1.
No dia imediato, pusemo-nos em marcha.
Respondendo-nos às arguições afetivas, o Instrutor informou-nos de que teríamos apenas alguns dias de ausência.
2 Além dos serviços referentes
ao encargo particular que nos mobilizava, entraríamos em algumas atividades
secundárias de auxílio. 3
Técnico em missões dessa natureza, afirmou que nos admitira, num trabalho
que poderia desenvolver sozinho, não só pela confiança que em nós
depositava, mas também pela necessidade da formação de novos cooperadores,
especializados no ministério de socorro às trevas.
4 Após a travessia de várias
regiões, “em descida”, com escalas por diversos postos e instituições
socorristas, penetramos vasto domínio de sombras.
5 A claridade solar jazia
diferençada.
Fumo cinzento cobria o céu em toda a sua extensão.
A volitação fácil se fizera impossível.
6 A vegetação exibia aspecto
sinistro e angustiado. As árvores não se vestiam de folhagem farta e
os galhos, quase secos, davam a ideia de braços erguidos em súplicas
dolorosas.
7 Aves agoureiras, de grande
tamanho, de uma espécie que poderá ser situada entre os corvídeos, crocitavam
em surdina, semelhando-se a pequenos monstros alados espiando presas
ocultas.
8 O que mais contristava,
porém, não era o quadro desolador, mais ou menos semelhante a outros
de meu conhecimento, e, sim, os apelos cortantes que provinham dos charcos.
Gemidos tipicamente humanos eram pronunciados em todos os tons.
9 Acredito, teríamos examinado
individualmente os sofredores que aí se localizavam, se nos entregássemos
a detida apreciação; todavia, Gúbio, à maneira de outros instrutores,
não se detinha para atender a curiosidade improfícua.
10 Lembrando a “selva escura”
a que Alighieri se reporta no imortal poema, eu trazia o coração premido
de interrogativas inquietantes.
Aquelas árvores estranhas, de frondes ressecadas, mas vivas, seriam
almas convertidas em silenciosas sentinelas de dor, qual a mulher de
Lot, ( † )
transformada simbolicamente em estátua de sal? E aquelas grandes corujas
diferentes, cujos olhos brilhavam desagradavelmente nas sombras, seriam
homens desencarnados sob tremendo castigo da forma? Quem chorava nos
vales extensos de lama? Criaturas que houvessem vivido na Terra que
recordávamos, ou duendes desconhecidos para nós?
11 De quando em quando,
grupos hostis de entidades espirituais em desequilíbrio nos defrontavam,
seguindo adiante, indiferentes, incapazes de registar-nos a presença.
Falavam em alta voz, em português degradado, mas inteligível, evidenciando,
pelas gargalhadas, deploráveis condições de ignorância. Apresentavam-se
em trajes bisonhos e conduziam apetrechos de lutar e ferir.
12 Avançamos mais profundamente,
mas o ambiente passou a sufocar-nos. Repousamos, de algum modo, vencidos
de fadiga singular, e Gúbio, depois de alguns momentos, nos esclareceu:
— Nossas organizações perispiríticas, à maneira de escafandro estruturado
em material absorvente, por ato deliberado de nossa vontade, não devem
reagir contra as baixas vibrações deste Plano. 13
Estamos na posição de homens que, por amor, descessem a operar num imenso
lago de lodo; para socorrer eficientemente os que se adaptaram a ele,
são compelidos a cobrir-se com as substâncias do charco, sofrendo-lhes,
com paciência e coragem, a influenciação deprimente. 14
Atravessamos importantes limites vibratórios e cabe-nos entregar a forma
exterior ao meio que nos recebe, a fim de sermos realmente úteis aos
que nos propomos auxiliar. Finda a nossa transformação transitória,
seremos vistos por qualquer dos habitantes desta região menos feliz.
15 A oração, de agora
em diante, deve ser nosso único fio de comunicação com o Alto, até que
eu possa verificar, quando na Crosta, qual o minuto mais adequado de
nosso retorno aos dons luminescentes. 16
Não estamos em cavernas infernais, mas atingimos grande império de inteligências
perversas e atrasadas, anexo aos Círculos da Crosta, onde os homens
terrestres lhes sofrem permanente influenciação. 17
Chegou para nós o momento de pequeno testemunho. Muita capacidade de
renúncia é indispensável, a fim de alcançarmos nossos fins. Podemos
perder por falta de paciência ou por escassez de vocação para o sacrifício.
Para a malta de irmãos retardados que nos envolverá, seremos simples
desencarnados, ignorantes do próprio destino.
