O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Há dois mil anos… — Emmanuel — 1ª Parte


6

O rapto

1 Ao tempo do Cristo, a Galileia  †  era um vasto celeiro que abastecia quase toda a Palestina.  † 

Nessa época, o formoso lago de Genesaré  †  não apresentava nível tão baixo, como na atualidade. Todo o terreno circunvizinho era de regadio, em vista das fontes numerosas, dos canais e do serviço das noras  †  que elevavam as águas, dando origem a uma vegetação luxuriante que enfeitava de frutos e enchia de perfumes aquelas paisagens paradisíacas.

O trigo, a cevada, as abóboras, as lentilhas, os figos e as uvas eram elementos de semeadura e colheita em todo o ano, dando à vida satisfação e abundância. Nas eminências da terra, misturando-se aos extensos vinhedos e olivais, elevavam-se palmeiras e tamareiras preciosas, cujos frutos eram os mais ricos da Palestina.


2 Em Cafarnaum, além dessas riquezas, prosperava a indústria da pesca, dada a abundância do peixe no então chamado “Mar da Galileia”,  †  o que resumia uma vida simples e tranquila. Dentre todos os outros povos dos centros galileus, o de Cafarnaum  †  se distinguia por sua beleza espiritual, despretensiosa e singela. Consciencioso e crente, aceitava a Lei de Moisés, mas estava muito longe das manifestações hipócritas do farisaísmo  †  de Jerusalém. Foi em virtude dessa simplicidade natural e dessa fé espontânea e sincera que a paisagem de Cafarnaum serviu de palco às primeiras lições inesquecíveis e imortais do Cristianismo, em sua primitiva pureza. Ali encontrou Jesus o carinho de corações devotados e valorosos, e foi ali que o mundo espiritual encontrou os melhores elementos para a formação da escola inolvidável, onde o Divino Mestre exemplificaria os seus ensinos.


3 Em todas as cidades da região havia sinagogas,  †  para que as lições da Lei fossem ministradas aos sábados, dia que todos os indivíduos deveriam dedicar exclusivamente ao descanso do corpo e às atividades do espírito. Nessas pequenas sinagogas, franqueava-se a palavra a quantos desejassem utilizá-la, mas Jesus preferia o templo suave da Natureza para a difusão dos seus ensinos.

Todas as classes humildes acorriam às suas prédicas ao ar livre, cuja extraordinária beleza seduzia os corações mais empedernidos.

Antiga convenção, entre os senhores, determinava o repouso dos servos no dia consagrado aos estudos da Lei, e os próprios romanos procuravam cultivar aquelas tradições regionais, buscando a simpatia do povo conquistado.

Nessa época, grande era a afluência dos escravos às pregações consoladoras do Messias de Nazaret.


4 Uma semana havia decorrido após o recebimento das notícias de Roma e, nesse sábado, às primeiras horas da tarde, vamos encontrar Lívia e Ana em conversação íntima e carinhosa.

— Sim — dizia a jovem patrícia à serva, que se encontrava em trajes de sair —, se te for possível, hoje, agradecerás de viva voz ao profeta, em meu nome, já que me sinto tão feliz, graças à sua infinita bondade. E dize-lhe que, se eu puder, nas vésperas de partir para Roma, procurarei conhecê-lo, a fim de lhe beijar as mãos generosas, em testemunho do meu reconhecimento!…

— Não esquecerei vossas ordens e espero que possais ir até a casa de Simão para visitá-lo, antes de vos retirardes destes lugares… Ainda hoje — prosseguiu em tom confidencial — devo encontrar na cidade o velho tio Simeão, que veio de Samaria  †  especialmente para receber a sua bênção e os seus ensinos. Não sei se a senhora sabe que entre os samaritanos e os galileus há rixas muito antigas; mas o Mestre, muitas vezes, nas suas lições de amor e fraternidade, tem louvado os primeiros pela sua caridade leal e sincera. Numerosos milagres já foram efetuados por ele, na Samaria, e meu tio é um desses beneficiados que hoje virá receber a bênção de suas mãos consoladoras!…


5 Uma doce e comovente fé ungia a alma daquela mulher do povo, intensificando em Lívia o desejo de conhecer aquele homem extraordinário que sabia iluminar, com as suas graças, os corações mais ignorantes e mais singelos.

