1.
Depois de vários preparativos, principalmente ao lado de Cavalcante,
que piorara após a intervenção cirúrgica, Jerônimo articulou providências
referentes à desencarnação de Dimas, cuja posição era das mais precárias.
2 De manhãzinha, após entender-se
com a Irmã Zenóbia, quanto à localização do primeiro amigo a libertar-se
dos laços físicos, o Assistente convidou-nos ao trabalho.
3 Compreendia, mais
uma vez, que há tempo de morrer, como há tempo de nascer. Dimas alcançara
o período de renovação e, por isso, seria subtraído à forma grosseira,
de modo a transformar-se para o novo aprendizado. Não fora determinado
dia exato. Atingira-se o tempo próprio. Recordando, contudo, meu caso
particular e sequioso de elucidações construtivas, ousei interrogar
nosso orientador, enquanto regressávamos ao Círculo carnal, pela manhã.
4 — Prezado Assistente,
— indaguei, — releve-me o desejo de saber particularidades do serviço…
Poderá, todavia, informar-me se Dimas desencarnará em ocasião adequada?
Viveu ele toda a cota de tempo suscetível de ser aproveitada por seu
Espírito na Crosta da Terra? Completou a relação de serviços que o trouxera
ao renascimento?
5 — Não, — respondeu
o interpelado, com firmeza, — não chegou a aproveitar todo o tempo prefixado.
— Oh! — Considerei, levianamente, — terá sido, como fui, suicida inconsciente?
Penetrei nossa colônia nessa condição e, antes de obter a graça do refúgio
renovador, experimentei acerbos padecimentos.
6 Enunciando tal apreciação,
ponderava sobre a tarefa especial de socorrê-lo. Razões fortes, decerto,
motivariam o esforço que se levava a efeito, mas a informação do orientador
desconcertava-me. Se o irmão referido não completara o tempo previsto
ao roteiro de obrigações que lhe fora traçado, porque tamanha consideração?
Mereceria o movimento excepcional de assistência individualizada? Que
motivo impeliria a Esfera superior a prestar-lhe tanta atenção?
7 Jerônimo compreendeu, sem dúvida, a venenosa preocupação que me absorvia o pensamento,
mas absteve-se de longas explicações, confirmando,
simplesmente:
— Não, André, nosso amigo não é suicida.
8 Mais acertado seria silenciar
raciocínios suspeitos; entretanto, meu inveterado instinto de pesquisa intelectual era demasiado forte para dominar-me.
Fixando-o, algo confundido, tornei a perguntar:
— Mas se Dimas não aproveitou todo o tempo de que dispunha, não terá também desperdiçado a oportunidade, como aconteceu a mim mesmo?
9 Meu interlocutor estampou
no semblante leve sorriso e acentuou, compassivo:
— Não conheço seu passado, André, e acredito que as melhores intenções
terão movido suas atividades no pretérito. 10
A situação do amigo a que nos referimos, porém, é muito clara. Dimas
não conseguiu preencher toda a cota de tempo que lhe era lícito utilizar,
em virtude do ambiente de sacrifício que lhe dominou os dias, na existência
a termo. 11 Acostumado,
desde a infância, à luta sem mimos, desenvolveu o corpo, entre deveres
e abnegações incessantes. Desfavorecido de qualquer vantagem material
no princípio, conheceu ásperas obrigações para ganhar a intimidade com
as leituras mais simples. Entregue ao serviço rude, no verdor da mocidade,
constituiu a família, pingando suor no sacrifício diário. Passou a vida
em submissão a regulamentos, conquistando a subsistência com enorme
despesa de energia. 12
Mesmo assim, encontrou recursos para dedicar-se aos que gemem e sofrem
nos planos mais baixos que o dele. Recebendo a mediunidade, colocou-a
a serviço do bem coletivo. Conviveu com os desalentados e aflitos de
toda sorte. E porque seu Espírito sensível encontrava prazer em ser
útil e em razão dos necessitados guardarem raramente a noção do equilíbrio,
sua existência converteu-se em refúgio de enfermos do corpo e da alma.