18 Passamos a inalar as substâncias
espessas que pairavam em derredor, como se o ar fosse constituído de
fluidos viscosos.
19 Elói estirou-se, ofegante,
e não obstante experimentar, por minha vez, asfixiante opressão, busquei
padronizar atitudes pela conduta do Instrutor, que tolerava a metamorfose,
silencioso e palidíssimo.
20 Reparei, confundido,
que a voluntária integração com os elementos inferiores do Plano nos
desfigurava enormemente. Pouco a pouco, sentimo-nos pesados e tive a
ideia de que fora, de improviso, religado, de novo, ao corpo de carne,
porque, embora me sentisse dono da própria individualidade, me via revestido
de matéria densa, como se fosse obrigado a envergar inesperada armadura.
2.
Decorridos longos minutos, o orientador apelou, diligente:
— Prossigamos! Doravante, seremos auxiliares anônimos. 2
Não nos convém, por enquanto, a identificação pessoal.
— Mas, não será isto mentir? Clamou Elói, quase refeito.
3 Gúbio dividiu conosco um
olhar de benevolência e explicou, bondoso:
— Não te recordas do texto evangélico que recomenda não saiba a mão
esquerda o que dá a direita? ( † )
Este é o momento de ajudarmos sem alarde. O Senhor não é mentiroso quando
nos estende invisíveis recursos de salvação, sem que lhe vejamos a presença.
4 Nesta cidade sombria,
trabalham inúmeros companheiros do bem nas condições em que nos achamos.
Se erguermos bandeira provocante, nestes campos, nos quais noventa e
cinco por cento das inteligências se encontram devotadas ao mal e à
desarmonia, nosso programa será estraçalhado em alguns instantes. 5
Centenas de milhares de criaturas aqui padecem amargos choques de retorno
à realidade, sob a vigilância de tribos cruéis, formadas de Espíritos
egoístas, invejosos e brutalizados. Para a sensibilidade medianamente
desenvolvida, o sofrimento aqui é inapreciável.
6 — E há governo estabelecido
num reino estranho e sinistro quanto este? — Indaguei.
— Como não? — Respondeu Gúbio, atenciosamente. — Qual ocorre na Esfera carnal,
a direção, neste domínio, é concedida pelos Poderes Superiores, a título
precário. 7 Na atualidade,
este grande empório de padecimentos regenerativos permanece dirigido
por um sátrapa de inqualificável impiedade, que aliciou para si próprio
o pomposo título de Grande Juiz, assistido por assessores políticos
e religiosos, tão frios e perversos quanto ele mesmo. Grande aristocracia
de gênios implacáveis aqui se alinha, senhoreando milhares de mentes
preguiçosas, delinquentes e enfermiças…
8 — E porque permite Deus
semelhante absurdo?
Dessa vez, era o meu colega que perguntava, de novo, semi-apavorado, agora, ante os compromissos que assumíramos.
9 Longe de perturbar-se,
Gúbio replicou:
— Pelas mesmas razões educativas através das quais não aniquila uma
nação humana quando, desvairada pela sede de dominação, desencadeia
guerras cruentas e destruidoras, mas a entrega à expiação dos próprios
crimes e ao infortúnio de si mesma, para que aprenda a integrar-se na
ordem eterna que preside à vida universal. 10
De período a período, contado cada um por vários séculos, a matéria
utilizada por semelhantes inteligências é revolvida e reestruturada, n
qual acontece nos Círculos terrenos; mas se o Senhor visita os homens
pelos homens que se santificam, corrige igualmente as criaturas por
intermédio das criaturas que se endurecem ou bestializam.
11 — Significa então que os
gênios malditos, os demônios de todos os tempos… — exclamei, reticencioso.
— Somos nós mesmos, — completou o Instrutor, paciente, — quando nos
desviamos, impenitentes, da Lei. 12
Já perambulamos por estes sítios sombrios e inquietantes, mas os choques
biológicos do renascimento e da desencarnação, mais ou menos recentes,
não te permitem, nem a Elói, o desabrocho de reminiscências completas
do passado. Comigo, porém, a situação é diversa. A extensão de meu tempo,
na vida livre, já me confere recordações mais dilatadas e, de antemão,
conheço as lições que constituam novidade. 13
Muitos de nossos companheiros, guindados à Altura, não mais identificam
nestas paragens senão motivos de cansaço, repugnância e pavor; todavia,
é forçoso observar que o pântano, invariavelmente, é uma zona da natureza
pedindo o socorro dos servos mais fortes e generosos.