— Ana, espera um pouco — disse sensibilizada, dirigindo-se aos seus aposentos. E voltando com a fisionomia radiante, satisfeita por começar ali mesmo a sua fraternização cristã, deu à empregada algumas moedas, exclamando com a maior alegria:

— Leva este dinheiro ao tio Simeão, em meu nome… Ele veio de longe por ver o Messias e tem necessidade de recursos!

Ana recebeu a importância, que era de alguns denários,  †  agradeceu, radiante, aquela dádiva considerada como verdadeira fortuna e, daí a minutos, com Sémele e outras companheiras dirigiu-se pela estrada de Cafarnaum, em demanda do lago, onde aguardariam o cair da tarde, quando a barca de Simão Barjona trouxesse o Messias para as pregações costumeiras.


6 Na cidade, seu primeiro cuidado foi correr a uma choupana pobre e antiga, onde o velho Simeão a estreitou carinhosamente nos braços, chorando de alegria. Grande júbilo alvoroçou em seguida aqueles corações desprotegidos da sorte, em face da generosa oferta de Lívia, a qual significava para eles um pequeno tesouro.

Deixando as companheiras no local do costume, em virtude daquela circunstância, Ana não pôde reparar que, logo após a sua ausência, Sémele se retirou apressadamente em demanda de uma casa oculta entre oliveiras numerosas, ao fim de uma viela quase completamente abandonada.

Algumas pancadas na porta e uma senhora de boa aparência veio atende-la, solícita.

— Chegou o nosso amigo? — perguntou a empregada, fingindo despreocupação.

— Sim, o senhor André aqui está desde ontem, à sua espera. Faça o favor de esperar um pouco.


7 Daí a minutos, uma personagem de nosso conhecimento vinha ter com Sémele, num dos ângulos da sala, abraçando-a com efusão, como se fosse pessoa de sua profunda estima.

Era André de Gioras, que vinha a Cafarnaum para o golpe de represália, favorecido por uma aliada que a sua sede de vindita conseguira colocar, em Jerusalém, na casa de Públio Lêntulus, através de uma sagacidade cruel.

Depois de longa palestra em voz muito baixa, ouçamos a serva do senador, que lhe fala nestes termos:

— Não há dúvida… Já consegui captar toda a confiança dos patrões e a simpatia do pequeno. Pode, pois, ficar tranquilo, porque o momento é oportuno, visto que o senador pretende voltar para Roma em breves dias!

— Infame! — exclamou André, cheio de cólera — já pensa, então, no regresso? Muito bem!… Aquele maldito romano conseguiu escravizar para sempre o meu pobre filho, desatendendo às minhas súplicas paternas, mas há-de pagar muito caro a sua ousadia de conquistador, porque seu filho há-de ser um servo da minha casa! Um dia, hei-de mostrar-lhe a minha desforra, provando-lhe que também sou um homem!…


8 Estas palavras ele as disse entre dentes, em voz soturna, de olhos parados e brilhantes, como que se apostrofasse seres invisíveis.

— Então, tudo pronto? — perguntou a Sémele, denunciando uma resolução definitiva.

— Perfeitamente — respondeu a serva, com a maior serenidade.

— Pois bem; de hoje a três dias irei até lá, a cavalo, nas primeiras horas da madrugada.