13 Perdeu, quase
integralmente, o conforto da vida social, privou-se de estudos edificantes
que lhe poderiam prodigalizar mais amplas realizações ao idealismo de
homem de bem e prejudicou as células físicas, no acúmulo de serviço
obrigatório e acelerado na causa do sofrimento humano. 14
Pelas vigílias compulsórias, noite a dentro, atenuou-se-lhe a resistência
nervosa; pela inevitável irregularidade das refeições, distanciou-se
da saúde harmoniosa do estômago; pelas perseguições gratuitas de que
foi objeto, gastou fosfato excessivamente e, pelos choques reiterados
com a dor alheia, que sempre lhe repercutiu amargamente no coração,
alojou destruidoras vibrações no fígado, criando afecções morais que
o incapacitaram para as funções regeneradoras do sangue. 15
É verdade que não podemos louvar o trabalhador que perde qualquer órgão
fundamental da vida física em atrito com as perturbações que companheiros
encarnados criam e incentivam para si mesmos; no entanto, faz-se preciso
considerar as circunstâncias em jogo. 16
Dimas poderia receber, com naturalidade, semelhantes emissões destrutivas,
mantendo-se na serenidade intangível do legítimo apóstolo do Evangelho.
Todavia, não se organiza de um dia para outro o anteparo psíquico contra
o bombardeio dos raios perturbadores da mente alheia, como não é fácil
improvisar cais seguro ante o oceano em ressaca. Cercado de exigências
sentimentais, subalimentado, maldormido, teve as reiteradas congestões
hepáticas convertidas na cirrose hipertrófica, portadora da desintegração
do corpo.
17 Interrompeu-se o orientador,
e, como me sentisse fundamente envergonhado pelo paralelo que inadvertidamente
estabelecera, Jerônimo acentuou:
— Segundo observamos, há existências que perdem pela extensão, ganhando, porém, pela intensidade. A visão imperfeita dos homens encarnados reclama o exame acurado dos efeitos, mas a visão divina jamais despreza minuciosas investigações sobre as causas…
18 Calei-me, humilhado.
O hábito de analisar pessoas e ocorrências, unilateralmente, mais uma
vez me impunha proveitosa decepção. Naturalmente, o Assistente conhecia-me
a antiga posição, estaria informado de meus desvios anteriores, mas
dignava-se evitar-me desapontamento mais fundo com referências comparativas.
19 Assomaram-me recordações
do passado, mais nítidas e esclarecedoras. Inegavelmente, conduzira
minha última experiência como melhor me pareceu. Tomava refeições calmas
e substanciosas, a horas certas; dera-me a estudos prediletos; dispunha
de meu tempo com rigorosa independência nas decisões; cerrava a porta
aos clientes antipáticos, quando me faltava disposição para suportá-los;
nunca molestara o fígado por sofrimentos alheios, porque era ele pequeno
para conter as vibrações destruidoras de minhas próprias irritações,
ao sentir-me contrariado nos pontos de vista pessoais, e, sobretudo,
aniquilara o aparelho gastrintestinal pelo excesso de comestíveis e
bebedices aliados à sífilis a que eu mesmo dera guarida, levianamente.
20 Havia, portanto,
muita diversidade entre o caso Dimas e o meu. O dedicado servidor do
bem empregara as possibilidades que o Céu lhe confiara em benefício
de outrem. Quanto a mim, centralizado em mim mesmo, gozara essas possibilidades
até ao clímax, perdendo-me pela abusiva saciedade.
21 Jerônimo era, porém, suficientemente
bom para comentar realidades tão duras. Reafirmando a generosidade
espontânea que o caracterizava, desarticulou minhas impressões desagradáveis,
tangendo assuntos novos.
2.
Em breve, chegávamos à residência do enfermo, cujo estado era gravíssimo.
Alguns amigos desencarnados velavam, atentos.
2 Iluminada entidade que evidenciava
grande interesse pelo agonizante, acercou-se do Assistente, indagando
se o decesso fora marcado para aquele dia.
— Sim, — esclareceu o interpelado, — a resistência orgânica terminou. Estamos
autorizados a aliviá-lo, o que faremos hoje, alijando-lhe o fardo pesado
de matéria densa.
3 A interlocutora consultou-o,
ainda, sobre a oportunidade de reunir ali alguns beneficiários da missão
cumprida pelo moribundo, que lhe desejavam testemunhar carinhoso apreço,
no derradeiro dia carnal.