14 Música exótica fazia-se
ouvir não distante e Gúbio rogou-nos prudência e humildade em favor
do êxito no trabalho a desdobrar-se.
Reerguemo-nos e avançamos.
Fizera-se-nos tardio o passo e nossa movimentação difícil.
15 Em voz baixa, o orientador
reiterou a recomendação:
— Em qualquer constrangimento íntimo, não nos esqueçamos da prece. É, de ora
em diante, o único recurso de que dispomos a fim de mobilizar nossas
reservas mentais superiores, em nossas necessidades de reabastecimento
psíquico. 16 Qualquer
precipitação pode arrojar-nos a estados primitivistas, lançando-nos
em nível inferior, análogo ao dos Espíritos infelizes que desejamos
auxiliar. Tenhamos calma e energia, doçura e resistência, de ânimo voltado
para o Cristo. Lembremo-nos de que aceitamos o encargo desta hora, não
para justiçar e sim para educar e servir.
3.
Adiantamo-nos, caminho a fora, como se fazia possível.
Em minutos breves, penetramos vastíssima aglomeração de vielas, reunindo casario decadente e sórdido.
2 Rostos horrendos contemplavam-nos
furtivamente, a princípio, mas, à medida que varávamos o terreno, éramos
observados, com atitude agressiva, por transeuntes de miserável aspecto.
3 Alguns quilômetros de via
pública, repletos de quadros deploráveis, desfilaram a nossos olhos.
Mutilados às centenas, aleijados de todos os matizes, entidades visceralmente desequilibradas, ofereciam-nos paisagens de arrepiar.
4 Impressionado com
a multidão de criaturas deformadas que se enfileiravam sob nosso raio
visual, perfeitamente arrebanhadas ali em experiência coletiva, enderecei
algumas interrogações ao Instrutor, em tom discreto.
5 Porque tão extensa comunidade
de sofredores? Que causas impunham tão flagrante decadência da forma?
Paciente, o orientador não se fez demorado na resposta.
6 — Milhões de pessoas,
— informou, calmo, — depois da morte, encontram perigosos inimigos no
medo e na vergonha de si mesmas. 7
Nada se perde, André, no círculo de nossas ações, palavras e pensamentos.
O registo de nossa vida opera-se em duas fases distintas; perseverando
no exterior, através dos efeitos de nossa atuação em criaturas, situações
e coisas, e persistindo em nós mesmos, nos arquivos da própria consciência,
que recolhe matematicamente todos os resultados de nosso esforço, no
bem ou no mal, ao interior dela própria. 8
O Espírito, em qualquer parte, move-se no centro das criações que desenvolveu.
Defeitos escuros e qualidades louváveis envolvem-no, onde se encontre.
9 A criatura na Terra,
por onde peregrinamos, ouve argumentos alusivos ao Céu e ao Inferno
e acredita vagamente na vida espiritual que a espera, além-túmulo. Mais
cedo que possa imaginar, perde o veículo de carne e compreende que não
se pode ocultar por mais tempo, desfeita a máscara do corpo sob a qual
se escondia à maneira da tartaruga dentro da carapaça. Sente-se tal
qual é e receia a presença dos filhos da luz, cujos dons de penetração
lhe identificariam, de pronto, as mazelas indesejáveis. 10
O perispírito, para a mente, é uma cápsula mais delicada, mais suscetível
de refletir-lhe a glória ou a viciação, em virtude dos tecidos rarefeitos
de que se constitui. 11
Em razão disso, as almas decaídas, num impulso de revolta contra os
deveres que nos competem a cada um, nos serviços de sublimação, aliam-se
umas às outras através de organizações em que exteriorizam, tanto quanto
possível, os lamentáveis pendores que lhes são peculiares, não obstante
ferretoadas pelo aguilhão das inteligências vigorosas e cruéis.
12 — Mas, — interferi,
— não há recursos de soerguer semelhantes comunidades?
— A mesma lei de esforço próprio funciona igualmente aqui. Não faltam
apelos santificantes de Cima; contudo, com a ausência da íntima adesão
dos interessados ao ideal da melhoria própria, é impraticável qualquer
iniciativa legítima, em matéria de reajustamento geral. 13
Sem que o Espírito, senhor da razão e dos valores eternos que lhe são
consequentes, delibere mobilizar o patrimônio que lhe é próprio, no
sentido de elevar o seu campo vibratório, não é justo seja arrebatado,
por imposição, a regiões superiores que ele mesmo, por enquanto, não
sabe desejar. 14 E até
que resolva atirar-se ao empreendimento da própria ascensão, vai sendo
aproveitado pelas leis universais no que possa ser útil à Obra Divina.