E entregando-lhe um frasco minúsculo, que ela ocultou cuidadosamente nas próprias vestes, continuou em voz abafada:

— Bastam vinte gotas para que a criança adormeça e não desperte senão ao fim de doze horas… Quando for noite alta, aplique-lhe a beberagem num pouco de água levemente misturada de vinho fraco e espere o meu sinal. Estarei nas proximidades da casa, que desde ontem fiquei conhecendo, a aguardar a preciosa carga. Abrigará você a criança adormecida, de tal maneira que o volume não denuncie o conteúdo, visto a alguma distância, e, como em assuntos dessa natureza há-de contar com a possibilidade do testemunho de olhos estranhos, irei trajado à romana, esperando que você consiga vestir uma das túnicas da patroa, de modo a evitarmos que a culpa deste rapto venha a recair sobre alguém da nossa raça, caso surja alguma testemunha inoportuna e imprevista… Dado o sinal de minha presença na estrada que margina o pomar, virá você ter comigo, entregando-me o precioso fardo.


9 E, de olhos perdidos na visão antecipada da sua vingança, André de Gioras exclamou cerrando os punhos:

— Se os malditos romanos nos escravizam os filhos, sem piedade, podemos também escravizar os seus desgraçados descendentes!… Os homens nasceram com iguais direitos neste mundo…

Ouvindo-lhe as palavras, atenciosamente, objetou Sémele, algo amedrontada:

— Mas, e eu? Não acompanharei o pequenino Márcus na mesma noite?

— Seria grande imprudência. Você deverá ficar em Cafarnaum todo o tempo necessário, até que se percam todas as pistas do futuro senador, que não passará, aliás, de futuro escravo. Sua fuga seria indício seguro, agora ou mais tarde, e nós precisamos obstruir esse caminho certo.

Como sabe, tenho parentes afortunados na Judeia,  †  e não é demais esperar que um golpe da sorte me conceda o lugar proeminente a que aspiro, no templo de Jerusalém. Não podemos, portanto, manter complicações com a justiça, podendo você ficar tranquila, pois, mais tarde, o seu esforço de hoje será largamente recompensado.

A serva suspirou resignada, acedendo a todas as sugestões daquele espírito vingativo.


10 Daí a horas, ao cair da noite, voltavam à herdade os servos de Públio, em palestra animada e alegre, comentando os pequeninos incidentes e preocupações do dia.

Sémele não parecia preocupada, mesmo porque, havia muito, vinha sendo instruída pacientemente por André, de modo a colaborar decididamente naquele plano de vingança. Numerosos laços ligavam-na à família de Gioras, e, cooperando naquela trama sinistra em favor da desforra, mais não fazia, segundo supunha, que resgatar numerosas dívidas de ordem material.

Afinal, pensava ela consigo, liquidado o caso do pequenino, regressaria a Jerusalém quando muito bem lhe aprouvesse, consciente de haver cumprido um dever, obedecendo às tremendas exigências de André.

No dia seguinte, calculou todas as possibilidades de êxito do cometimento, e, na data aprazada, tomou todas as providências precisas.

A obtenção de uma túnica do uso particular de Lívia não lhe era difícil. A senhora as possuía em grande número e quase que diariamente Ana se incumbia de preparar as que se encontravam fora de seus apartamentos privados, para o necessário serviço de higiene; e foi assim que, burlando a dedicação e vigilância da colega, conseguiu Sémele uma túnica elegante e discreta, da senhora, de modo a observar, integralmente, as advertências daquele de quem se fizera cúmplice.


11 Em casa, nunca o senador e sua mulher haviam vivido momentos de tanta paz e tantas esperanças, desde que chegaram à Palestina. A cura da filha era a doce felicidade de cada instante, ensejando os mais carinhosos planos de ventura para os dias do porvir.

Lívia já organizava todos os seus apetrechos de viagem, considerando que em poucos dias estariam no antigo porto de Jope,  †  de regresso à metrópole querida.

Uma serenidade, que parecia imperturbável, descansava agora sobre o casal, fazendo-lhe os corações tranquilos e ditosos.

