendido. Desapontado, quase em pranto, tentava esclarecer:

— Mas eu… eu…

— Já sei, — murmurou o instrutor, — já sei que você vai referir-se à sua condição de livre-pensador.

21 Enquanto o recém-chegado se recolhia em penosa amargura, o benfeitor continuava:

— Quando se julgou livre no mundo, não passava você de servo das mesmas paixões que amesquinhavam os outros homens. Em geral, na Terra, os livres-pensadores são livres dominadores. Por que não se supôs, na experiência humana, um livre servidor do Cristo? n Com Jesus, toda independência é enriquecimento de responsabilidade salvadora. Por que não se sentiu liberto do egoísmo inferior para auxiliar, em vez de atacar acerbamente? 22 Só podemos analisar uma obra, Raimundo, depois de a conhecermos intimamente. Todos aqueles a quem você condenou em críticas gratuitas podem alegar que você não lhes conhecia o esforço individual. Não sabe que só aquele que trabalhou tem direito a comentar a tarefa? 23 Além disso, quando consultarmos as demais anotações, há de observar o número extenso de pessoas que se afastaram da verdade, adiando momentos de alegria divina, por influenciação de seus atritos inoportunos; conhecerá as faltas de omissão cometidas por seu Espírito, no desprezo aos patrimônios do tempo e das alheias realizações. Se você preferir, podemos examinar agora as demais fichas de sua passagem pela Terra.

— Se possível, desejaria esse conhecimento depois… — respondeu Raimundo, em lágrimas.

24 E o nosso amigo, por anos consecutivos, entrou em vastas meditações da verdade e da vida, auxiliado por generosos benfeitores espirituais.

Quando dois lustros haviam passado, voltou à presença do instrutor que o tomara à sua conta e suplicou uma nova experiência na Terra.

— Você já escolheu o gênero de trabalho? — Perguntou ele bondosamente.

— Sim, — explicou o antigo discutidor, hesitante, — desejo ser mudo entre os meus adversários de outros tempos.

25 — Muito bem, — exclamou o mentor, abraçando-o, — é a tarefa compatível com as suas necessidades atuais. Você renascerá mudo e com ótimos ouvidos, porque, segundo sua ficha de tempo, não lhe será possível entregar-se a qualquer realização mais elevada, enquanto não permanecer em silêncio por vinte e dois anos e alguns meses, escutando para aprender e impossibilitado de falar coisa alguma.


Humberto de Campos

(Irmão X)


[1] No original: “de Cristo.” — Vide porém a explicação de Allan Kardec sobre ser: “do Cristo” e não “de Cristo”.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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