1.
Meus companheiros de missão pareciam menos interessados em seguir o
caso Dimas, durante a noite, inclusive Jerônimo, reservando-se para
a continuidade do esforço no dia imediato, quando nos caberia transportá-lo
até ao abençoado abrigo de Fabiano.
2 Não se verificava o mesmo
quanto a mim.
Desembaraçando-me dos laços físicos, noutro tempo, não conseguira efetuar observações
educativas para o meu acervo de conhecimentos. 3
O choque sensorial no transe, para a minha personalidade ainda desatenta
ante as questões do Espírito eterno, impedira-me a análise minuciosa
do assunto. Agora, porém, a oportunidade poderia fazer mais luz em minhalma,
quanto à posição dos recém-desencarnados, antes da inumação do envoltório
grosseiro.
4 Expondo ao Assistente o
meu propósito de aprender, recebi dele a mais ampla permissão. Poderia
visitar a residência de Dimas, à vontade, lá permanecendo durante as
horas que desejasse.
5 A aquiescência de Jerônimo
enchia-me de prazer. Não só pela ocasião de enriquecer-me na esfera
prática, mas também porque o fato, em si, era bastante expressivo. Pela
primeira vez, um companheiro de trabalho, com autoridade suficiente,
concordava com o meu desejo de humílimo operário. O consentimento, portanto,
representava preciosa conquista. Constituía a liberdade instrutiva,
com a responsabilidade de minha consciência e a confiança de meus superiores
hierárquicos.
6 Deixando a Casa Transitória,
em plena noite, vi-me, em breve, no ambiente doméstico onde o amigo
se desfizera dos elos da matéria mais espessa.
7 Entrei. A casa enchia-se
de amigos e simpatizantes, encarnados e desencarnados. Não se articulavam
quaisquer serviços de defesa. Notei que havia trânsito livre pelos grupos
de variadas procedências.
8 Em recuado recanto, ainda
ligado às vísceras inertes pelo cordão fluídico-prateado, permanecia
Dimas no regaço da genitora, ao pé de dois amigos que, cuidadosos, o
assistiam.
9 A nobre matrona reconheceu-me,
comovida, apresentando-me aos companheiros presentes.
Um deles, Fabriciano, acolheu-me, prestativo, interessando-se pelos informes
atinentes ao desenlace. Relatei-lhe os trabalhos, pormenorizadamente.
10 Em seguida, o interlocutor
passou a explicar-se:
— Sempre tive por Dimas sincera admiração, pelo proveitoso concurso que soube oferecer-nos. Integro a comissão espiritual de serviço que vem atendendo aos necessitados, por intermédio dele, nos últimos seis anos. Foi sempre assíduo nas obrigações, bom companheiro, leal irmão.
11 Surpreso com as referências,
indaguei:
— Há, desse modo, comissões de colaboração permanente para os médiuns em geral?
— Não me reporto à generalidade, — redarguiu o interlocutor, — porque
a mediunidade é título de serviço como qualquer outro. 12
E há pessoas que pugnam pela obtenção dos títulos, mas desestimam as
obrigações que lhes correspondem. Gostariam, por certo, do intercâmbio
com o nosso Plano, mas, não cogitam de finalidades e responsabilidades.
Em vista disso não se estabelecem conjuntos de cooperação para os médiuns
em geral, mas apenas para aqueles que estejam dispostos ao trabalho
ativo. 13 Há muitos
aprendizes que não ultrapassam a fronteira da tentativa, da observação.
Desejariam o caminho bem aplainado, exigindo a convivência exclusiva
dos Espíritos genuinamente bondosos. Experimentam a luta construtiva,
através de sondagens superficiais e, à primeira dificuldade, abandonam
compromissos assumidos. 14
A aquisição da fortaleza moral não prescinde das provas arriscadas e
angustiosas. Entretanto, em face das exigências naturais do aprendizado,
dizem-se feridos na dignidade pessoal. Não suportam a aproximação de
infelizes encarnados ou desencarnados, estacionando à menor picada de
dor. 15 Para semelhantes
experimentadores, seria extremamente difícil a formação de equipes eficientes,
representativas de nosso Plano. Não se sabe quando estão dispostos a
servir. Se recebem faculdades intuitivas, pedem a incorporação; se contam
com a vidência, querem a possibilidade de exteriorizar fluidos vitais
para os fenômenos de materialização.