— Minha amiga compreende as dificuldades inerentes ao assunto, — respondeu
o nosso dirigente com gentileza. — 4
Se Dimas estivesse plenamente senhor das emoções, não surgiria
inconveniente algum. Entretanto, ele permanece agora sob agitações psíquicas
muito fortes. Conhece o fim próximo do aparelho carnal, mas não pode
esquivar-se, de súbito, às algemas domésticas. Teme o futuro dos seus,
conserva-se em total descontrole dos nervos e enlaça-se nas emissões
de inquietude da esposa e dos filhos. 5
Cremos ser inoportuna essa visita compacta, no decorrer das atividades
da desencarnação, mesmo em se tratando dos melhores amigos do doente,
para que se lhe não agrave o descontrole mental. Dimas poderá, não obstante,
ser amparado pelo afeto dos que por ele têm afeição, logo se desfaça
do corpo grosseiro. 6
Além disso, sugiro que a manifestação de carinho, merecida e justa,
lhe seja prestada por quantos o estimam, no dia em que nos deslocarmos
da Casa Transitória de Fabiano para as regiões mais altas. Nosso irmão
e cooperador descansará, ali, sob atencioso cuidado, junto de outros
amigos em condições análogas. Não faltaremos com o aviso prévio sobre
sua partida, para que se congreguem conosco os seus afeiçoados, na prece
de reconhecimento que elevaremos ao Todo-Poderoso.
7 A consulente manifestou
sincera satisfação e acentuou:
— Bem lembrado! Esperaremos a comunicação no instante oportuno.
Logo após, despediu-se, afastando-se ao lado de outros visitantes de nossa
Esfera, que nos deixavam, agora, campo livre para a nossa necessária
atuação.
3.
O transe era, sem dúvida, melindroso.
2 A esposa do médium, ao pé
dele, não obstante prolongadas vigílias e sacrifícios estafantes, que
a expressão fisionômica denunciava, mantinha-se firme a seu lado, olhos
vermelhos de chorar, emitindo forças de retenção amorosa que prendiam
o moribundo em vasto emaranhado de fios cinzentos, dando-nos a impressão
de peixe encarcerado em rede caprichosa.
3 Jerônimo apontou-a, bondoso,
e explicou:
— Nossa pobre amiga é o primeiro empecilho a remover. Improvisemos temporária melhora para o agonizante, a fim de sossegar-lhe a mente aflita. Somente depois de semelhante medida conseguiremos retirá-lo, sem maior impedimento. As correntes de força, exteriorizadas por ela, infundem vida aparente aos centros de energia vital, já em adiantado processo de desintegração.
4 Recomendou o Assistente
que Luciana e Hipólito se mantivessem ao lado da senhora, modificando-lhe
as vibrações mentais, e instruindo-me para coadjuvar-lhe a influenciação,
como se fazia mister.
Enquanto mantinha as mãos coladas ao cérebro de Dimas, propiciando-lhe a renovação das forças gerais, Jerônimo aplicava-lhe passes longitudinais, desfazendo os fios magnéticos que se entrecruzavam sobre o corpo abatido.
5 Reparei que o moribundo
se encontrava já em dolorosas condições. Plenamente desorganizado, o
fígado começava definitivamente a paralisar suas funções. O estômago,
o pâncreas e o duodeno apresentavam anomalias estranhas. Os rins pareciam
praticamente mortos. Os glomérulos prendiam-se aos ramos arteriais como
pequeninos botões arroxeados; os tubos coletores, enrijecidos, prenunciavam
o fim do corpo. Sintomas de gangrena pesavam em toda a atmosfera orgânica.
6 O que mais impressionava,
porém, era a movimentação da fauna microscópica. Corpúsculos das mais
variadas espécies nadavam nos líquidos acumulados no ventre, concentrando-se
particularmente no ângulo hepático, como a buscarem alguma coisa, com
avidez, nas vizinhanças da vesícula.
7 O coração trabalhava com
dificuldade. Enfim, o enfraquecimento atingira o auge.
— Precisamos fornecer-lhe melhoras fictícias, — asseverou o dirigente de nossas
atividades, — tranquilizando-lhe os parentes aflitos. A câmara está
repleta de substâncias mentais torturantes.
8 O Assistente principiou,
então, a exercer intensivamente sua influência.
Dimas, de raciocínio obnubilado pela dor, não divisava a nossa presença. Os atritos celulares, pelo rápido desenvolvimento dos vírus portadores do coma, impediam-lhe percepções claras. As proveitosas faculdades mediúnicas que ele possuía haviam caído em temporário eclipse, ante os choques do sofrimento. Era, porém, extremamente sensível à atuação magnética.
9 Pouco a pouco, com a interferência
de Jerônimo, o amigo acalmou-se, respirou em ritmo quase normal, abriu
os olhos fundos e exclamou, reconfortado:
— Graças a Deus! Louvado seja Deus!
