1.
Estavam prestes a terminar minhas possibilidades de estudo, em companhia
de Calderaro, quando, na véspera da prometida visita às cavernas de
sofrimento, o estimado Assistente me convidou a ouvir a palavra do Instrutor
Eusébio que, naquela noite, se dirigiria a algumas centenas de companheiros
católicos-romanos e protestantes das Igrejas reformadas, ainda em trânsito
nos serviços da Esfera carnal.
2 — São irmãos menos dogmáticos
e mais liberais que, em momentos de sono, se tornam suscetíveis de nossa
influência mais direta. Pelas virtudes de que são portadores, tornam-se
dignos das diretrizes dos Planos mais altos.
3 Não ocultei a estranheza
que me tomara de assalto ante a informação, mas Calderaro ajuntou sem
demora:
— Importa compreender que a Proteção Divina desconhece privilégios.
4 A graça celestial
é como o fruto que sempre surge na fronde do esforço terrestre: onde
houver colaboração digna do homem, aí se acha o amparo de Deus. 5
Não é a confissão religiosa que nos interessa em sentido fundamental,
senão a revelação de fé viva, a atitude positiva da alma na jornada
de elevação. 6 Claro
é que as escolas da crença variam, situando-se cada uma em um círculo
diferente. Quanto mais rudimentar é o curso de entendimento religioso,
maior é a combatividade inferior, que traça fronteiras infelizes de
opinião e acirra hostilidades deploráveis, como se Deus não passasse
dum ditador em dificuldades para manter-se no poder. 7
Constituindo o Espiritismo evangélico prodigioso núcleo de compreensão
sublime, é razoável seja considerado uma escola cristã mais elevada
e mais rica. Possuindo tamanhas bênçãos de conhecimento e de amor, cumpre-lhe
estendê-las a todos os companheiros, ainda quando esses companheiros
se mostrem rebeldes e ingratos em consequência da ignorância de que
ainda não conseguiram afastar-se. 8
A compaixão de Jesus poderia ser medida pelo estado de evolução daqueles
que o seguiam de perto. Diante da mente encarcerada no vaidoso intelectualismo
de muitas personalidades importantes de sua época, vemo-lo inflamado
de energia divina; pelo contrário, em Jerusalém, no último dia, à frente
do populacho exaltado e ignorante, — arraigado embora aos princípios da
crença, — encontramo-lo silencioso e humilde, solicitando perdão para
quantos o feriam.
9 Imprimindo inflexão mais
carinhosa à palavra, acrescentou, bondoso:
— Não nos esqueçamos que, acima de tudo, nos empenhamos numa obra educativa.
10 Salvar alguém,
ou socorrê-lo, não significa subtrair o interessado à oportunidade de
luta, de alçamento ou de edificação. Constitui amparo fraternal, para
que desperte e se levante, entrando na posse do equilíbrio que caracteriza
aquele que o ajudou. 11
O Supremo Senhor não se compraz com o possuir filhos miseráveis e infelizes
na Criação; espalha bênçãos e dons, riquezas e facilidades eternas a
mancheias, esperando apenas que cada um de nós se disponha a reger com
sabedoria o patrimônio próprio. Como vemos, todos os setores do serviço
espiritual reclamam a divina assistência.
12 Antes de mais
amplas elucidações no referente ao assunto, alcançamos o campo tranquilo,
onde o nobre emissário se fazia ouvir.
De relance, observei que a reunião, agora, n
não se assinalava por grande número de colegas encarnados, que ali se
contavam por poucas centenas, assistidos por quantidade considerável
de cooperadores da nossa Esfera de ação.
O luar balsamizava docemente o arvoredo, que se inclinava à passagem
do favônio.
13 Imponente, pela claridade
sublime que lhe aureolava a figura veneranda, Eusébio, ao que me pareceu,
havia iniciado a preleção desde muito. Extasiados, os ouvintes registavam-lhe
o verbo tocado de luz celestial, com pasmo indisfarçável a lhes alterar
as fisionomias. Confundidos e ajoelhados, em grande número, na relva
fresca, sentiam-se repentinamente transportados ao paraíso…
2.
O Instrutor, envolvido em safirinos reflexos, falava com irresistível
poder de atração:
2 — “Se o patrimônio
da fé religiosa representa o indiscutível fator de equilíbrio mental
do mundo, que fazeis de vosso tesouro, esquecendo-lhe a utilização,
numa época em que a instabilidade e a incerteza vos ameaçam todas as
instituições de ordem e de trabalho, de entendimento e de construção?
