1.
Dispúnhamo-nos à despedida, quando simpática senhora desencarnada abeirou-se
de nós, cumprimentando o Assistente com respeitosa afetividade.
2 Áulus incumbiu-se da apresentação.
— É a irmã Teonília, uma de nossas diligentes companheiras no trabalho assistencial.
3 A nova amiga correspondeu-nos
às saudações com gentileza e explicou ao nosso orientador o objetivo
que a trazia.
4 Contou, então, que Anésia,
devotada companheira da instituição em que nos achávamos, sorvia o fel
de dura prova.
Além das preocupações naturais com a educação das três filhinhas e com a assistência imprescindível à mãezinha doente, em vésperas de desencarnação, sofria tremenda luta íntima, de vez que Jovino, o esposo, vivia agora sob a estranha fascinação de outra mulher. Esquecera-se, invigilante, das obrigações no santuário doméstico. Parecia, de todo, desinteressado da companheira e das filhas. Como que voltara às estroinices da primeira juventude, qual se nunca houvesse abraçado a missão de pai.
Dia e noite, deixava-se dominar pelos pensamentos da nova mulher que
o enlaçara na armadilha de mentirosos encantos.
Em casa, nas atividades da profissão ou na via pública, era ela, sempre ela a senhorear-lhe a mente desprevenida.
Transformara-se o mísero num obsidiado autêntico, sob a constante atuação da criatura que lhe anestesiava o senso de responsabilidade para consigo mesmo.
5 Não poderia Áulus interferir?
Não seria justo afastar semelhante influência, como se extirpa uma chaga com o socorro operatório?
6 O Assistente ouviu-a com
calma e falou, conciso:
— Conheço Anésia e nela estimo admirável irmã. Há meses, não disponho
de oportunidade para visitá-la como venho desejando. Decerto, não me
negarei ao concurso fraterno, entretanto, não será conveniente estabelecer
medidas drásticas sem uma auscultação do caso em si. 7
Sabemos que a obsessão entre desencarnados ou encarnados, sob qualquer
prisma em que se mostre, é uma enfermidade mental, reclamando por vezes
tratamento de longo curso. 8
Quem sabe se o pobre Jovino não estará na condição de um pássaro hipnotizado,
não obstante o corpanzil que lhe confere aparências de robustez no Plano
físico?
9 — Do que posso perceber,
— anotou a interlocutora, — vejo tão somente um homem comprometido em
trabalho digno, ameaçado por perversa mulher…
— Oh! não! — Atalhou o nosso instrutor condescendente, — não a classifique
com semelhante adjetivação. Acima de tudo, é imperioso aceitá-la por
infeliz irmã.
10 — Sim, sim… concordo, —
exclamou Teonília, reajustando-se. — De qualquer modo, rogo-lhe a caridosa
intercessão. Anésia tem sido uma colaboradora providencial em nossa
tarefa. Não me sentiria satisfeita, cruzando os braços…
— Faremos quanto se nos afigure viável no círculo de nossas possibilidades, contudo, é imprescindível analisar o passado para concluir sobre as raízes da ligação indébita a que nos reportamos.
11 E, imprimindo grave tonalidade
à voz, o Assistente enunciou:
— Estará descendo Jovino a impressões do pretérito? Não será uma provação que
o nosso amigo terá traçado à própria consciência, com finalidade redentora,
e à qual não sabe agora como resistir?
12 Teonília esboçou um gesto
de humildade silenciosa, enquanto Áulus rematava, afagando-lhe os ombros:
— Guardemos otimismo e confiança. Amanhã, à noitinha, conte conosco no lar de Anésia. Sondaremos, de perto, quanto nos caiba fazer.
Nossa amiga, expressou reconhecimento e despediu-se sorrindo.
2.
A sós conosco, durante o regresso ao nosso templo de trabalho e de estudo,
Áulus salientou a nossa oportunidade de prosseguir observando. 2
O assunto prendia-se naturalmente a problema de influenciação e teríamos
ensejo de examinar fenômenos mediúnicos importantes, na esfera vulgar
da experiência de muitos.
3 Com efeito, em momento preestabelecido,
reunimo-nos no dia seguinte para a excursão programada.
Atingimos a estação de destino ao anoitecer.
Teonília aguardava-nos no pórtico de domicílio confortável, sem ser luxuoso.
Pequeno roseiral à entrada dizia sem palavras dos belos sentimentos dos moradores.
Guiados por nossa amiga, alcançamos o interior doméstico.
4 A família entregava-se à
refeição.
Uma senhora jovem servia atenciosamente a um cavalheiro maduro e bem-posto, ladeado por três meninas, das quais a mais moça revelava a graça primaveril dos catorze a quinze anos.