16 Escutei as observações sensatas
do novo amigo e, registando-lhe a nobreza dalma, passei a considerações
íntimas em torno da tarefa que nos levara até ali.
2.
Porque se formara expedição destinada a socorro de servidor que dispunha
de amigos de tamanha competência moral? 2
Fabriciano demonstrava conhecimentos elevados e condição superior. O
obsequioso amigo, porém, evidenciando extrema acuidade perceptiva, antes
que eu fizesse qualquer pergunta inoportuna, acrescentou:
3 — Não obstante nossa amizade
ao médium, não nos foi possível acompanhar-lhe o transe. Temos delegação
de trabalho, mas, no assunto, entrou em jogo a autoridade de superiores
nossos, que resolveram proporcionar-lhe repouso, o que não nos seria
possível prodigalizar-lhe, caso viesse diretamente para a nossa companhia.
4 A palestra conduzia-se
a interessantes ângulos do problema da morte. Seduzido pelas considerações,
interroguei sobre o que já sabia, mais ou menos, a fim de poder penetrar
particularidades mais significantes:
5 — Nem todas as desencarnações
de pessoas dignas contam com o amparo de grupos socorristas?
— Nem todas, — confirmou o interlocutor, acentuando, — todos os fenômenos do
decesso contam com o amparo da caridade afeta às organizações de assistência
indiscriminada; no entanto, a missão especialista não pode ser concedida
a quem não se distinguiu no esforço perseverante do bem.
6 — Todavia, — objetei, curioso,
tangendo a corda que mais me interessava no assunto, — não há casos
de criaturas, essencialmente bondosas, que se libertam dos laços físicos
— mais ou menos entrosados em comissões de serviço espiritual de natureza
superior — sem que haja missões salvacionistas, previamente designadas
para socorrê-las?
7 Após breve pausa, acrescentei
para fazer-me mais claro:
— Vamos que Dimas estivesse em ligação recente com a sua comissão de trabalho e desencarnasse sem o cuidado dum grupo socorrista: seria deixado à mercê das circunstâncias?
8 Riu-se Fabriciano,
com franqueza, e retrucou: — Isso poderia acontecer. Temos precedentes.
De maneira geral, ocorrem semelhantes casos com os trabalhadores aflitos
por conseguir de qualquer modo a desencarnação, alegando necessidades
de repouso. Muitas vezes, no fundo, são criaturas bondosas, mas menos
lógicas e pouco inteligentes. 9
Na semana finda, por exemplo, observamos um caso dessa natureza. Respeitável
senhora, jovem ainda, pelas disposições sadias que demonstrou no campo
da benemerência social, foi ligada a dedicada corrente de serviço, organizada
por amigos nossos. Verificando-se, contudo, pequenas rusgas entre ela
e o esposo, e tendo conhecimento da imortalidade da vida, além do sepulcro,
desejou a pobre criatura ardentemente morrer. Tolas leviandades do marido
bastaram para que maldissesse o mundo e a Humanidade. Não soube quebrar
a concha do personalismo inferior e colocar-se a caminho da vida maior.
Pela cólera, pela intemperança mental, criou a ideia fixa de libertar-se
do corpo de qualquer maneira, embora sem utilizar o suicídio direto.
10 Conhecia os amigos
espirituais a que se havia unido, mas, longe de assimilar-lhes ajuizadamente
os conselhos, repelia-lhes as advertências fraternas para aceitar tão
somente as palavras de consolação que lhe eram agradáveis, dentre as
admoestações salutares que lhe endereçavam. E tanto pediu a morte, insistindo
por ela, entre a mágoa e a irritação persistentes, que veio a desencarnar
em manifestação de icterícia complicada com simples surto gripal. 11
Tratava-se de verdadeiro suicídio inconsciente, mas a senhora, no fundo,
era extraordinariamente caridosa e ingênua. Não se recebeu qualquer
autorização para conceder-lhe descanso e muito menos auxílio especial.
