1.
Esplendia o luar, revestindo os ângulos da paisagem de intensa luz.
2 Maravilhosos cúmulos
a Oeste, espraiados no horizonte, semelhavam-se a castelos de espuma
láctea, perdidos no imenso azul; confinando com a amplidão, o quadro
terrestre contrastava com o doce encantamento do alto, deixando entrever
a vasta planície, recamada de arvoredo em pesado verde-escuro. 3
Ao Sul, caprichosos cirros reclinavam-se do céu sobre a Terra, simbolizando
adornos de gaze esvoaçante; evoquei, nesse momento, a juventude da Humanidade
encarnada, perguntando a mim mesmo se aquelas bandas alvas do firmamento
não seriam faixas celestiais a protegerem o repouso do educandário terrestre.
4 A solidão imponente do plenilúnio
infundia-me quase terror pela melancolia de sua majestosa e indizível
beleza.
5 A ideia de Deus envolvia-me
o pensamento, arrancando-me notas de respeito e gratidão, que eu, entretanto,
não chegava a emitir. Em plena casa da noite, rendia culto de amor ao
Eterno, que lhe criara os fundamentos sublimes de silêncio e de paz,
em refrigério das almas encarnadas na Crosta da Terra.
6 O luminoso disco
lunar irradiava, destarte, maravilhosas sugestões. Aos seus reflexos,
iniciara-se a evolução terrena, e numerosas civilizações haviam modificado
o curso das experiências humanas. Aquela mesma lâmpada suspensa clareara
o caminho dos seres primitivos, conduzira os passos dos conquistadores,
norteara a jornada dos santos. 7
Testemunha impassível, observara a fundação de cidades suntuosas, acompanhando-lhes
a prosperidade e a decadência; contemplara as incessantes renovações
da geografia política do mundo; brilhara sobre a testa coroada dos príncipes
e sobre o cajado de misérrimos pastores; presenciava, todos os dias,
há longos milênios, o nascimento e a morte de milhões de seres. Sua
augusta serenidade refletia a paz divina. 8
Cá em baixo, desencarnados e encarnados, possuidores de relativa inteligência,
podíamos proceder a experimentos, reparar estradas, contrair compromissos
ou edificar virtudes, entre a esperança e a inquietação, aprendendo
e recapitulando sempre; mas a Lua, solitária e alvinitente, trazia-nos
a ideia da tranquilidade inexpugnável da Divina Lei.
2.
— A região do encontro está próxima.
A palavra do Assistente Calderaro interrompeu-me a meditação.
2 O aviso fazia-me sentir
o trabalho, a responsabilidade; lembrava, sobretudo, que não me encontrava
só.
Não viajávamos, ambos, sem objetivo.
3 Em breves minutos, partilharíamos
os trabalhos do Instrutor Eusébio, abnegado paladino do amor cristão,
em serviço de auxílio a companheiros necessitados.
4 Eusébio, de
há muito, dedicara-se ao ministério do socorro espiritual, com vastíssimos créditos
em nosso Plano. Renunciara a posições de realce e adiara sublimes realizações,
consagrando-se inteiramente aos famintos de luz. Superintendia prestigiosa
organização de assistência em zona intermediária, atendendo a estudantes
relativamente espiritualizados, pois ainda jungidos ao Círculo carnal,
e a discípulos recém-libertos do campo físico.
5 A enorme instituição, a
que dedicava direção fulgurante, regurgitava de almas situadas entre
as Esferas inferiores e as superiores, gente com imensidão de problemas
e de indagações de toda a espécie, a requerer-lhe paciência e sabedoria;
entretanto, o indefesso missionário, mau grado ao constante acúmulo
de serviços complexos, encontrava tempo para descer semanalmente à Crosta
Planetária, satisfazendo interesses imediatos de aprendizes que se candidatavam
ao discipulado, sem recursos de elevação para vir ao encontro de seu
verbo iluminado, na sede superior.
6 Não o conhecia pessoalmente.
Calderaro, porém, recebia-lhe a orientação, de conformidade com o quadro
hierárquico, e a ele se referira com o entusiasmo do subordinado que
se liga ao chefe, guardando o amor acima da obediência.
7 O Assistente, a seu turno,
prestava serviço ativo na própria Crosta da Terra, a atender, de modo
direto, aos irmãos encarnados. Especializara-se na ciência do socorro
espiritual, naquela que, entre os estudiosos do mundo, poderíamos chamar
“psiquiatria iluminada”, setor de realizações que há muito tempo me
seduzia.