A minhoca, enquanto é minhoca, é compelida a trabalhar o solo; o peixe,
enquanto é peixe, não viverá fora d’água…
15 Sorrindo, ante a própria
argumentação, concluiu bem humorado:
— É natural, pois, que o homem, dono de vastas teorias de virtude salvadora, enquanto se demora no comboio da inferioridade seja empregado em atividades inferiores. A Lei estima infinitamente a Lógica.
16 Calou-se Gúbio, evidentemente
constrangido pela necessidade de não acordarmos demasiada atenção em
torno de nós.
Tocado, no entanto, pela miséria que ali emoldurava tanta dor, perdi-me num mar de indagações íntimas.
17 Que empório extravagante
era aquele? Algum país onde vicejassem tipos subumanos? Eu sabia que
semelhantes criaturas não envergavam corpos carnais e que se congregavam
num reino purgatorial, em benefício próprio; entretanto, vestiam-se
de roupagens de matéria francamente imunda. 18
Lombroso e Freud encontrariam aí extenso material de observação. Incontáveis
tipos que interessariam, de perto, à criminologia e à psicanálise vagueavam
absortos, sem rumo. 19
Exemplares inúmeros de pigmeus, cuja natureza em si ainda não posso
precisar, passavam por nós, aos magotes. Plantas exóticas, desagradáveis
ao nosso olhar, ali proliferam, e animais em cópia abundante, embora
monstruosos, se movimentavam a esmo, dando-me a ideia de seres acabrunhados
que pesada mão transformara em duendes. 20
Becos e despenhadeiros escuros se multiplicavam em derredor, acentuando-nos
o angustioso assombro.
21 Após a travessia de vastíssima
área, não sopitei as interrogações que me escapavam do cérebro.
O Instrutor, todavia, esclareceu, discreto:
— Guarda as perguntas intempestivas no momento. Estamos numa colônia
purgatorial de vasta expressão. 22
Quem não cumpre aqui dolorosa penitência regenerativa, pode ser considerado
inteligência subumana. Milhares de criaturas, utilizadas nos serviços
mais rudes da natureza, movimentam-se nestes sítios em posição infraterrestre.
23 A ignorância,
por ora, não lhes confere a glória da responsabilidade. Em desenvolvimento
de tendências dignas, candidatam-se à humanidade que conhecemos na Crosta.
Situam-se entre o raciocínio fragmentário do macacóide e a ideia simples
do homem primitivo na floresta. 24
Afeiçoam-se a personalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos
Espíritos prepotentes que dominam em paisagens como esta. Guardam, enfim,
a ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão. 25
O contato com certos indivíduos inclina-os ao bem ou ao mal e somos
responsabilizados pelas Forças Superiores que nos governam, quanto ao
tipo de influência que exercermos sobre a mente infantil de semelhantes
criaturas. 26 Com
respeito aos Espíritos que se mostram nestas ruas sinistras, exibindo
formas quase animalescas, neles reparamos várias demonstrações da anormalidade
a que somos conduzidos pela desarmonia interna. 27
Nossa atividade mental nos marca o perispírito. Podemos reconhecer a
propriedade do asserto, quando ainda no mundo. O glutão começa a adquirir
aspecto deprimente no corpo em que habita. Os viciados no abuso do álcool
passam a viver de borco, arrojados ao solo, à maneira de grandes vermes.
A mulher que se habituou a mercadejar com o vaso físico, olvidando as
sagradas finalidades da vida, apresenta máscara triste, sem sair da
carne. Aqui, porém, André, o fogo devorador das paixões aviltantes revela
suas vítimas com mais hedionda crueldade.
28 Certo, porque eu refletisse
no problema de assistência, o orientador aduziu:
— É impraticável a enfermagem individual e sistemática numa cidade
em que se amontoam milhares de alienados e doentes. 29
Um médico do mundo surpreenderia aqui, às centenas, casos de amnésia,
de psicastenia, de loucura, através de neuroses complexas, alcançando
a conclusão de que toda a patogenia permanece radicada aos ascendentes
de ordem mental. 30
Quem cura nestes lugares há de ser o tempo com a piedade celeste ou
a piedade celeste por intermédio de embaixadores da renúncia, em serviços
de intercessão para os Espíritos arrependidos que se refugiem na obediência
aos imperativos da Lei, inspirados pela boa vontade.
31 Alguns transeuntes repulsivos
ombrearam conosco e Gúbio considerou prudente silenciar.