10 Um dos filhos, a contemplá-lo,
de olhos súplices, seguiu-lhe as palavras, ansioso, indagando num gesto
de alívio:
— Melhorou, papai?
— Oh! Sim, meu filho, agora respiro mais livremente…
11 — Sente os amigos
espirituais ao seu lado? — Tornou o rapaz, cheio de fé.
O enfermo sorriu, algo triste, e retrucou:
— Não. Quero crer que o sofrimento físico cerrou a porta que me comunicava com a Esfera invisível. Mesmo assim, estou muito confiante. Jesus não nos desampara.
12 Fixou a companheira
em lágrimas e aduziu:
— Todos nós experimentaremos a solidão nos grandes momentos de aferir valores espirituais. Estou convencido de que os nossos Guias do Plano Superior não me olvidarão as necessidades… entretanto… não devo esperar que tomem cuidado permanente comigo…
13 Falava em voz
quase imperceptível, em virtude do abatimento, entrecortando as palavras
na respiração opressa.
A senhora, vacilante, estava inteiramente amparada por Luciana, que
a abraçava, afetuosa. Viam-se-lhe os sinais de angustioso cansaço. Lágrimas
espessas corriam-lhe dos olhos congestionados.
14 Jerônimo, agora, pousava
a destra na fronte do moribundo, proporcionando-lhe força, inspiração
e ideias favoráveis ao desdobramento de nossos serviços. Dimas mostrou
novo brilho no olhar, encarou a companheira, esforçando-se por parecer
tranquilo, e rogou:
— Querida, vá descansar!… Peço-lhe… Tantas noites a fio, de sentinela, acabarão por aniquilá-la. Que será de mim, doente e exausto, se o desânimo surpreender-nos a todos?!
15 Fez mais longo intervalo
e prosseguiu:
— Repouse a meu pedido. Ficaria tão satisfeito se a visse mais forte… Não se retarde. Sinto-me muito melhor e sei que o dia será de calma e reconforto.
Cedendo às instâncias do esposo e docemente constrangida pela influência de Luciana e Hipólito, a matrona recolheu-se ao quarto.
16 Em vista das melhoras obtidas,
houve expansão de júbilo familiar. O médico foi chamado. Radiante, o
clínico asseverou que os prognósticos contrariavam suposições anteriores.
Renovou as indicações, dispensou os anestésicos e recomendou ao pessoal
doméstico que entregasse o doente ao repouso absoluto. Dimas acusava
melhoras surpreendentes. Era razoável, portanto, que a câmara fosse
deixada em silêncio para que ele tivesse um sono reparador.
O esculápio atendia-nos ao desejo.
4.
Em breves minutos, o compartimento ficou solitário, facilitando-nos
o serviço.
2 O Assistente distribuiu
trabalho a todos nós. Hipólito e Luciana, depois de tecerem uma rede
fluídica de defesa, em torno do leito, para que as vibrações mentais
inferiores fossem absorvidas, permaneceram em prece ao lado, enquanto
eu mantinha a destra sobre o plexo solar do agonizante.
3 — Iniciaremos, agora, as
operações decisivas, — declarou-nos Jerônimo, resoluto, — antes, porém,
forneçamos ao nosso amigo a oportunidade da oração final.
4 O Assistente tocou-o, demoradamente,
na parte posterior do cérebro. Vimos que o agonizante passou a emitir
pensamentos luminosos e belos. Não nos via, nem nos ouvia, de maneira
direta, mas conservava a intuição clara e ativa. Sob o controle de Jerônimo,
experimentou imperiosa necessidade de orar e, embora os lábios cansados
prosseguissem imóveis, assinalamos a rogativa mental que endereçava
ao Divino Mestre:
5 — Meu Senhor Jesus Cristo,
creio que atingi o fim de meu corpo, do corpo que me deste, por algum
tempo, como dádiva preciosa e bendita. Eu não sei, Senhor, quantas vezes
feri a máquina fisiológica que me confiaste. Inconscientemente, quebrei-lhe
as peças com o meu descaso, menosprezando patrimônios sagrados, cujo
valor estou reconhecendo em mais de doze meses de sofrimento carnal
incessante. Não te posso implorar a bênção da morte pacífica, porque
nada fiz de bom ou de útil por merecê-la. Mas se é possível, Amado Médico,
socorre-me com o teu compassivo e desvelado amor! Curaste paralíticos,
cegos e leprosos… Porque te não compadecerás de mim, miserável peregrino
da Terra?…
6 Seus olhos deixaram escapar
lágrimas abundantes.