8 Dispondo de uma
semana sem obrigações definidas, dentre os encargos que me diziam respeito,
solicitei ingresso na turma de adestramento, da qual se fizera Calderaro
eminente orientador, tendo-me ele aceito com a gentileza característica
dos legítimos missionários do bem e propondo-se conduzir-me carinhosamente.
9 Encontrava-se em
oportunidade favorável aos meus propósitos de aprender, pois a equipe
de preparação, que lhe recebia ensinamentos, excursionava em outra região,
a labutar em atividades edificantes; à vista disso, poderia dispensar-me
toda a atenção, auxiliando-me nos desejos.
10 Os casos que
lhe eram atinentes, explicou-me solícito, não apresentavam continuidade
substancial: desdobravam-se; constituíam obra de improviso, obedeciam
ao inopinado das ordens de serviço ou das situações. 11
Noutros campos de ação, fazia-se imprescindível o roteiro, previstas
as condições e as circunstâncias. No quadro de responsabilidades, porém,
que lhe estavam afetas, diferiam as normas; importava acompanhar os
problemas, quais imprevistas manifestações da própria vida. 12
Em virtude de tais flutuações, não traçava, a rigor, programas quanto
a particularidades. Executava os deveres que lhe competiam, onde, como
e quando determinassem os desígnios superiores. O escopo fundamental
da tarefa circunscrevia-se ao socorro imediato aos infelizes, evitando-se,
quanto possível, a loucura, o suicídio e os extremos desastres morais.
13 Para isto, o missionário
atuante era compelido a conhecer profundamente o jogo das forças psíquicas,
com acendrado devotamento ao bem do próximo. Calderaro, neste particular,
não deixava perceber qualquer dúvida. A bondade espontânea lhe era indício
da virtude, e a inquebrantável serenidade revelava-lhe a sabedoria.
14 Não lhe gozava o convívio
desde muitos dias. Abraçara-o na véspera pela primeira vez; bastou,
no entanto, um minuto de sintonia, para que se estabelecesse entre nós
sadia intimidade. Embora lhe reconhecesse a sobriedade verbal, desde
o momento do nosso encontro permutávamos impressões como velhos amigos.
3.
Seguindo-lhe, pois, os passos, afetuosamente, de alma edificada na fraternidade
e na confiança, vi-me a reduzida distância de extenso parque, em plena
natureza terrestre.
2 Em torno, árvores robustas,
de copas farfalhantes, alinhavam-se, à maneira de sentinelas adrede
postadas para velar-nos pelos serviços.
3 O vento passava cantando,
em surdina; no recinto iluminado de claridades inacessíveis à faculdade
receptiva do olhar humano, aglomeravam-se algumas centenas de companheiros,
temporariamente afastados do corpo físico pela força libertativa do sono.
4 Amigos de nossa Esfera atendiam-nos
com desvelo, mostrando interesse afetivo, prazer de servir e santa paciência.
Reparei que muitos se mantinham de pé; outros, contudo, se acomodavam
nas protuberâncias do solo alcatifado de relva macia, em palestra grave
e respeitosa.
5 Ambientando-me para aquela
hora de extrema beleza espiritual, Calderaro avisou-me:
— Na reunião de hoje o Instrutor Eusébio receberá estudantes do espiritualismo, em suas correntes diversas, que se candidatam aos serviços de vanguarda.
— Oh! — Exclamei, curioso, — não se trata, pois, de assembleia, que agrupe
indivíduos filiados indiscriminadamente às escolas da fé?
6 O Assistente esclareceu,
de pronto:
— A medida não seria aconselhável no círculo de nossa especialidade.
O Instrutor afeiçoou-se ao apostolado de assistência a criaturas encarnadas
e a recém-libertas da zona física, em particular, precisando aproveitar
o tempo com as horas de preleção, para o máximo de aproveitamento. 7
A heterogeneidade de princípios em centenas de indivíduos, cada qual
com sua opinião, obrigaria a digressões difusas, acarretando condenáveis
desperdícios de oportunidades. n
8 Fixou a multidão demoradamente,
e acrescentou:
— Temos aqui, em cálculo aproximado, mil e duzentas pessoas. Deste
número oitenta por cento se constituem de aprendizes dos templos espiritualistas,
em seus ramos diversos, ainda inaptos aos grandes voos do conhecimento,
conquanto nutram fervorosas aspirações de colaboração no Plano Divino.