3 Não vos assombra,
porventura, acordando-vos a consciência, a borrasca renovadora que refunde
princípios e nações? Supondes possível uma era de paz exterior, sem
a preparação interior do homem no espírito de observância e aplicação
das Leis Divinas? Por admitir semelhante contrassenso, a máquina, filha
de vossa inteligência, vos anula as possibilidades de mais alta incursão
no reino do Espírito Eterno.
4 “Ser cristão, outrora, simbolizava
a escolha da experiência mais nobre, com o dever de exemplificar o padrão
de conduta consagrado pelo Mestre Divino. Constituía ininterrupto combate
ao mal com as armas do bem, manifestação ativa do amor contra o ódio,
segurança de vitória da luz contra as sombras, triunfo inconteste da
paz construtiva sobre a discórdia derruidora.
5 “Ante o moloque
do Estado Romano, convertido em imperialismo e corrupção, os sectários
do Evangelho não se expunham a polêmicas mordazes, não se enredavam
nas teias do personalismo dissolvente, não dilapidavam possibilidades
preciosas, a erigir fronteiras dogmáticas… Entreamavam-se em nome do
Senhor, e ofereciam a própria vida, em penhor de gratidão Àquele que
não trepidava em seguir para a Cruz, por amor a todos nós. 6
Erguiam os seus mais sublimes santuários na comunhão com os princípios
santificantes que os identificavam com o Salvador do Mundo. 7
Sabiam perder vantagens transitórias, para conquistar os imperecíveis
tesouros celestiais. Sacrificavam-se uns pelos outros, na viva demonstração
do devotamento fraternal. Repartiam os sofrimentos e multiplicavam os
júbilos entre si. Morriam em testemunhos angustiosos, para alcançar
a vida eterna. 8 Guerreavam
os desequilíbrios de sua época e de seus contemporâneos, não a golpes
de maldição, nem a fio de espada, mas pela prática da renunciação, submetendo-se
a disciplinas cruéis e revelando, nas palavras, nos pensamentos e nos
atos, a mensagem sublime do Mestre que lhes renovara os corações.
9 “Entretanto, herdeiros
que sois daqueles heróis anônimos, que transitaram nas aflições, de
espírito edificado nas promessas do Cristo, que fizestes vós da esperança
transformadora, da confiança sem vacilação? Onde colocastes a fé viva
que os vossos patriarcas adquiriram a preço de sangue e de lágrimas?
Que é do espírito de fraternidade que assinalava os aprendizes da Boa-Nova?
Enriquecidos pelas graças do Céu, pouco a pouco olvidastes as portas
da Revelação Divina em troca das comodidades humanas.
10 “Construístes, entre vós
mesmos, barreiras dificilmente transponíveis.
“Intoxica-vos o dogmatismo, corrompe-vos a secessão. Estreitas interpretações do Plano divino vos obscurecem os horizontes mentais.
11 “Abris hostilidade franca,
em nome do Reino de Deus que significa amor universal e união eterna.
“Conspurcais a fonte das bênçãos, amaldiçoando-vos uns aos outros,
invocando, para isso, o Príncipe da Paz, que, para ajudar-nos, não hesitou
ante a própria morte afrontosa.
12 “A que delírio chegastes,
estabelecendo mútua concorrência à imaginária obtenção de privilégios
divinos?
“Antigamente, os companheiros do Cristo disputavam a oportunidade de servir; no entanto, na atualidade, procurais as mínimas ocasiões de serdes servidos.
13 “Reverenciais
do Senhor a Luz dos Séculos, e mantendes-vos nas sombras do nefando
egoísmo.
“Proclamais n’Ele a glória da paz, e incentivais a guerra fratricida, em que homens e instituições se trucidam reciprocamente.
14 “Recorreis ao Divino Mestre,
centralizando em sua infinita bondade a fonte inesgotável do amor; entretanto,
cultivais a desarmonia no recôndito do ser.
15 “Por que estranhas convicções
supondes conquistar o paraíso, à força de afirmativas labiais?
“Esquecestes que o verbo, divino em seus fundamentos, é sempre criador? Como
admitir a redenção ao preço de simples palavras a que nenhum significado
objetivo emprestais pelas atitudes?
16 “Todavia, é imperioso reconhecer
o caráter sublime de vossa tarefa no mundo.