5 Claro que o entendimento
da véspera dispensava novas informações. Áulus, no entanto, esclareceu,
minucioso:
— Anésia e Jovino acham-se aqui com as filhinhas Marcina, Marta e Márcia.
6 A palestra familiar desdobrava-se
afetuosa, mas o dono da casa parecia contrafeito. Doces apontamentos
das meninas não lhe arrancavam o mais leve sorriso. Contudo, enquanto
o genitor timbrava em mostrar-se aborrecido, a mãezinha se fazia mais
terna e mais contente, incentivando a conversação das duas filhas mais
velhas que comentavam episódios humorísticos do bazar de quinquilharias
em que trabalhavam juntas.
7 Findo o jantar, a senhora
dirigiu-se à mais moça e recomendou com carinho:
— Márcia, minha filha, volte à vovó e espere por mim. Nossa doente não deve estar a sós.
A pequena obedeceu de bom grado e, transcorridos alguns instantes, Marcina e Marta demandaram sala próxima, em palestra mais íntima.
8 Dona Anésia reajustou a
copa e a cozinha, operando em silêncio, enquanto o marido se esparramava
numa poltrona, devorando os jornais vespertinos. Reparando, todavia,
que o esposo se levantara para sair, endereçou-lhe olhar inquieto e
indagou, delicadamente:
— Poderemos, acaso, esperar hoje por você?
— Hoje? Hoje?… — Redarguiu o interlocutor, sem fixá-la.
9 E o diálogo prosseguiu,
animadamente.
— Sim, um pouco mais tarde; faremos nossas preces em conjunto…
— Preces? Para que isso?
— Sinceramente, Jovino, creio no poder da oração e suponho que nunca precisamos tanto como agora de usá-la em favor de nossa tranquilidade doméstica.
— Não concordo com a sua opinião.
10 E, sarcástico, a exibir
estranho sorriso, continuou:
— Não disponho de tempo para lidar com os seus tabus. Tenho compromissos inadiáveis. Estudarei, junto de amigos, excelente negócio.
11 Nesse instante, contudo,
surpreendente imagem de mulher surgiu-lhe à frente dos olhos, qual se
fora projetada sobre ele a distância, aparecendo e desaparecendo com
intermitências.
Jovino fez-se mais distraído, mais enfadado.
Fitava agora a esposa com indiferença irônica, demonstrando inexcedível dureza espiritual.
12 Intrigados com o fenômeno
sob nossa vista, ouvimos Anésia que, enlaçada por Teonília, dizia quase
suplicante:
— Jovino, você não concorda que temos estado mais ausentes um do outro, quando precisamos estar mais juntos?
— Ora, ora! Deixe de pieguices! Sua preocupação seria própria, há vinte anos,
quando não éramos senão tolos colegiais!
13 — Não, não é bem isso… Inquietam-me
nosso lar e nossas filhas…
— De minha parte, não vejo como torturar-me. Creio que a casa está bem provida e não estou dormindo sobre nossos interesses familiares. Meus negócios estão em movimento. Preciso de dinheiro e, por essa razão, não posso perder tempo com beatices e petitórios, endereçados a um Deus que, sem dúvida, deve estar muito satisfeito em morar no Céu, sem lembrar-se deste mundo…
14 Anésia dispunha-se a revidar,
no entanto, a atitude do marido era tão flagrantemente escarnecedora
que, decerto, julgou mais oportuno silenciar.
O chefe da família, depois de apurar o nó da gravata vivamente colorida, bateu a porta estrepitosamente sobre os próprios passos e retirou-se.
15 A companheira humilhada
caiu em pranto silencioso sobre velha poltrona e começou a pensar, articulando
frases sem palavras:
— “Negócios, negócios… Quanta mentira sobre mentira! Uma nova mulher, isso sim!… Mulher sem coração que não nos vê os problemas… Dívidas, trabalhos, canseiras! Nossa casa hipotecada, nossa velhinha a morrer!… Nossas filhas cedo arremessadas à luta pela própria subsistência!”
3.
Enquanto as reflexões dela se faziam audíveis para nós, irradiando-se
na sala estreita, vimos de novo a mesma figura de mulher que surgira
à frente de Jovino, aparecendo e reaparecendo ao redor da esposa triste,
como que a fustigar-lhe o coração com invisíveis estiletes de angústia,
porque Anésia acusava agora indefinível mal-estar.
2 Não via com os olhos a estranha
e indesejável visita, no entanto, assinalava-lhe a presença em forma
de incoercível tribulação mental. De inesperado, passou da meditação
pacífica a tempestuosos pensamentos.
3 — “Lembro-me dela,
sim, — refletia agora em franco desespero, — conheço-a! É uma boneca
de perversidade… Há muito tempo vem sendo um veículo de perturbação
para a nossa casa. Jovino está modificado… Abandona-nos, pouco a pouco.