Os benfeitores de nossa Esfera, apesar de eficiente intercessão em benefício
da infeliz, somente puderam afastá-la das vísceras cadavéricas, há dois
dias, em condições impressionantes e tristes. 12
Não havendo qualquer determinação de assistência particularizada, por
parte das autoridades superiores, e porque não seria aconselhável entregá-la
ao sabor da própria sorte, em face das virtudes potenciais de que era
portadora, o diretor da comissão de serviço, a que se filiara a imprevidente
amiga, recolheu-a, por espírito de compaixão, em plena luta, e ela se
foi, de roldão, a trabalhar por aí, ativamente, em condições muito mais
sérias e complicadas.
13 A elucidação atingira-me,
fundo.
Informara-me sobre o que desejava. A lei divina, de fato, perfeita em seus fundamentos, é igualmente harmoniosa em suas aplicações.
14 Fabriciano, estampando belo
sorriso, aduziu:
— Não frutifica a paz legítima sem a semeadura necessária. Alguém, para gozar o descanso, precisa, antes de tudo, merecê-lo. As almas inquietas entregam-se facilmente ao desespero, gerando causas de sofrimento cruel.
3.
Logo após, contemplando o recém-desencarnado, como a indicar que deveríamos
centralizar todo o interesse da hora no bem-estar dele, considerou,
acariciando-lhe a fronte:
2 — Nosso amigo repousa
agora, terminada a tormenta das provas incessantes. Está enfraquecido,
o pobrezinho. A sensibilidade, posta a serviço da obrigação bem cumprida,
castigou-lhe a alma, até ao fim; todavia, plantou a fé, a serenidade,
o otimismo e a alegria em milhares de corações, estabelecendo sólidas
causas de felicidade futura. 3
Por enquanto, permanecerá na posição de ave frágil, incapaz de voar
longe do ninho.
— Felizmente, — aventou a genitora, satisfeita, — vem melhorando de modo visível.
Os resíduos que o ligam ao cadáver estão quase extintos.
4 Relanceou o olhar pelos
ângulos da modesta residência e acrescentou:
— Se fosse possível receber maior cooperação dos amigos encarnados, ser-lhe-ia muito mais fácil o restabelecimento integral. No entanto, cada vez que os parentes se debruçam, em pranto, sobre os despojos, é chamado ao cadáver, com prejuízo para a restauração mais rápida.
5 — Lamentavelmente,
porém, — tornou Fabriciano, — nossos irmãos encarnados não possuem a
chave de reais conhecimentos para organizar ação adequada a esta hora.
— Em vista disso, — revidou a genitora, conformada, — insisto para que Dimas
durma, embora o sono, que poderia ser calmo e doce, esteja povoado de
pesadelos.
6 Diante da surpresa que me
absorvia, o companheiro apressou-se a esclarecer-me:
— As imagens contidas nas evocações das palestras incidem sobre a mente do desencarnado, mantido em repouso depois de rápido mergulho na contemplação dos fatos alusivos à existência finda. Não somente as imagens. Por vezes, nossos amigos presentes, fecundos nas conversações sem proveito, exumem, com tamanho calor, a lembrança de certos fatos, que trazem até aqui alguns dos protagonistas já desencarnados.
7 As afirmações ouvidas incitaram-me
a curiosidade. Fabriciano, entretanto, desejando prodigalizar-me experiência
direta, aconselhou:
— Espere alguns minutos na sala contígua, onde os despojos recebem a visitação.
Obedeci.
8 O velório apresentava o
aspecto usual. Flores perfumadas, semblantes sisudos e conversações
discretas.