Públio havia esquecido totalmente as advertências do sonho, que considerava tão somente resultado da sua palestra impressionante com o profeta de Nazaret, e o coração se lhe desanuviara, ponderando o valor dos poderes humanos, dentro da vaidade orgulhosa que lhe abafava todas as preocupações de ordem espiritual. Um pensamento único lhe dominava o coração — voltar a Roma, dentro de poucos dias.

Nessa noite, porém, iam desmoronar-se todas as suas esperanças e modificar-se, para sempre, as linhas do seu destino na Terra.


12 Quem conhecesse a trama urdida na sombra pelo espírito vingativo de André, depois da meia-noite poderia ouvir um longo silvo que se repetiu por três vezes, no soturno silêncio do arvoredo.

Um homem trajado à romana apeara de fogoso corcel, a alguns metros da casa, no largo caminho que separava a vegetação do campo das árvores frutíferas. Em seguida, uma porta abriu-se furtivamente e uma mulher trajada à moda patrícia veio ter com o cavaleiro que a esperava ansioso, depondo-lhe nas mãos, com o máximo cuidado, um embrulho volumoso.

— Sémele — exclamou ele baixinho —, esta hora é decisiva em nossos destinos!

A serva de Lêntulus nada pôde responder, sentindo o peito opresso.


13 Nesse instante, os atores da cena não observaram a aproximação de um homem que estacara, à distância de alguns passos, na espessura das ramagens sombrias.

— Agora — tornou a dizer o cavaleiro, antes de partir em desabalada carreira — não se esqueça que o silêncio é ouro e que, se algum dia você for ingrata, pode pagar com a vida a descoberta do nosso segredo!…

Dito isso, André de Gioras partiu precipitadamente, a largo trote, pelos caminhos ensombrados, levando consigo o volume para ele tão precioso.

A serva ainda o acompanhou com a vista por alguns instantes, entre assustada e compungida, recolhendo-se a passos cambaleantes.

Ambos não sabiam que os olhos de um caluniador são piores que os braços de um ladrão e que esses olhos os espreitavam na solidão da noite.

Era Sulpício que, por coincidência, se recolhia tarde naquela noite, surpreendendo a cena palidamente iluminada pelos raios da lua.


14 Observando, de longe, que um homem e uma mulher, trajados à romana, se encontravam na estrada em hora tão imprópria, amorteceu os passos de felino, entre as árvores, com o fim de identificá-los mais de perto.

A cena fora, todavia, muito rápida, chegando-lhe tão somente aos ouvidos as últimas palavras “nosso segredo”, proferidas por André, na sua promessa odiosa e ameaçadora.

Em seguida, observou que a mulher, com a retirada do cavaleiro, regressava ao interior a passos vacilantes, como que presa de incoercível abatimento. Estugou então os passos para surpreende-la, reparando-lhe o vulto a poucos metros de distância. Mas, não se atreveu a aproximar-se, apenas identificando as características da vestimenta, à luz fraca da noite. Aquela túnica era-lhe conhecida. Aquela mulher, a seu ver, era Lívia, a única que podia trajar de tal modo, naquelas cercanias.


15 Num instante, suas ideias rápidas de homem experimentado nas piores ações do mundo, associaram fatos, personalidades e coisas. Lembrou, em seus íntimos pormenores, a cena que tivera ocasião de presenciar no jardim de Pilatos, crendo que a esposa de Públio se fizera amada pelo governador, cujo coração ela avassalara em poucos minutos, em virtude da sua peregrina beleza; recordou, por último, a estada do procurador da Judeia, em Nazaret, e concluiu, monologando:

— Um governador, na sua alta posição não deixará, por isso, de ser um homem, e um homem é muito capaz de cobrir toda a noite, em boa montaria, uma distância como a que vai de Cafarnaum  †  a Nazaret,  †  para se encontrar com a mulher amada… Ora esta!… temos agora de prosseguir, observando um casal de apaixonados… O único acontecimento estranhável é a facilidade com que essa mulher, aparentemente tão austera, se deixou dominar dessa maneira! Mas, como tenho os meus interesses com Fúlvia, vamos examinar o melhor modo de cientificar esse pobre homem que, senador, tão jovem e tão rico, é um marido tão desventurado!…


16 E depois de assim monologar cautelosamente, Sulpício recolheu-se intimamente satisfeito, por se ver dono da situação, já antegozando o instante em que faria Públio conhecedor do seu segredo, a fim de exigir mais tarde, em Jerusalém, o preço ignominioso da sua perversidade, segundo as promessas de Fúlvia.

O dia imediato constituiu dolorosa surpresa para o senador e sua mulher, aturdidos com o inopinado acontecimento.

Ninguém conhecia as circunstâncias em que se verificara o rapto da criança, no silêncio da noite.

Como louco, Públio Lêntulus tomou todas as providências possíveis, junto às autoridades de Cafarnaum, sem lograr resultado favorável. Numerosos servos de sua confiança foram expedidos a fim de bater os arredores, improficuamente, e, enquanto o marido se multiplicava em ordens e providências, Lívia recolhia-se ao leito, tomada de indefinível angústia.

Sémele, que fingia a mais profunda consternação, auxiliava os desvelos de Ana, junto da senhora, sucumbida de dor.


17 Naquela mesma tarde, Públio ordenou a Comênio, então com as honras de capataz de todos os trabalhos da herdade, a reunião geral dos servos da casa, a fim de que aprendessem no castigo severo, infligido aos escravos incumbidos do serviço noturno de vigilância, e, durante todas as horas do crepúsculo, trabalhou o açoite na carne de três homens robustos, que debalde imploravam clemência e misericórdia, protestando a sua inocência. Somente diante daquelas criaturas injustamente castigadas, considerou Sémele a extensão do seu procedimento, mas, intimamente apavorada com as consequências que poderiam advir do delito, cobriu ânimo para ocultar, ainda mais, a culpa e o terrível segredo.


18 Prosseguiam as ações punitivas, até que Lívia atormentada por aqueles gritos lancinantes e comovedores, se levantou com extrema dificuldade e chamando o esposo a um canto da varanda, de onde ele assistia impassível ao horrível sacrifício daquelas míseras criaturas, falou-lhe súplice:

— Públio, basta de castigo para esses homens fracos e infelizes!… Não seria um excesso de rigor da nossa parte para com os nossos servos a causa de tão dolorosa punição dos deuses para conosco? Esses escravos não são também filhos de criaturas que muito os amaram neste mundo? Na minha angústia materna, considero que ainda possuímos direitos e recursos para manter junto de nós os filhinhos idolatrados; mas, como será torturante o martírio da mãe de um desventurado, que o vê arrebatado de seus braços carinhosos para ser vendido por ignóbeis mercadores de consciências humanas!…

— Lívia, o sofrimento sugeriu-te singulares desvarios do coração — exclamou o senador, com serena energia.


19 Como poderias pensar numa igualdade absurda de direitos, entre a cidadã romana e a serva miserável? Não vês que entre ti e a mãe de um cativo existem consideráveis diferenças de sentimento?

— Penso que te enganas — revidou a esposa, com intraduzível amargura —, porque os próprios animais possuem os mais elevados instintos, em se tratando de maternidade…

E ainda assim, querido, mesmo que eu não tivesse nenhuma razão, manda o raciocínio que examinemos a nossa posição de pais, para considerarmos que ninguém, mais que nós próprios, é passível da culpa pelo acontecido, visto que os filhos são um depósito sagrado dos deuses, que no-los confiam ao coração, impondo-nos como dever de cada minuto a multiplicação do carinho e vigilância necessários; se sofro amargamente, é por considerar o amor sublime que nos une aos filhos, sem poder atinar com a causa deste crime misterioso, sem poder imputar aos nossos servos a culpa desse tenebroso acontecimento…


