1.
Em estreito aposento, uma senhora, aparentando setenta anos de idade,
acusava aflitiva dispneia.
2 A pequena Márcia, agitando
um leque improvisado, propiciava-lhe ar fresco.
Ao lado da enferma, porém, uma entidade de aspecto desagradável exibia estranha máscara de perturbação e sofrimento, imantando-se a ela e agravando-lhe os tormentos físicos.
Tratava-se de um homem desencarnado, demonstrando no olhar a alienação mental evidente.
3 Enquanto Anésia se acomodava,
junto à doente, com inexcedível ternura, procurando esquecer-se de si
mesma para ajudá-la, Áulus informou, prestimoso:
— Temos aqui nossa irmã Elisa, em avançado processo liberatório… Vive as últimas horas no corpo carnal…
4 — E este homem de triste
apresentação que lhe guarda a cabeceira? — Perguntou Hilário, indicando
a entidade que não nos via.
— Este é um infortunado filho de nossa veneranda amiga, há muitos anos distanciado da experiência física. Teve a infelicidade de chafurdar no vício da embriaguez e foi assassinado numa noite de extravagância. A genitora, porém, dele se recorda, como a um herói, e, a evocá-lo incessantemente, retém o infeliz ao pé do próprio leito.
— Ora essa! Por quê?
5 O Assistente modificou o
tom de voz e recomendou-nos serenidade. Analisaríamos o caso em momento
oportuno. O problema de Anésia pedia colaboração imediata.
Realmente, a pobre senhora, de fisionomia fatigada, acariciava a enferma com palavras de amor, mas Dona Elisa parecia aloucada, distante…
6 Anésia desfez-se em lágrimas.
— Por que chorar, mãezinha? Vovó não está pior…
A voz meiga de Márcia ressoou no quarto, modulada com inefável carinho.
A menina, que nem de longe poderia perceber a tortura materna, enlaçou a genitora convidando-a à oração.
7 Dona Anésia desejou a presença
das filhas mais velhas, contudo, Marcina e Marta alegaram que o natalício
de uma companheira de trabalho lhes impunha a necessidade de sair por
alguns minutos.
A dona da casa sentou-se rente à enferma e, acompanhada pela atenção da filhinha, pronunciou sentida prece.
8 À medida que orava, funda
modificação se lhe imprimia ao mundo interior. Os dardos de tristeza,
que lhe dilaceravam a alma, desapareceram ante os raios de branda luz
a se lhe exteriorizarem do coração. Desde esse instante, qual se houvera
acendido uma lâmpada em plena obscuridade, vários desencarnados sofredores
penetraram o quarto, abeirando-se dela, à maneira de doentes, solicitando
medicação.
9 Nenhum deles nos assinalava
a presença e, diante da nossa curiosidade silenciosa, Áulus aclarou:
— São companheiros que trazem ainda a mente em teor vibratório idêntico
ao da existência na carne. 10
Na fase em que estagiam, mais depressa se ajustam com o auxílio dos
encarnados, em cuja faixa de impressões ainda respiram. Quantos se encontram
em semelhante estado, dentro do raio de ação das preces de nossa amiga,
recebem o toque de espiritualidade que emana do serviço dessa natureza
e, quando sensíveis ao bem ou sedentos de renovação interior, dão-se
pressa em responder ao apelo de elevação que os visita, aderindo à oração,
de cujo sublime poder recolhem esclarecimento e consolo, amparo e benefício.
— Quanto valor num insignificante ato de fé!…
11 O Assistente afagou a fronte
inquieta de Hilário e concordou:
— Sim o homem terrestre criou enormes complicações ao seu caminho, contudo, a morte constrange-o a regressar aos alicerces da simplicidade para a regeneração da própria vida.
12 A essa altura, Anésia abriu
precioso livro de meditações evangélicas, acreditando agir ao acaso,
mas o tema, em verdade, foi escolhido por Teonília, que lhe vigiava,
bondosa, os movimentos.
Com surpresa, a dona da casa notou que o texto se reportava à necessidade do trabalho e do perdão.