Ao pé do cadáver, propriamente considerado, os amigos sustentavam reserva e circunspecção. A poucos passos, todavia, davam-se asas ao anedotário vibrante, em torno do amigo em trânsito para o “outro mundo”. Pequenas e grandes ocorrências da vida do “morto” eram lembradas com graça e vivacidade.
9 Acerquei-me de roda compacta,
em que se falava a respeito dele.
Certo rapaz dirigiu-se a cavalheiro muito idoso, perguntando:
— Coronel, recebeu a conta?
— Por enquanto, não, — respondeu o velhote interpelado, preparando fumo de
rolo para cigarro à moda antiga, — mas não me preocupo pela demora.
Dimas foi sempre bom camarada e os filhos não olvidarão o compromisso
paterno. Questão de tempo…
10 Interessado em ressaltar
as qualidades distintas do “falecido” e revelando suas boas disposições
de historiador municipal, prosseguiu:
— Dimas era um homem interessante e excepcional. Sempre lhe invejei a serenidade. Em matéria de prudência, raras pessoas conheci semelhantes a ele. É verdade que nunca me dei a estudos espiritistas, mas confesso que, ao lhe observar a maneira de proceder, sempre desejei conhecer a doutrina que lhe formava o caráter.
Até aí, tudo muito bem. Embora a invocação dos débitos do “morto”,
o credor apenas pronunciava palavras de estímulo e paz.
11 Todavia, no estado atual
da educação humana é muito difícil alimentar, por mais de cinco minutos,
conversação digna e cristalina, numa assembleia superior a três criaturas
encarnadas.
O comentarista modificou o diapasão de voz, olhou na direção do cadáver
e observou, em tom confidencial:
— Poucos homens foram de boca segura como este. Conheci Dimas, faz muitos anos, e estou certo de que foi testemunha ocular de pavoroso crime, que nunca se desvendou para os juízes da Terra.
12 Após ligeira pausa, acendeu
o cigarro e perguntou, reaguçando a curiosidade dos ouvintes:
— Nunca souberam?
Os presentes mostraram silenciosa negativa.
— Vai para trinta anos, — continuou o narrador, — Dimas residia ao
lado de nobre família, que guardava consigo valiosos patrimônios da
coletividade, relativamente à orientação pública. Desse agrupamento
doméstico, superiormente conceituado na apreciação geral, emanavam ordens
e benefícios da mais elevada expressão para o bem-estar de todos. 13
Como não ignoram, há três decênios a vida no interior ainda conservava
expressiva herança do Brasil imperial. A economia centralizada mantinha
a “casa grande” simbólica, onde se traçavam roteiros para o serviço
popular. Situado na vizinhança de residência feudal como essa, nosso
amigo levava existência humilde de trabalhador, organizando o futuro
de homem de bem.
14 O cavalheiro, insciente
dos problemas do espírito, enunciou nomes, relacionou datas e lembrou
brejeiramente certos pormenores, prosseguindo com maliciosa jocosidade:
— Certa noite, pela madrugada, conhecido chefe político saía do palacete residencial
pelos fundos, acompanhado de uma senhora que aparentava excessiva despreocupação
consigo mesma, ao despedir-se com intempestiva manifestação de afeto.
15 Terminado o estranho
adeus e, vendo-se sozinho, o “Dom Juan” deu alguns passos para a retirada,
espiou, cauteloso, em torno, e ia continuar a marcha, quando reparou
que alguém lhe observara a intimidade com a esposa de respeitável amigo.
Era modestíssimo operário, que talvez estivesse ali por força de circunstâncias
inapreciáveis. O político alcançou-o, dum salto. Homem de compleição
robusta e paixões violentas, aproximou-se do espectador inesperado e
interpelou-o, brutalmente, ao que o mísero respondeu, humilde:
— Doutor, — não estou espreitando, juro-lhe!
— Pois morrerá, de qualquer modo, — adiantou o atlético agressor, em voz sumida
de cólera.
16 Agarrou-o pelo paletó e
acentuou, de dentes cerrados:
— Vermes que perturbam, devem morrer.
— Não me mate, doutor! Não me mate! Rogou o infeliz, — tenho mulher e filhos!