Após breves minutos, observamos que o agonizante recordava a meninice distante.
Na tela miraculosa da memória, revia o colo materno e sentia sede do
carinho de mãe. Oh! Se pudesse contar com o socorro da abençoada velhinha
que a morte arrebatara há tantos anos! — Refletia. 7
Premido pelas doces reminiscências, modificou o quadro da súplica, lembrou
a cena da crucificação de Jesus, insistiu mentalmente por vislumbrar
o vulto sublime de Maria e, sentindo-se de joelhos, diante dela, implorou:
— Mãe dos Céus, mãe das mães humanas, refúgio dos órfãos da Terra, sou agora, também, o menino frágil com fome do afeto maternal nesta hora suprema! Oh! Senhora Divina, mãe de meu Mestre e de meu Senhor, digna-te abençoar-me! Lembra que teu filho divino pôde ver-te no derradeiro instante e intercede por mim, mísero servo, para que eu tenha minha santa mãe ao meu lado no minuto de partir!… Socorre-me! Não me abandones, anjo tutelar da Humanidade, bendita entre as mulheres!
8 Ó providência maravilhosa
do Céu! Convertera-se o coração do moribundo em foco radioso e a porta
de acesso deu entrada a venerável anciã, coroada de luz semelhando neve
luminosa. Ela se aproximou de Jerônimo e informou, após desejar-nos
a paz divina:
— Sou a mãe dele…
9 O Assistente comentou a
urgência da tarefa que nos aguardava e confiou-lhe o depósito querido.
Em breves instantes, tínhamos perante os olhos inolvidável quadro afetivo.
Sentara-se a velhinha no leito, depondo a cabeça do moribundo no regaço
acolhedor, afagando-a com as mãos cariciosas.
10 Em virtude do reforço valioso
no setor da colaboração, Hipólito e Luciana, atendendo ao nosso dirigente,
foram velar pelo sono da esposa, para que as suas emissões mentais não
nos alterassem o esforço.
No recinto, permanecemos os três apenas.
11 Dimas, experimentando
indefinível bem-estar no regaço materno, parecia esquecer, agora, todas
as mágoas, sentindo-se amparado como criança semi-inconsciente, quase
feliz. Ordenou Jerônimo que me conservasse vigilante, de mãos coladas
à fronte do enfermo, passando, logo após, ao serviço complexo e silencioso
de magnetização. 12
Em primeiro lugar, insensibilizou inteiramente o vago, para facilitar
o desligamento nas vísceras. A seguir, utilizando passes longitudinais,
isolou todo o sistema nervoso simpático, neutralizando, mais tarde,
as fibras inibidoras no cérebro. Descansando alguns segundos, asseverou:
— Não convém que Dimas fale, agora, aos parentes. Formularia, talvez, solicitações descabidas.
13 Indicou o desencarnante
e comentou, sorrindo:
— Noutro tempo, André, os antigos acreditavam que entidades mitológicas cortavam
os fios da vida humana. Nós somos Parcas autênticas, ( † )
efetuando semelhante operação…
14 E porque eu indagasse, tímido,
por onde iríamos começar, explicou-me o orientador:
— Segundo você sabe, há três regiões orgânicas fundamentais que demandam extremo cuidado nos serviços de liberação da alma: o centro vegetativo, ligado ao ventre, como sede das manifestações fisiológicas; o centro emocional, zona dos sentimentos e desejos, sediado no tórax, e o centro mental, mais importante por excelência, situado no cérebro.
15 Minha curiosidade intelectual
era enorme. Entendendo, porém, que a hora não comportava longos esclarecimentos,
abstive-me de indagações.
Jerônimo, todavia, gentil como sempre, percebeu-me o propósito de pesquisa e acrescentou:
— Noutro ensejo, André, você estudará o problema transcendente das várias zonas vitais da individualidade.
16 Aconselhando-me cautela
na ministração de energias magnéticas à mente do moribundo, começou
a operar sobre o plexo solar, desatando laços que localizavam forças
físicas. Com espanto, notei
que substância leitosa, em regular quantidade, extravasava do umbigo, pairando em torno. Esticaram-se os membros inferiores, com sintomas de esfriamento.
17 Dimas gemeu, em voz alta,
semi-inconsciente.