13 Dócil, correspondendo à
influenciação da mentora espiritual, a esposa de Jovino começou a falar
sabiamente sobre os impositivos do serviço e da tolerância construtiva,
em favor da edificação justa do bem.
A voz dela, fluente e suave, transmitia, sem que ela mesma percebesse, o pensamento de Teonília que, com isso, buscava socorrer-lhe o coração atormentado.
14 Numa pausa mais longa, Márcia
reparou com inteligência:
— Continue, mãezinha! Continue… Tenho a ideia de que nos achamos à frente de enorme multidão…
15 E sem refletir que estava
pregando, acima de tudo, para si mesma, Anésia adiantou:
— Sim, minha filha, estamos sozinhas porque a vovó, fatigada, não nos ouve. Isso, porém, é só na aparência. Muitos irmãos desencarnados, decerto, permanecem aqui conosco e acompanham nosso culto de oração.
16 E prosseguiu nos comentários
que, efetivamente, acendiam novo ânimo nas almas presentes, ávidas de
luz, tanto quanto sequiosas de paz e refazimento.
Terminada a tarefa, Márcia despediu-se da mãezinha com um beijo.
O serviço escolar da manhã exigia o repouso mais cedo.
17 Depois de afetuosas recomendações
à menina, viu-se Anésia a sós com a genitora semi-inconsciente.
Acariciou-lhe o rosto pergaminhado e pálido, acomodou-lhe a cabeça suarenta nos travesseiros e estirou-se ao lado dela, como que procurando pensar, pensar…
2.
Áulus fez significativo gesto a Teonília e exclamou:
— Este é o momento exato.
2 Cuidadosamente, começaram
ambos a aplicar-lhe passes sobre a cabeça, concentrando energia magnética
ao longo das células corticais.
3 Anésia viu-se presa de branda
hipnose, que ela própria atribuía ao cansaço e não relutou.
Em breves instantes, deixava o corpo denso na prostração do sono, vindo ao nosso encontro em desdobramento quase natural.
4 Não parecia, contudo, tão
consciente em nosso Plano quanto seria de desejar.
Centralizada no afeto ao marido, Jovino constituía-lhe obcecante preocupação. Reconheceu Teonília e Áulus por benfeitores e lançou-nos significativo olhar de simpatia, no entanto, mostrava-se atordoada, aflita… Queria ver o esposo, ouvir o esposo…
5 O Assistente deliberou satisfazê-la.
Amparada pelos braços da admirável amiga, tomou a direção que lhe pareceu acertada, como quem possuía, de antemão, todos os dados necessários à localização do marido.
6 Áulus conosco explicou que
as almas, quando associadas entre si, vivem ligadas umas às outras pela
imanação magnética, superando obstáculos e distâncias.
7 Em vasto salão de um clube
noturno, surpreendemos Jovino e a mulher que se fizera nossa conhecida
nos fenômenos telepáticos, integrando um grupo alegre, em atitudes de
profunda intimidade afetiva.
Rodeando o conjunto, diversas entidades, estranhas para nós, formavam vicioso círculo de vampiros que não nas registaram a presença.
O anedotário menos edificante prendia as atenções.
8 Ao defrontar o companheiro
na posição em que se achava, Anésia desferiu doloroso grito e caiu em
pranto.
Seguida por nós, recuou ferida de aflição e assombro e tão logo nos vimos na via pública, bafejados pelo ar leve da noite, o Assistente abraçou-a, paternal.
9 Notando-a mais senhora de
si, embora o sofrimento lhe transfigurasse o rosto, falou-lhe com extremado
carinho:
— Minha irmã, recomponha-se. Você orou, pedindo assistência espiritual, e aqui estamos, trazendo-lhe solidariedade. Reanime-se! Não perca a esperança!…
— Esperança? — Clamou a pobre criatura em lágrimas. — Fui traída, miseravelmente
traída…
10 E o entendimento, entre
os dois, prosseguiu comovente e expressivo.
— Traída por quem?
— Por meu esposo, que falhou aos compromissos do casamento.
