1 Em face dos aborrecimentos que lhe fustigavam o espírito, ante a opinião pública a desvairar-se em torno de sua memória, humilde “jornalista morto” ouviu sereno ancião, que lhe falou com sabedoria:
— Quando Jesus transformou a água em vinho, nas bodas de Caná, ( † ) os maledicentes cochicharam, em derredor:
— Que é isto? um messias, incentivando a embriaguez?
2 Mais tarde, em se reunindo aos pescadores da Galileia, a turba anotou, inconsciente:
— É um vagabundo em busca de pessoas tão desclassificadas quanto ele mesmo. Por que não procura os principais?
3 Logo às primeiras pregações, a chusma dos ignorantes, ao invés de reconhecer os benefícios da Palavra Divina, comentou, irreverente:
— É insubmisso. Vive sem horários, sem disciplinas de serviço.
4 À vista da multiplicação dos pães e dos peixes, ( † ) a massa não se comoveu quanto seria de esperar. Muita gente perguntou, franzindo sobrancelhas:
— Como? Um orientador sustentando ociosos?
5 Limpando as feridas de alguns lázaros que o buscavam, afirmou-se, em surdina:
— Vale-se da insensatez dos tolos para impressionar!
6 E quando o viram curar um paralítico, no sábado, consideraram os inimigos gratuitos:
— Agride publicamente a Lei.
7 Por aceitar a consideração afetuosa de Maria de Magdala, murmuraram os maledicentes:
— É desordeiro comum. Não consegue nem mesmo afivelar a máscara ao próprio rosto, dando-se à companhia de vil criatura, portadora de sete demônios.
8 Ao valer-se da contribuição de nobres senhoras, qual Joana de Cusa, no desdobramento do apostolado, soavam exclamações como estas:
— É um explorador de mulheres piedosas! Vive do dinheiro dos ricos, embora passe por virtuoso!
9 Porque se demorasse alguns minutos, junto de publicanos pecadores, a fim de ensinar-lhes a ciência de renovação íntima, acusavam-no, sem compaixão:
— É um gozador da vida como os outros!
10 Se buscava paisagens silenciosas para o reconforto na oração, gritava-se com desrespeito:
— Este é um salvador solitário, orgulhoso demais para ombrear com o povo.
11 Como se aproximasse da samaritana, ( † ) com o propósito de socorrer-lhe a alma, indagou-se com malícia:
— Que faz ele em companhia de mulher que já pertenceu a vários maridos?
12 Atendendo às súplicas de um centurião cheio de fé, a leviandade intrigou:
— É um adulador de romanos desbriados.
13 Visitando Zaqueu, ( † ) escutou apontamentos irônicos:
— É um pregador do Céu que se garante com os poderosos senhores da Terra…
14 Abraçando o cego de Jericó, registou a inquirição que se fazia ao redor de seus passos:
— Que motivos o prendem a tanta gente imunda?
15 Penetrando Jerusalém, ( † ) no dia festivo, e impossibilitado de impedir o regozijo de quantos confiavam em seu ministério, afrontou sentenças sarcásticas:
— Fora com o revolucionário! Morte ao falso profeta!…
16 Censurando o baixo comercialismo do grande Templo de Salomão, dele disseram abertamente:
— É criminoso perseguidor de Moisés.
17 Levantando Lázaro no sepulcro, ( † ) gritavam não longe:
— É Satanás em pessoa!…
18 Reunindo os companheiros na última ceia, para as despedidas, e lavando-lhes os pés, observaram nas vizinhanças do cenáculo: ( † )
— É pobre demente.
19 Ao se deixar prender sem resistência, objetou a multidão:
— É covarde! Comprometeu a muitos e foge sem reação!
20 Recebendo o madeiro, berraram-lhe aos ouvidos:
— Desertor! pagarás teus crimes!
21 No martírio supremo, era apostrofado sem comiseração:
— Feiticeiro! de onde virão teus defensores?
Torturado, em plena agonia, ouviu de bocas inúmeras:
— Salva a ti mesmo e desce da cruz!
22 E antes que o cadáver viesse para os braços maternos, trêmulos de angústia, muita gente regressou do Gólgota, murmurando:
— Teve o fim que merecia, entre ladrões.
23 O velhinho fez intervalo expressivo e ajuntou:
— Como sabe, isto aconteceu com Jesus-Cristo, o Divino Governador Espiritual do Planeta.
24 Sorriu, afável, e rematou:
— Endividados como somos, que devemos aguardar, por nossa vez, das multidões da Terra?
25 Foi, então, que vi o pobre escritor desencarnado exibir uma careta de alegria, que se degenerou em cristalina e saborosa, gargalhada…
Irmão X
(Humberto de Campos)