Acorreram amigos, assustados. Sacos de água quente foram-lhe apostos nos pés.
Mas, antes que os familiares entrassem em cena, Jerônimo, com passes
concentrados sobre o tórax, relaxou os elos que mantinham a coesão celular
no centro emotivo, operando sobre determinado ponto do coração, que
passou a funcionar como bomba mecânica, desreguladamente. 18
Nova cota de substância desprendia-se do corpo, do epigastro à garganta,
mas reparei que todos os músculos trabalhavam fortemente contra a partida
da alma, opondo-se à libertação das forças motrizes, em esforço desesperado,
ocasionando angustiosa aflição ao paciente. O campo físico oferecia-nos
resistência, insistindo pela retenção do senhor espiritual.
19 Com a fuga do pulso, foram
chamados os parentes e o médico, que acorreram, pressurosos. No regaço
maternal, todavia, e sob nossa influenciação direta, Dimas não conseguiu
articular palavras ou concatenar raciocínios.
Alcançáramos o coma, em boas condições.
5.
O Assistente estabeleceu reduzido tempo de descanso, mas volveu a intervir
no cérebro. Era a última etapa. 2
Concentrando todo o seu potencial de energia na fossa romboidal, Jerônimo
quebrou alguma coisa que não pude perceber com minúcias, e brilhante
chama violeta-dourada desligou-se da região craniana, absorvendo, instantaneamente,
a vasta porção de substância leitosa já exteriorizada. 3
Quis fitar a brilhante luz, mas confesso que era difícil fixá-la, com
rigor. Em breves instantes, porém, notei que as forças em exame eram
dotadas de movimento plasticizante. 4
A chama mencionada transformou-se em maravilhosa cabeça, em tudo idêntica
à do nosso amigo em desencarnação, constituindo-se, após ela, todo o
corpo perispiritual de Dimas, membro a membro, traço a traço. 5
E, à medida que o novo organismo ressurgia ao nosso olhar, a luz violeta-dourada,
fulgurante no cérebro, empalidecia gradualmente, até desaparecer, de
todo, como se representasse o conjunto dos princípios superiores da
personalidade, momentaneamente recolhidos a um único ponto, espraiando-se,
em seguida, através de todos os escaninhos do organismo perispirítico,
assegurando, desse modo, a coesão dos diferentes átomos, das novas dimensões
vibratórias.
6.
Dimas-desencarnado elevou-se alguns palmos acima de Dimas-cadáver, apenas
ligado ao corpo através de leve cordão prateado, semelhante a sutil
elástico, entre o cérebro de matéria densa, abandonado, e o cérebro
de matéria rarefeita do organismo liberto.
2 A genitora abandonou o corpo
grosseiro, rapidamente, e recolheu a nova forma, envolvendo-a em túnica
de tecido muito branco, que trazia consigo.
3 Para os nossos amigos encarnados,
Dimas morrera, inteiramente. Para nós outros, porém, a operação era
ainda incompleta. O Assistente deliberou que o cordão fluídico deveria
permanecer até ao dia imediato, considerando as necessidades do “morto”,
ainda imperfeitamente preparado para desenlace mais rápido.
4 E, enquanto o médico fornecia
explicações técnicas aos parentes em pranto, Jerônimo convidou-nos à
retirada, confiando, porém, o recém-desencarnado àquela que lhe fora
desvelada mãezinha no mundo físico:
— Minha irmã pode conservar o filho à vontade até amanhã, quando cortaremos
o fio derradeiro que o liga aos despojos, antes de conduzi-lo a abrigo
conveniente. 5 Por
enquanto, repousará ele na contemplação do passado, que se lhe descortina
em visão panorâmica no campo interior. Além disso, acusa debilidade
extrema após o laborioso esforço do momento. Por essa razão, somente
poderá partir, em nossa companhia, findo o enterramento dos envoltórios
pesados, aos quais se une ainda pelos últimos resíduos.
6 A anciã agradeceu com emoção
e, dando a entender que lhe respondia às arguições mentais, o Assistente
concluiu:
— Convém montar guarda aqui, vigilante, para que os amigos apaixonados e os inimigos gratuitos não lhe perturbem o repouso forçado de algumas horas.
7 A mãe de Dimas revelou-se
muito grata e partimos, em grupo, a caminho da fundação de Fabiano,
de onde nossa expedição socorrista regressaria à Crosta, no dia seguinte.
André Luiz