“Jesus fundou a Religião do Amor Universal, que os sacerdotes políticos dividiram em várias escolas orientadas pelo sectarismo injustificável. Mau grado esse erro lastimável dos homens, a essência dos vossos princípios é aquela mesma que sustentou a coragem e a nobreza dos trabalhadores sacrificados nos primeiros dias do Cristianismo.
17 “Porque alguns missionários
das verdades religiosas olvidassem a Paternidade Divina e se permitissem
desmandos da autoridade, preferindo a opressão e a tirania, não sois
menos responsáveis, agora, pelos sagrados depósitos que Jesus nos confiou,
destinados aos serviços de elevação humana e de santificação da Terra.
18 “O Evangelho, em suas bases,
guarda a beleza do primeiro dia. Sofisma algum conseguiu empanar o brilho
de “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”… ( † )
19 “Perante os desafios
do Céu, credes, acaso, servir a Deus, encarcerando os serviços da fé
nos templos suntuosos? A pompa do culto exterior só faz realçar o desatino
de vossas perigosas ilusões acerca da vida espiritual.
20 “Infrutífera seria a divina
missão do Mestre, se a Boa-Nova permanecesse circunscrita às trincheiras
sectárias, onde presunçosamente vos refugiais, com o objetivo de inflamar
a execranda fogueira das hostilidades simuladamente cordiais.
21 “Não encontrastes outra
fórmula de externar a crença, além da concorrência menos digna?
“Em vão ergueis castelos de opinião para o verbalismo sem obras, porque, se a morte surpreende o materialista revel, descortinando-lhe o realismo da vida, o túmulo abre também o tribunal da reta justiça a quantos se valeram da religião para melhor dissimular a indiferença que lhes povoa o mundo íntimo.
22 “Não julgueis esteja a fé
consagrada ao menor esforço.
“Qual ocorre à ciência, a religião tem o seu trabalho específico no mundo. Força equilibrante do pensamento, seus servidores são chamados a colaborar na harmonia da mente humana.
23 “Na atuação da
fé positiva reside a força reguladora das paixões, dos impulsos irresistíveis
da animalidade de que todos emergimos no processo evolucionário que
nos preside à existência.
24 “Jesus, por isto, não confinou
seus ensinamentos ao círculo estreito dos templos de pedra… Reverenciou,
em verdade, os monumentos que recordassem os “lugares santos da oração”,
consagrados às manifestações superiores do espírito; entretanto, não
se cristalizou nas atitudes adorativas: viveu conquistando amigos para
o Reino do Céu.
25 “Não impôs aos seus seguidores
normas rígidas de ação: pedia-lhes amor e entendimento, fé sincera e
bom ânimo para os serviços edificantes.
26 “Aproximando-se
de Madalena, não extravaga em baldas conversações: interessa-lhe o coração
no sublime apostolado renovador. Visitando Zaqueu, abençoa-lhe o esforço
nobre e construtivo. Dirigindo-se à mulher samaritana, não desce às
contendas inúteis: impressiona-a pelo contato de sua alma divina, fazendo-lhe
abandonar o velho cântaro da fantasia, para que busque as fontes eternas.
27 Convivendo com cegos
e leprosos, loucos e doentes de todos os matizes, exemplificou a vida
social, baseada na fraternidade mais pura e nos mais elevados estímulos
à santificação. Por fim, imolado na cruz, seus dois últimos companheiros
eram ladrões confessos, aos quais não hesitou dirigir a palavra fraterna,
inflamada de amor.
28 “Como invocar-lhe
o nome para justificar os desvarios da separação por motivos de fé?
Como apoiar-se no Amigo de Todos para deflagrar embates de opinião,
acendendo fogueiras de ódio em prejuízo da solidariedade comum que Ele
exemplificou até ao supremo sacrifício? Não será denegrir-lhe a memória,
difundir a discórdia em seu nome?”
29 Notei que as palavras do
orientador provocavam funda impressão. A maioria dos ouvintes chorava
em comoção irrepressível, sentindo-se tocada pelo Juízo Celeste.
30 Eusébio, que mantinha presa
a atenção geral, prosseguiu, impávido:
— “Não se vos reclama a transferência do depósito espiritual da crença veneranda. Em todos os setores, onde a sementeira do Cristo desabrocha, é possível honrar a Divina Lei, gravando-lhe os parágrafos sublimes no coração. O que se pede do vosso espírito de crença é o aproveitamento das bênçãos celestiais esparzidas sobre vós em caudalosas correntes de luz.