9 São companheiros
de elevado potencial de virtudes. Exemplificam a boa vontade, exercitam-se
na iluminação interior através de esforço louvável; contudo, ainda não
criaram o cerne da confiança para uso próprio. 10
Tremem ante as tempestades naturais do caminho e hesitam no círculo
das provas necessárias ao enriquecimento da alma, exigindo de nós particular
cuidado, pois que, pelos seus testemunhos de diligência na obra espiritualizante,
são os futuros instrumentos para os serviços da frente. 11
Apesar da claridade que lhes assinala as diretrizes, ainda padecem desarmonias
e angústias, que lhes ameaçam o equilíbrio incipiente. Não lhes falece,
porém, a assistência precisa. Instituições de restauração de forças
abrem-lhes as portas acolhedoras em nossas Esferas de ação. 12
A libertação pelo sono é o recurso imediato de nossas manifestações
de amparo fraterno. A princípio, recebem-nos a influência inconscientemente;
em seguida, porém, fortalecem a mente, devagarinho, gravando-nos o concurso
na memória, apresentando ideias, alvitres, sugestões, pareceres e inspirações
beneficentes e salvadoras, através de recordações imprecisas.
13 Fez breve pausa e concluiu:
— Os demais são colaboradores de nosso Plano em tarefa de auxílio.
14 A organização dos trabalhos
era digna de sincera admiração. Estávamos num campo substancialmente
terrestre. A atmosfera, impregnada de aromas que o vento espargia em
torno, recordava-me o lar na Terra, contornado de seu jardim, em noite
cálida.
15 Que teria eu
realizado no mundo físico se recebesse, em outro tempo, aquela bendita
oportunidade de iluminação? Aquele punhado de mortais, sob os raios
da Lua, afigurou-se-me assembleia de privilegiados, favorecidos por
celestes numes. 16
Milhões de homens e mulheres a dormir em cidades próximas, algemados
aos interesses imediatos e ansiando a permuta das mais vis sensações,
nem de longe suspeitariam a existência daquela original aglomeração
de candidatos à luz íntima, convocados à preparação intensiva para incursões
mais longas e eficientes na espiritualidade superior. 17
Teriam a noção do sublime ensejo que lhes aprazia? Aproveitariam a dádiva
com suficiente compreensão dos valores eternos? Marchariam desassombrados
para a frente, ou estacionariam ao contato dos primeiros óbices, no
esforço iluminativo?
18 Calderaro percebeu-me as
silenciosas perquirições e acrescentou:
— Nossa comunidade de trabalho se dedica, essencialmente, à manutenção
do equilíbrio. Não ignoras que a modificação do plano mental das criaturas
ninguém jamais a impõe: é fruto de tempo, de esforço, de evolução; e
o edifício da sociedade humana, em o atual momento do mundo, vem sendo
abalado nos próprios alicerces, compelindo imenso número de pessoas
a imprevistas renovações. 19
Certo, não te surpreenderás se eu disser que, em face do surto da inteligência
moderna, que embate na paralisia do sentimento, periclita a razão. O
progresso material atordoa a alma do homem desatento. Grandes massas,
há séculos, permanecem distanciadas da luz espiritual. 20
A civilização puramente científica é um Saturno devorador, e a humanidade
de agora se defronta com implacáveis exigências de acelerado crescer
mental. Daí o agravo de nossas obrigações no setor da assistência. As
necessidades de preparação do espírito intensificam-se em ritmo assustador.
21 Nesse instante, alcançamos
a multidão pacífica.
Meu interlocutor sorriu, frisando:
— O acaso não opera prodígios. Qualquer realização há que planejar, atacar, pôr a termo. Para que o homem físico se converta em homem espiritual, o milagre exige muita colaboração de nossa parte.
22 Lançou-me olhar significativo
e concluiu:
— As asas sublimes da alma eterna não se expandem nos acanhados escaninhos de uma chocadeira. Há que trabalhar, brunir, sofrer.
4.
Nesse momento, aproximou-se alguém dirigindo-nos a palavra: era um solícito
companheiro, informando-nos que Eusébio penetrara o recinto. 2
Efetivamente, em saliência próxima, comparecia o missionário, ladeado
por seis assessores, todos envoltos em halos de intensa luz.
3 O abnegado orientador não
exibia os traços de venerável senectude com que em geral imaginamos
os apóstolos das revelações divinas; mostrava-se-nos com a figura dos
homens robustos, em plena madureza espiritual; os olhos escuros e tranquilos
pareciam fontes de imenso poder magnético. Contemplava-nos sorridente,
qual simples colega.