Notei a existência de algumas organizações de serviços que nos pareceriam,
na Esfera carnal, ingênuas e infantis, reconhecendo que a ociosidade
era, ali, a nota dominante. 32
E porque não visse crianças, exceção feita das raças de anões, cuja
existência percebia sem distinguir os pais dos filhos, arrisquei, de
novo, uma indagação, em voz baixa.
33 Respondeu o Instrutor, atencioso:
— Para os homens da Terra, propriamente considerados, este Plano é quase infernal. Se a compaixão humana separa as crianças dos criminosos definidos, que dizer do carinho com que a compaixão celestial vela pelos infantes?
34 — E porque em geral tanta
ociosidade neste Plano? — Indaguei ainda.
— Quase todas as almas humanas, situadas nestas furnas, sugam as energias
dos encarnados e lhes vampirizam a vida, qual se fossem lampreias insaciáveis
no oceano do oxigênio terrestre. 35
Suspiram pelo retorno ao corpo físico, de vez que não aperfeiçoaram
a mente para a ascensão, e perseguem as emoções do campo carnal com
o desvario dos sedentos no deserto. Quais fetos adiantados absorvendo
as energias do seio materno, consomem altas reservas de força dos seres
encarnados que as acalentam, desprevenidos de conhecimento superior.
36 Daí, esse desespero
com que defendem no mundo os poderes da inércia e essa aversão com que
interpretam qualquer progresso espiritual ou qualquer avanço do homem
na montanha de santificação. 37
No fundo, as bases econômicas de toda essa gente residem, ainda, na
Esfera dos homens comuns e, por isto, preservam, apaixonadamente, o
sistema de furto psíquico, dentro do qual se sustentam, junto às comunidades
da Terra.
4.
A essa altura, defrontamos acidentes no solo, que o Instrutor nos induziu
a atravessar.
2 Subimos, dificilmente, a
rua íngreme e, em pequeno planalto, que se nos descortinou aos olhos
espantadiços, a paisagem alterou-se.
3 Palácios estranhos surgiam
imponentes, revestidos de claridade abraseada, semelhante à auréola
do aço incandescente.
4 Praças bem cuidadas, cheias
de povo, ostentavam carros soberbos, puxados por escravos e animais.
5 O aspecto devia, a nosso
ver, identificar-se com o das grandes cidades do Oriente, de duzentos
anos atrás.
6 Liteiras e carruagens transportavam
personalidades humanas, trajadas de modo surpreendente, em que o escarlate
exercia domínio, acentuando a dureza dos rostos que emergiam de singulares
indumentos.
7 Respeitável edifício destacava-se
diante de uma fortaleza, com todos os característicos de um templo,
e o orientador confirmou-me as impressões, asseverando que a casa se
destinava a espetaculoso culto externo.
8 Enquanto nos movimentávamos,
admirando o suntuoso casario em contraste chocante com o vasto reino
de miséria que atravessáramos, alguém nos interpelou, descortês:
— Que fazem?
9 Era um homem alto, de nariz
adunco e olhos felinos, com todas as maneiras do policial desrespeitoso,
a identificar-nos.
— Procuramos o sacerdote Gregório, a quem estamos recomendados, — esclareceu
Gúbio, humilde.
10 O estranho pôs-se à frente,
determinou lhe acompanhássemos as passadas, em silêncio, e guiou-nos
a um casarão de feio aspecto.
— É aqui! — Disse em tom seco e, após apresentar-nos a um homem maduro, envolvido em longa e complicada túnica, retirou-se.
11 Gregório não nos recebeu
hospitaleiramente. Fitou em Gúbio os olhos desconfiados de fera surpreendida
e interrogou:
— Vieram da Crosta, há muito tempo?
— Sim, — respondeu nosso Instrutor, — e temos necessidade de auxílio.
— Já foram examinados?
— Não.
— E quem mos enviou? — Inquiriu o sacerdote, sob visível perturbação.
— Certa mensageira de nome Matilde.
12 O anfitrião estremeceu,
mas observou, implacável:
— Não sei quem seja. Todavia, podem entrar. Tenho serviços nos mistérios e não posso ouvi-los agora. Amanhã, porém, ao anoitecer, serão levados aos setores de seleção, antes de admitidos ao meu serviço.
13 Nem mais uma palavra.
Entregues a um servidor de fisionomia desagradável, demandamos porão escuro, e confesso que acompanhei Gúbio e Elói, de alma conturbada por receio absorvente e indefinível.
André Luiz
[1]
[Vide no capítulo 1 outra referência ao
mesmo assunto.]