31 “Não limiteis,
portanto, a demonstração da confiança no Altíssimo aos cerimoniais do
culto externo. Varrei a indiferença que vos enregela as basílicas suntuosas.
Convertamo-nos em verdadeiros irmãos uns dos outros. Transformemos a
igreja no doce lar da família cristã, quaisquer que sejam as nossas
interpretações. 32 Esqueçamos
a falsa afirmativa de que os tempos apostólicos passaram para sempre.
Cada aprendiz do Evangelho guarda, na própria vida, um reduto destinado
ao culto vivo do Divino Mestre, perante o qual escoa a multidão dos
necessitados, todos os dias…
33 “Amando e socorrendo, crendo
e agindo, Jesus amparou a mente desequilibrada do mundo greco-romano,
infundindo-lhe vida nova, em favor da Humanidade mais feliz. Assim,
igualmente, cada discípulo da fé redentora pode e deve cooperar no reerguimento
dos irmãos frágeis e vacilantes.
34 “Fugi ao farisaísmo dos
tempos modernos que se recusa ao auxílio fraternal, em nome do gênio
satânico do cisma dogmático. Jesus nunca foi pregador da desarmonia,
jamais endossou a vaidade petulante dos que pelos lábios se declaram
puros, mantendo o coração atascado no lodo miasmático do orgulho e do
egoísmo fatais!
35 “Mobilizemos nossa confiança
no Todo-Misericordioso, dilatando-lhe o reino bendito de redenção.
“Aguardar o Céu, menosprezando a Terra, é obra de insensatez.
“Nenhum de nós peitará a Justiça Divina, embora permaneçais cultivando, muitas vezes, a ideia de um comércio ridículo com a Divindade.
36 “Se um lavrador jamais é
postado sem obrigações diretas diante do matagal inculto ou do pântano
perigoso, como permanecer sem deveres imediatos junto às paisagens de
crime e treva, de inquietação e sofrimento?!…
“O irmão caído é nossa carga preciosa, a dificuldade é nosso incentivo santo, a dor nossa escola purificadora.
37 “Abracemo-nos, pois, uns
aos outros, em nome do Cordeiro de Deus, que nos reformou a mente, alçando-a
a Planos superiores pela ascensão gloriosa, através do sacrifício.
“Somente assim, meus amigos, é possível atender à elevada destinação que nos cabe.
38 “Diante do mundo periclitante,
alucinado por ambições rasteiras e dominado pelo ódio e pela miséria,
sequências das guerras incessantes e aniquiladoras, harmonizemo-nos
em Jesus-Cristo, a fim de equilibrarmos a Esfera carnal.
39 “Sombras perturbadoras vagueiam
em torno de vossos passos e de vossas instituições, em ronda sinistra.
“Evitai a subversão dos valores espirituais, afugentai as trevas que vos ameaçam as organizações político-religiosas. Temei a ciência que estadeie sem a sabedoria, livrai-vos do raciocínio que calcula sem amor, revisai a fé para que seus impulsos não se desordenem, à míngua de edificação.
40 “A Crosta da Terra é atualmente
um campo de batalha mais áspera, mais dolorosa…
“Despertai a consciência adormecida e afeiçoai-vos à Lei Divina, olvidando o cativeiro multissecular da ilusão.
41 “A salvação é contínuo trabalho
de renovação e de aprimoramento.
“Ao mundo atormentado proclamemos a nossa fé em Cristo Jesus para sempre!…”
42 Eusébio, ao terminar, estava
aureolado de prodigiosas emissões de luz.
A assembleia prosternada mostrava semblantes lívidos de estupefação.
43 Enorme grupo de colaboradores
de nosso Plano elevou a voz em harmonias, entoando comovente cântico
de glorificação ao Supremo Senhor.
As melodiosas notas do hino perdiam-se, ao longe, no arvoredo distante, nas asas de suave brisa…
44 Terminados os serviços da
reunião, reparei que os amigos encarnados, sob o amparo de colegas das
nossas atividades socorristas, não se afastaram animados e otimistas,
porque muitos deles, compreendendo, talvez com mais clareza, fora do
veículo denso da experiência física, os erros da crença transviada,
se retiravam cabisbaixos, soluçando…
André Luiz
[1]
[No 1º capítulo desse
livro há a descrição de outra reunião, no mesmo recinto natural.]