Saberei respeitá-lo!…
Não valeu à vítima dobrar-se de joelhos, na súplica, porque o homem terrível, cego de fúria, tomou a arma e desfechou-lhe certeiro tiro no coração, afastando-se precípite.
17 Dimas, tendo
observado os fatos a curta distância, gritou, fazendo-se ouvir pelo
assassino, que o reconheceu pelas exclamações, e correu no sentido de amparar o ferido, mas, em verdade, a vítima nem chegou a gemer. Avançando para o assassinado, quando outras pessoas, em roupas brancas, acorriam igualmente à pressa, por verificar o ocor- rido, manteve-se a cavaleiro de qualquer atitude suspeitosa; no entanto, chamado a esclarecimento
pelas autoridades, ele, que tudo sabia, nada revelou. 18
Protegeu o morto nos funerais, dispensou-lhe extremos cuidados, extensivos
à família, portou-se como cristão fiel, esquivando-se, contudo, ao fornecimento
de quaisquer indícios para que o criminoso fosse capturado, alegando
desconhecer qualquer minúcia dos fatos que deram motivo ao acontecimento.
E o caso policial foi encerrado, na suposição de latrocínio. A única
testemunha, que era ele, considerava preferível o silêncio ao escândalo
que traria enormes dissidências domésticas e sociais.
19 O narrador fixava os despojos
e acentuava:
— Boca segura! Não conheci homem mais discreto…
Certo ouvinte indagou, brejeiro:
— Mas, coronel, como veio a saber das particularidades, se Dimas não chegou a denunciar?
20 O interpelado fez um gesto
de franca satisfação e acrescentou:
— Vantagem da boa amizade com os sacerdotes. Meu velho amigo, o padre F…, que
Deus guarde, contou-me o fato, sumamente impressionado. Ouviu o assassino,
em confissão, antes da morte dele e obteve todos os pormenores da obscura
ocorrência. 21 O homicida,
cuidadoso na exposição das faltas, não se esqueceu de nomear Dimas ao
vigário, como exclusiva testemunha do pecado mortal cometido. O padre,
contudo, excelente amigo, cheio de experiência do mundo, não trouxe
o caso a público. As pessoas envolvidas no drama deixaram descendência
distinta e seria crueldade rememorar acontecimento tão triste.
22 O narrador estampou curiosa
expressão no rosto e rematou, apagando o cigarro:
— Tudo passa… Morreram a vítima, a adúltera, o assassino, o confessor e, agora, a testemunha. Certo, haverá lugar, fora deste mundo, para fazer-se a justiça.
23 Nesse momento, horrível
figura, seguida de outras, não menos monstruosas, surgiu de inesperado.
Acercando-se do leviano comentador, ouviu-lhe, ainda, as últimas palavras,
sacudiu-o e gritou:
— Sou eu o assassino! Que quer você de mim? Porque me chama? É juiz?!
O narrador não enxergara o que eu via, mas seu corpo foi atingido por involuntário estremeção, que arrancou abafado riso dos presentes.
24 Logo após, o homicida desencarnado,
atraído talvez pelo cheiro forte das flores reunidas na eça improvisada,
teve a perfeita noção do velório. Abalou-se, precipitado, pondo-se na
contemplação do morto.
Reconheceu-o, estampou um gesto de profunda surpresa, ajoelhou-se e gritou:
— Dimas, Dimas, pois também tu vens para a verdade?! Onde estás, bom
amigo, que me velaste a falta com o véu da caridade sem limites? Socorre-me!
Estou desesperado! Onde encontrarei minha vítima para suplicar o perdão
de que necessito? Ajuda-me, ainda! Tem compaixão! Deves saber o que
ignoro! Socorre-me, socorre-me!…
25 Ao lado do infeliz, em rogativa,
diversas entidades sofredoras permaneciam extáticas.
Mas Fabriciano surgiu inesperadamente e ordenou aos invasores afastamento imediato.