— Mas você admite, porventura, que o casamento seja uma simples excursão
no jardim da carne? Supôs que o matrimônio terrestre fosse apenas a
música da ilusão a eternizar-se no tempo? 11
Minha amiga, o lar é uma escola em que as almas se reaproximam para
o serviço da sua própria regeneração, com vistas ao aprimoramento que
nos cabe apresentar de futuro. Você ignora que no educandário há professores
e alunos? Desconhece que os melhores devem ajudar aos menos bons?
12 A interlocutora, chamada
a brios, sustou a lamentação. Ainda assim, após fitar o nosso orientador
com entranhada confiança, alegou, triste:
— Mas Jovino…
13 Áulus, porém, cortou-lhe
a frase, acrescentando:
— Esquece-se de que seu esposo precisa muito mais agora de seu entendimento
e carinho? 14 Nem
sempre a mulher poderá ver no companheiro o homem amado com ternura,
mas sim um filho espiritual necessitado de compreensão e sacrifício
para soerguer-se, como também nem sempre o homem conseguirá contemplar
na esposa a flor de seus primeiros sonhos, mas sim uma filha do coração,
a requisitar-lhe tolerância e bondade, a fim de que se transfira da
sombra para a luz. 15
Anésia, o amor não é tão somente a ventura rósea e doce do sexo perfeitamente
atendido. É uma luz que brilha mais alto, inspirando a coragem da renúncia
e do perdão incondicionais, em favor do ser e dos seres que nós amamos.
16 Jovino é uma planta
que o Senhor lhe confiou às mãos de jardineira. É compreensível que
a planta seja assaltada pelos parasitas ou pelos vermes da morte, todavia,
nada há a recear se a jardineira está vigilante…
17 Nesse ponto das belas palavras
do instrutor, a mãezinha de Márcia voltou-se para ele, à maneira de
uma doente agarrando-se ao médico, e rogou em voz súplice:
— Sim, sim… Reconheço… Entretanto, não me deixe sozinha… Sinto-me atribulada. Que fazer da mulher que o domina? Nela vejo a perturbação e o fel de nossa casa… Assemelha-se a um Espírito diabólico, fascinando-o e destruindo-o…
18 — Não se refira a ela assim,
com palavras amargas! É também nossa irmã, vitimada por lastimáveis
enganos!…
— Mas como aceitá-la? Percebo-lhe a influência maligna… Parece uma serpente invisível, trazendo consigo pavorosos monstros para junto de nós… Nosso templo doméstico, por isso, transformou-se num inferno em que não mais nos entendemos… Tudo agora é fracasso, desarmonia e insegurança… Que fazer de semelhante criatura?
19 — Compadeçamo-nos dela!
Terrível ser-lhe-á o despertamento.
— Compaixão?
— E que outra melhor represália senão essa?
— Não seria mais justo situá-la na reparação dos próprios erros? Não seria
mais certo relegá-la ao lugar escuro que merece?
20 Áulus, porém, tomou-lhe
a destra inquieta e esclareceu:
— Abstenhamo-nos de julgar. ( † )
Consoante a lição do Mestre que hoje abraçamos, o amor deve ser nossa
única atitude para com os adversários. 21
A vingança, Anésia, é a alma da magia negra. Mal por mal significa o
eclipse absoluto da razão. E, sob o império da sombra, que poderemos
aguardar senão a cegueira e a morte? 22
Por mais aflitiva lhe seja a lembrança dessa mulher, recorde-a em suas
preces e em suas meditações, por irmã necessitada de nossa assistência
fraterna. 23 Ainda
não readquirimos nossa memória integral do passado e nem sabemos o que
nos ocorrerá no futuro… Quem terá sido ela no pretérito? Alguém que
ajudamos ou ferimos? Quem será para nós no porvir? Nossa mãe ou nossa
filha? 24 Não condene!
O ódio é como o incêndio que tudo consome, mas o amor sabe como apagar
o fogo e reconstruir. 25
Segundo a Lei, o bem neutraliza o mal, que se transforma, por fim, em
servidor do próprio bem. 26
Ainda que tudo pareça conspirar contra a sua felicidade, ame e ajude
sempre, porque o tempo se incumbirá de expulsar as trevas que nos visitam,
à medida que se nos aumente o mérito moral.
