Histórias da meia-noite — Plágios de fantasmas — “Esse Chico Xavier é um caso bem interessante” — O homem confidente da morte.
PEDRO LEOPOLDO, † 23 (Do enviado especial do GLOBO, Clementino de Alencar) — As histórias de fantasmas narradas por várias horas, ao fim do jantar de ontem, nos deixaram uma impressão que, confessamo-lo, nos perturbaram um pouco o sono…
Principalmente esta, contada com muita arte, por um dos presentes:
“Um proprietário dos arredores de Sabará † recebeu, certo dia, a visita de um seu amigo e compadre vindo de Belo Horizonte, † e, como de hábito, ofereceu-lhe “posada”. O quarto reservado ao visitante dava para uma dessas amplas varandas típicas das fazendas do interior e era dessa separado por larga porta envidraçada.
“O hóspede e amigo recolheu-se ao seu aposento cerca das 23 horas e, como a noite estivesse frio, fechou à chave a porta envidraçada. Estendido na cama pôs-se, depois, a ler jornais que trouxera da capital. Silêncio. De repente, porém, ouviu ele um toc-toc lento de passos na varanda.
“— Aí vem ainda o diabo do compadre — pensou — encurtar-me as horas de sono com suas conversas que não acabam mais…
“E, rápido, soprou a chama da lamparina fingindo que já dormia. Mas, do escuro, ficou à espreita. Quem vinha não era o compadre. Era um sujeito alto, espadaúdo, de expressão severa. Com a maior sem-cerimônia, empurrou a porta e entrou. Apesar de estar o quarto às escuras, começou a dar, no seu interior, passadas tranquilas de um lado para outro. E, os polegares enfiados na cava do colete, tamborilavam com os dedos no peito, produzindo um som cavo:
“— Tun-tun-tun… tun-tun-tun…
“Depois, percebendo ali uma presença, parou junto à cama e inclinou-se para examinar com o olhar o homem que dormia…
“Foi só. Fez, depois, meia-volta e saiu, com a mesma naturalidade e o mesmo toc-toc lento, pela varanda a fora desaparecendo no silêncio e na noite.
“O hóspede então ergueu-se e correu à porta. Esta continuava fechada. Impressionado com a estranha visita, quase não dormiu e, no outro dia, comunicou o fato ao compadre. Este levou-o ao salão da fazenda e, mostrando-lhe retratos pendurados pelas paredes, perguntou se o misterioso visitante era um dos retratados.
“— É este! — apontou afinal o hóspede.
“— Está certo — considerou o compadre. — Esse era meu irmão e morreu há anos. Outras pessoas daqui já o viram naquele quarto. Julguei que fosse sugestão. Mas não. Você, que ontem o viu, chegou de longe, não conhecia a lenda e não podia estar sugestionado.”
Como se vê, a versão é a mesma que serviu ao “The tapestried chambre” de Walter Scott - Google Books. Apenas, o fantasma mudou de sexo e continente. Mesmo assim, torna-se evidente que até entre fantasmas há plágio de hábitos e atitudes… O seu poder, porém, é tal que mesmo a ideia dessa aparição decalcada nos trouxe sobressaltos ao sono. E foi com alívio que demos com os olhos ao dia, esta manhã…
“Implorar! Implorar! Só a Deus!”…
São as crianças que cantam na varanda. A alma do morro chegou até Pedro Leopoldo.
O Imprevisto
— “Bom dia. Dormiu bem?”
Café. Rua.
À frente do cinema, ouvimos uma frase mais longa de cumprimento. Voltamo-nos.
Diante de nós está uma figura idosa, simples e simpática. O professor Tão Júnior. É rápido no prender-nos para a palestra. Filho de Sete Lagoas, † já lecionou até no Rio. † Gosta de Pedro Leopoldo. Fala com entusiasmo da simplicidade e pureza dos costumes locais e dos fatores que dão à cidade riqueza e vida própria.
Depois, faz uma pausa e olha-nos com curiosidade.
Valemo-nos do pretexto:
— Estamos à espera do Coletor.
— Já voltou. Chegou à noite passada — acode o professor com um sorriso de boa notícia.
E apressa-se a mostrar-nos, com o dedo, a casa, que dali se avista, onde mora o Sr. Maurício Azevedo e a da Coletoria † ao lado.
— Vá lá agora, que ele já deve estar na Coletoria.
Colhidos assim de imprevisto resolvemos seguir o conselho do professor. Mas o Sr. Maurício estava dormindo. Que voltássemos depois do meio-dia.
Lápis e objetiva à mostra
À tarde, pois, encontramo-nos com o Coletor federal.
Na véspera, tínhamos sido informados de que as sessões espíritas se realizavam aqui às quartas e sextas-feiras.
Hoje é terça. Amanhã há sessão. Estamos em cima da hora.
Por isso, quando nos vimos diante do Sr. Maurício, resolvemos por, de vez, à mostra, a objetiva e o lápis da reportagem.
Depois, tudo se desenrolou rapidamente.
“Um caso que fica sem solução”
O Sr. Maurício atende, amavelmente o repórter, que lhe pede informações sobre o famoso médium de Pedro Leopoldo.