Parece detestar até mesmo a oração… Ah! que horrível criatura uma adversária
qual essa, que se imiscui em nossa existência à maneira da víbora traiçoeira!
Se eu pudesse haveria de esmagá-la com os meus pés, mas hoje guardo
uma fé religiosa, que me forra o coração contra a violência…”
4 À medida, porém, que Anésia
monologava intimamente em termos de revide, a imagem projetada de longe
abeirava-se dela com maior intensidade, como que a corporificar-se no
ambiente para infundir-lhe mais amplo mal-estar.
5 A mulher que empolgava o
espírito de Jovino ali surgia agora visivelmente materializada aos nossos
olhos.
E as duas, assumindo a posição de francas inimigas, passaram à contenda mental.
Lembranças amargas, palavras duras, recíprocas acusações.
A esposa atormentada passou a sentir desagradáveis sensações orgânicas.
O sangue afluía-lhe com abundância à cabeça, impondo-lhe aflitiva tensão cerebral.
Quanto mais se lhe dilatavam os pensamentos de revolta e amargura, mais se lhe avultava o desequilíbrio físico.
6 Teonília afagou-a, carinhosa,
e informou ao nosso orientador:
— Há muitas semanas diariamente se repete o conflito. Temo pela saúde de nossa companheira.
7 Áulus deu-se pressa em aplicar-lhe
recursos magnéticos de alívio e, desde então, as manifestações estranhas
diminuíram até completa cessação.
8 Efetivado o reajustamento
relativo de Anésia e percebendo-nos a curiosidade, o Assistente esclareceu:
— Jovino permanece atualmente sob imperiosa dominação telepática, a que se rendeu facilmente, e, considerando-se que marido e mulher respiram em regime de influência mútua, a atuação que o nosso amigo vem sofrendo envolve Anésia, atingindo-a de modo lastimável, porquanto a pobrezinha não tem sabido imunizar-se com os benefícios do perdão incondicional.
4.
Hilário, intrigado, perguntou:
— Examinamos, porém, um fenômeno comum?
2 — Intensamente generalizado.
É a influenciação de almas encarnadas entre si que às vezes, alcança
o clima de perigosa obsessão. 3
Milhões de lares podem ser comparados a trincheiras de luta, em que
pensamentos guerreiam pensamentos, assumindo as mais diversas formas
de angústia e repulsão.
4 — E poderíamos enquadrar
o assunto nos domínios da mediunidade?
— Perfeitamente, cabendo-nos acrescentar ainda que o fenômeno pertence
à sintonia. Muitos processos de alienação mental guardam nele as origens.
5 Muitas vezes, dentro
do mesmo lar, da mesma família ou da mesma instituição, adversários
ferrenhos do passado se reencontram. Chamados pela Esfera Superior ao
reajuste, raramente conseguem superar a aversão de que se veem possuídos,
uns à frente dos outros, e alimentam com paixão, no imo de si mesmos,
os raios tóxicos da antipatia que, concentrados, se transformam em venenos
magnéticos, suscetíveis de provocar a enfermidade e a morte. 6
Para isso, não será necessário que a perseguição recíproca se expresse
em contendas visíveis. Bastam as vibrações silenciosas de crueldade
e despeito, ódio e ciúme, violência e desespero, as quais, alimentadas,
de parte a parte, constituem corrosivos destruidores.
5.
Finda ligeira pausa, o Assistente continuou:
2 — O pensamento exterioriza-se
e projeta-se, formando imagens e sugestões que arremessa sobre os objetivos
que se propõe atingir. n 3
Quando benigno e edificante, ajusta-se às Leis que nos regem, criando
harmonia e felicidade, todavia, quando desequilibrado e deprimente,
estabelece aflição e ruína. 4
A química mental vive na base de todas as transformações, porque realmente
evoluímos em profunda comunhão telepática com todos aqueles encarnados
ou desencarnados que se afinam conosco.
6.
— E como solucionar o problema da antipatia contra nós? — Indagou meu
companheiro com interesse.
2 Áulus sorriu e respondeu:
— A melhor maneira de extinguir o fogo é recusar-lhe combustível. 3
A fraternidade operante será sempre o remédio eficaz, ante as perturbações
dessa natureza. 4 Por
isso mesmo, o Cristo aconselhava-nos o amor aos adversários, o auxílio
aos que nos perseguem e a oração pelos que nos caluniam, ( † )
como atitudes indispensáveis à garantia de nossa paz e de nossa vitória.
5 Nesse instante, porém, Anésia
consultara o relógio e reerguera-se.
Vinte horas.
Era o momento preciso de suas preces junto da mãezinha doente, e acompanhamo-la, atenciosos, a fim de igualmente orarmos.
André Luiz
[1] [Vide: Formas-pensamentos.]