27 Anésia, assemelhando-se
a uma criança resignada, pousou no benfeitor os olhos límpidos, como
a prometer-lhe obediência, e Áulus, afagando-a, recomendou:
— Volte ao lar e use a humildade e o perdão, o trabalho e a prece, a bondade e o silêncio, na defesa de sua segurança. A mãezinha enferma e as filhinhas reclamam-lhe amor puro, tanto quanto o nosso Jovino, que voltará, mais experiente, ao refúgio de seu coração.
28 Anésia ergueu a cabeça para
o firmamento constelado de luz, pronunciando uma oração de louvor e,
em seguida, tornou a casa.
Vimo-la despertar no corpo carnal, de alma renovada, quase feliz…
Enxugou as lágrimas que lhe banhavam o rosto e tentou ansiosamente recordar, ponto a ponto, a entrevista que tivera conosco.
29 Em verdade, não conseguiu
alinhar senão fragmentárias reminiscências, mas reconheceu-se reconfortada,
sem revolta e sem amargura, como se mãos intangíveis lhe houvessem lavado
a mente, conferindo-lhe uma compreensão mais clara da vida.
Recordou Jovino e a mulher que o hipnotizava, compadecidamente, como pessoas a lhe exigirem tolerância e piedade.
30 Profundo entendimento
brotava-lhe agora do espírito. A compreensão da irmã superara o desequilíbrio
da mulher.
E pensava: “Que lhe adiantaria a revolta ou o desânimo, quando lhe
competia a defesa do lar? Fazendo justiça com as próprias mãos, não
prejudicaria aqueles que lhe constituíam a riqueza do coração?! 31
Em qualquer parte, o escândalo é a ruína da felicidade… Não devia render
graças a Deus por sentir-se na condição da esposa digna? 32
Sim, decerto a pobre criatura que lhe perturbava o marido não havia
acordado ainda para a responsabilidade e para o discernimento. Necessitava,
pois, de compaixão e de amparo, ao invés de crítica e azedume…”
Consolada e satisfeita, passou à medicação da genitora.
3.
Hilário, admirado, exaltou os méritos da oração, ao que Áulus enunciou:
2 — Em todos os processos
de nosso intercâmbio com os encarnados, desde a mediunidade torturada
à mediunidade gloriosa, a prece é abençoada luz, assimilando correntes
superiores de força mental que nos auxiliam no resgate ou na ascensão.
3 Indicando a dona da casa,
agora em serviço no aposento, meu colega observou:
— Vemos, então, em nossa amiga preciosa mediunidade a desenvolver-se…
— Como acontece a milhões de pessoas disse o orientador, — ela detém consigo recursos medianímicos apreciáveis, que podem ser inclinados para o bem ou para o mal, competindo-lhe a obrigação de construir dentro de si mesma a fortaleza de conhecimento e vigilância, na qual possa desfrutar, em pensamento, as companhias espirituais que mais lhe convenham à felicidade.
— E pela prece busca solução para os enigmas que lhe flagelam a existência…
4 Áulus sorriu e ajuntou:
— Encontramos aqui precioso ensinamento acerca da oração… Anésia, mobilizando-a, não conseguiu modificar os fatos em si, mas logrou modificar a si mesma. As dificuldades presentes não se alteraram. Jovino continua em perigo, a casa prossegue ameaçada em seus alicerces morais, a velhinha doente aproxima-se da morte, entretanto, nossa irmã recolheu expressivo coeficiente de energias para aceitar as provações que lhe cabem, vencendo-as com paciência e valor. E um espírito transformado, naturalmente transforma as situações.
5 O Assistente, contudo, interrompeu-se
e lembrou-nos o horário de volta.
Por solicitação de Teonília, examinou a doente e concluiu que a desencarnação de Dona Elisa estava próxima.
Externei o desejo de analisar-lhe o campo orgânico; todavia, o instrutor recordou-nos a hora avançada e prometeu voltar conosco, em tarefa de assistência à velhinha na noite próxima.
André Luiz