A certa altura, diz-nos:
— Eu, francamente, não me interesso por assuntos espíritas nem ponho muita crença a respeito. Mas esse Chico Xavier é um caso bem interessante. Fica-se assim como quem nem acredita nem nega. Deixa-se o assunto na esfera das coisas vagas, das coisas que não podemos compreender. Esse rapaz, pelo menos para mim é um caso que fica sem solução.
Oferece-nos um cigarro e acrescenta:
— Mas os senhores julguem por si. Vou convidar o homem a vir aqui, agora mesmo.
Um garoto parte, correndo, com o convite.
O confidente humilde da Morte
O Coletor debruça-se sobre os papéis que enchem sua mesa.
Passam-se alguns minutos de silêncio e espera.
Depois, timidamente uma cabeça, quase risonha, quase assustada, surge à porta.
— Pronto, doutor…
— Entre, Chico Xavier.
Ele atende. Está agora à nossa frente, encostado à parede, [v. foto tirada nessa ocasião] evidentemente embaraçado diante daquela cara estranha e daqueles olhos curiosos.
Não traz chapéu nem gravata e todo o seu traje é um atestado de pobreza. É moreno, de um moreno carregado, e tem cabelos muito negros, compridos, crespos. Baixo, compleição forte. Caboclo. Mas no físico, não na expressão. Esta é de estranha humildade e doçura. Com o sorriso leve que mostra agora, seu rosto tem até um ar de ingenuidade. Lá longe, na cidade grande, diriam dele:
— “Um bobo!”
Seu embaraço se acentua quando lhe pomos o olhar no casaco surrado, na camisa aberta, nas calças de brim remendadas, nos sapatos cambaios.
Com a mesma timidez da entrada, ele observa-nos:
— Desculpem ter eu vindo nestes trajes. Estava trabalhando. A vida tem que ser assim. Trabalhar…
O Coletor fala em “jornalistas”. Preferíamos que a apresentação não fosse tão pronta. Mas a palavra está dita.
Justificamos nossa presença ali: as mensagens divulgadas no Rio.
Na confusão em que está, seu sorriso e suas frases se desdobram, com intermitências bruscas, reticências sem malícia:
— Ah! Sim… Foi um senhor do Rio… Mas eu sou um pobre rapaz do mato… Não convém tanta notícia… Por favor… deixem-me assim mesmo, na obscuridade…
Observamos-lhe que a notícia, o assunto, já está lançado no Rio. As mensagens estão sendo muito comentadas e discutidas. Os esclarecimentos e impressões que vimos colher não lhe farão mal.
— Mas eu tenho receio… Os jornais falam, depois toda gente por aí se põe a discutir, não me deixam mais tranquilo no meu canto… Além disso, depois, quererão de certo que eu faça coisas que não poderei fazer… o impossível…
Por um momento, meditamos sobre essas palavras. Chico Xavier é bom psicólogo, também… Fama de faculdades extraordinárias?… Multidões à porta… Romarias de doentes e desesperados… Solicitação de prodígios… Corpos em busca da cura, almas em busca de consolo… A humanidade ainda não pôde prescindir dos deuses, dos magos e dos milagres.
E até no mistério da morte ela vai procurar socorro e consolação para a vida…
As confidências
A audiência, ali, na sala da Coletoria, é rápida. Chico Xavier é o único caixeiro da venda de “seu” Zé Felizardo, e “seu” Zé está doente. O balcão ficou abandonado. Chico Xavier tem que voltar já para lá; mas ali estará à nossa disposição, ou mais tarde, em sua casa, às 20 horas, quando deixa o trabalho.
Indagamos, antes dele ir-se, se tem já mensagens ulteriores às publicadas no Rio, isto é, recebidas depois de 28 de março último.
Ele diz que tem mensagens, versos, etc., ainda inéditos, de antes e depois da data citada.
Fala com um tom de sinceridade que impressiona.
— Se o senhor espera aqui, eu lhe mandarei já todas essas mensagens e versos, para o senhor ler.
E foi-se, apressadamente, para o balcão pobre da venda sertaneja. Pouco depois recebíamos, numa pasta de papelão, uma série de produções: crônicas, versos e produções outras enviadas de Além-Túmulo, segundo a declaração escrita ao pé, por Augusto dos Anjos, Auta de Souza, Carmen Cinira, Antônio Nobre, Emílio de Menezes, Casimiro Cunha, João de Deus, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Hermes Fontes, Humberto de Campos, Bilac, Luiz Guimarães, Léon Denis, J. P. d’Oliveira Martins [Joaquim Pedro d’Oliveira Martins, 1845-1894 — Bibliografia], Bittencourt Sampaio, Júlio Diniz, Eça de Queiroz † , Thereza d’Ávila, Camilo Castelo Branco † , Martha (?) e um Emmanuel, guia do médium.
À vista daquelas páginas alvoroça-nos um pouco.
Voltamos ao hotel.
E com uma estranha sensação de mistério e de milagre o repórter se entrega à leitura daquelas confidências comovidas da morte.
(Do jornal O Globo, Rio de Janeiro, RJ, 1º/maio/1935.)
Clementino de Alencar
[1] Houve grande repercussão na imprensa quando o médium Chico Xavier começou a receber belas páginas do renomado escritor Humberto de Campos (25/10/1886 — 05/12/1934), em seu estilo inconfundível, pouco meses após a sua desencarnação. (Nota do Organizador.)