Limpa a câmara, o novo amigo dirigiu-se a mim, observando:
— Garanto que este grupo entrou nesta casa por invocação direta.
26 Narrei-lhe, impressionado,
o que vira.
Ouviu-me calmamente e ponderou:
— A observação, feita por nós mesmos, é sempre mais valiosa. Dimas, não obstante dedicado à causa do bem e compelido a grande esforço de cooperação na obra coletiva, descuidou-se de incentivar a prática metódica da oração em família, no santuário doméstico. Por isso tem defesas pessoais, mas a residência conserva-se à mercê da visitação de qualquer classe.
27 A elucidação era significativa.
Comecei a compreender a razão do sentimentalismo prejudicial da família
inconformada. Desejando, porém, fixar o aprendizado da noite sobre assunto
atinente à desencarnação, perguntei:
— Nosso amigo recém-liberto terá ouvido a súplica do irmão desventurado?
— Geme sob terrível pesadelo, nos braços maternos, — explicou Fabriciano, solícito,
— ao recordar o fato relatado. 28
Desde alguns minutos acompanhamos a agitação dele, reparando que recebia
choques desagradáveis, através do cordão final.
— Ouvindo e vendo os quadros invocados? Insisti, perguntando.
— Não chegou a ver, nem a ouvir, integralmente, em face da perturbação espontânea, mas vislumbrou, sentiu, oprimiu-se e torturou-se, prejudicando a reconquista de si mesmo. As forças mentais estão revestidas de maravilhoso poder.
29 Indicando os grupos que
continuavam conversando, acentuou, sem aspereza:
— Nossos amigos da Esfera carnal são ainda muito ignorantes para o trato com a morte. Ao invés de trazerem pensamentos amigos e reconfortadores, preces de auxílio e vibrações fraternais, atiram aos recém-desencarnados as pedras e os espinhos que deixaram nas estradas percorridas. É por isso que, por enquanto, os mortos que entregam despojos aos solitários necrotérios da indigência são muito mais felizes.
30 Ainda não havia terminado,
de todo, as considerações, quando a esposa de Dimas, num acesso de pranto,
levantou-se do leito em que repousava e adiantou-se para o cadáver,
repetindo-lhe o nome, comovedoramente:
— Dimas! Dimas! Como ficarei?! Estaremos separados, então, para sempre?…
31 Como Fabriciano
se dirigisse apressado para o quarto humilde em que permanecia o desencarnado,
acompanhei-o. A genitora do médium fazia esforços para contê-lo, mas
debalde. Pelo fio prateado, estabelecera-se vigoroso contato entre ele
e a companheira, porque Dimas se ergueu, cambaleante, apesar do carinho
materno. 32 Estava lívido,
semilouco. Avançou para a sala mortuária, rogando paz, mas antes que
pudesse aproximar-se muito dos despojos, Fabriciano aplicou energias
de prostração na esposa imprudente, que foi novamente conduzida ao leito,
agora sem sentidos, enquanto Dimas voltava ao regaço maternal, menos
aflito.
33 O amigo esclareceu-me, sereno:
— Há situações em que o drástico deve ser medida inicial. Nosso irmão muito fez pela harmonia dos outros, durante a existência, e merece libertação pacífica. Sinto-me, pois, no dever de garanti-lo para que se desembarace dos últimos resíduos que ainda o inclinam à matéria densa.
34 Outros amigos e afeiçoados
do médium chegaram ao ambiente doméstico, interessados em ajudá-lo e,
como a noite ia muito alta, despedi-me dos companheiros, pondo-me de
regresso ao acolhedor asilo de Fabiano.
35 No outro dia, ao me avistar,
disse-me o Assistente Jerônimo, após a saudação inicial:
— Espero, André, que o velório lhe tenha trazido úteis e instrutivos ensinamentos.
36 Sim, o estimado Assistente
falava com muita propriedade e razão. Eu aprendera muito, durante a
noite. Aprendera que as câmaras mortuárias não devem ser pontos de referência
à vida social, mas recintos consagrados à oração e ao silêncio.
André Luiz