4 A presença dele impusera,
porém, respeitoso silêncio. Cessaram todas as conversações que aqui
e ali se entretinham, e ante os fios de luz que os trabalhadores de
nosso Plano teciam em derredor, isolando-nos de qualquer assédio eventual
das forças inferiores, apenas o vento calmo erguia a voz, sussurrando
algo de belo e misterioso à folhagem.
5 Sentamo-nos todos, à escuta,
enquanto o Instrutor se mantinha de pé; observando-o, quase frente a
frente, eu podia agora apreciar-lhe a figura majestosa, respirando segurança
e beleza. Do rosto imperturbável, a bondade e a compreensão, a tolerância
e a doçura irradiavam simpatia inexcedível. A túnica ampla, de tom verde-claro,
emitia esmeraldinas cintilações. Aquela vigorosa personalidade infundia
veneração e carinho, confiança e paz.
Consolidada a quietude no ambiente, elevou a destra para o Alto e orou com inflexão
comovedora:
6
Senhor da vida,
Abençoa-nos o propósito
De penetrar o caminho da Luz!…
7 Somos
Teus filhos,
Ainda escravos de círculos restritos,
Mas a sede do Infinito
Dilacera-nos os véus do ser.
8 Herdeiros
da imortalidade,
Buscamos-Te as fontes eternas,
Esperando, confiantes, em Tua misericórdia.
9 De nós
mesmos, Senhor, nada podemos.
Sem Ti, somos frondes decepadas
Que o fogo da experiência
Tortura ou transforma…
10 Unidos,
no entanto, ao Teu Amor,
Somos continuadores gloriosos
De Tua Criação Interminável.
11 Somos
alguns milhares
Neste campo terrestre;
E, antes de tudo,
Louvamos-Te a grandeza
Que não nos oprime a pequenez…
12 Dilata-nos
a percepção diante da vida,
Abre-nos os olhos
Enevoados pelo sono da ilusão,
Para que divisemos Tua glória sem fim!…
13 Desperta-nos docemente
o ouvido,
A fim de percebermos o cântico
De tua sublime eternidade.
14 Abençoa as sementes de
sabedoria
Que os teus mensageiros esparziram
No campo de nossas almas;
Fecunda-nos o solo interior,
Para que os divinos germens não pereçam.
15 Sabemos,
Pai,
Que o suor do trabalho
E a lágrima da redenção
Constituem adubo generoso
À floração de nossas sementeiras;
Todavia,
Sem Tua bênção,
O suor enlanguesce
E a lágrima desespera…
16 Sem Tua mão compassiva,
Os vermes das paixões
E as tempestades de nossos vícios
Podem arruinar-nos a lavoura incipiente…
17 Acorda-nos,
Senhor da Vida,
Para a luz da oportunidade presente;
Fortalece-nos as mãos,
Para que os atritos da luta não as inutilizem;
18 Guia-nos os pés para
o supremo bem;
Reveste-nos o coração
Com a Tua serenidade paternal,
Robustecendo-nos a resistência!
19 Poderoso Senhor,
Ampara-nos a fragilidade,
Corrige-nos os erros,
Esclarece-nos a ignorância,
Acolhe-nos em Teu amoroso regaço.
20 Cumpram-se,
Pai Amado,
Os Teus desígnios soberanos,
Agora e sempre.
Assim seja.
|
21 Finda a comovente
rogativa, o orientador baixou os olhos nevoados de pranto, e então vi,
dominado de júbilo, que da incognoscível altura uma claridade diferente
caía sobre nós, em jorros cristalinos.
Partículas semelhantes a prata eterizada choviam no recinto, infiltrando-se nas raízes das árvores mais próximas, lá fora.
22 Ignoto encantamento fizera-se
em minhalma. Ao contato dos eflúvios divinos, reparei que minhas forças
gradualmente serenavam, em receptividade maravilhosa. Em torno, pairavam
as mesmas notas de alegria e de beleza, pois a calma e a ventura transpareciam
de todos os rostos, voltados, extáticos, para o Instrutor, em redor do
qual se mostravam mais intensas as ondas de luz celeste.
23 Sublime felicidade inundava-me
todo o ser, mergulhara-me em indefinível banho de energias renovadoras.
Meus olhos foram impotentes para conter as lágrimas felizes que as formosas cintilações me destilavam das fontes ocultas do espírito. E, antes que o nobre mentor retomasse a palavra, agradeci em silêncio a resposta do Céu, reconhecendo na prece, mais uma vez, não só a manifestação da reverência religiosa, senão também o recurso de acesso aos inesgotáveis mananciais do Divino Poder.
André Luiz
[1] [No capítulo 15, André Luiz descreve outra reunião, como esta, dedicada a católicos e evangélicos.]