20 A voz de Lívia, porém, extinguia-se rapidamente. Um delíquio foi o resultado de suas palavras veementes, ao findar daquele dia de tantas e tão amarguradas emoções. Amparada pelas mãos carinhosas e desveladas de Ana, a pobre senhora recolheu-se ao leito com febre alta. Quanto a Públio, este, porque sentia que as verdades amargas da mulher lhe doíam fundo no coração, mandou cessar imediatamente o castigo, com alívio geral, recolhendo-se ao gabinete para meditar a situação.

Naquela mesma noite, recebeu a visita de Sulpício, que lhe veio trazer o infrutífero resultado de suas indagações, na pista do pequeno Márcus.


21 Ao despedir-se, exclamou o lictor, com grande surpresa de Públio, que lhe observara o tom enigmático das palavras:

— Senador, eu não posso decifrar esse doloroso enigma do desaparecimento do vosso filhinho, mas talvez possa orientar-vos nalguma pista segura, com as minhas observações pessoais, relativas ao assunto.

— Mas, se tens semelhantes elementos, abre-te sem receios — exclamou Públio, com o máximo interesse.

— Meus elementos de observação não são pontos de aclaramento positivo, e, como existem alguns remédios que em vez de curarem uma ferida produzem outras úlceras incuráveis, acho melhor adiar para amanhã à noite as minhas impressões individuais sobre os fatos.


22 Gozando com a atitude de estupefação do interlocutor profundamente impressionado com suas insinuações criminosas, Sulpício rematou as despedidas, acrescentando intencionalmente:

— Amanhã aqui estarei a estas mesmas horas e, se hoje não vos satisfaço ao desejo, aqui permanecendo até mais tarde, é que me esperam alguns afazeres no meu gabinete de trabalho, em vista de alguns pedidos de informações das nossas autoridades administrativas.

Dominado pelas expressões daquele enigma, Públio Lêntulus apresentou-lhe as despedidas da noite, tendo forças para murmurar:

— Então, até amanhã. Esperarei o cumprimento da tua promessa, de modo a aliviarem-se-me os receios do coração.


23 Ficando a sós, o senador submergiu-se no mar profundo de suas inquietações e receios.

Justamente quando contava regressar a Roma, eis que surge o inesperado, com piores características que a própria moléstia da filha, tantos anos suportada com serenidade e resignação, porque, agora, era o rapto inexplicável de uma criança, envolvendo sérias questões da moralidade de sua casa, e a própria honra da família.

No íntimo, sentia-se como um homem sem inimigos na Palestina, porquanto, com exceção do jovem Saul, filho de André, que, a seu ver, deveria estar tranquilo no lar paterno, nunca humilhara os brios de nenhum israelita, visto que a todos dispensava o máximo de sua pessoal atenção.


24 Onde a causa daquele crime misterioso? Em suas reminiscências aflorou a palavra segura de Flamínio Sevérus, quando lhe aconselhou muita prudência e valor individual, na Palestina, em razão de certos malfeitores que infestavam a região; mas, por outro lado, recordava o sonho simbólico e, com os olhos da imaginação, parecia lobrigar o vulto venerando daquele juiz austero e incorrupto, que lhe profetizara existência fértil de amarguras, dado o seu desprezo e indiferença pelas verdades salvadoras de Jesus de Nazaret.

Trabalhado pela dor de angustiados pensamentos, debruçou-se à mesa de trabalho e deixou que o orgulho ferido chorasse copiosamente, considerando a sua impotência para conjurar as forças ocultas e impiedosas que conspiravam contra a sua ventura, nos caminhos ensombrados do seu doloroso destino.


25 Alta noite, procurou desabafar o coração, junto à carinhosa solicitude da esposa, trocando ambos as suas lamentações e as suas lágrimas.

— Públio — exclamava ela, com a ternura característica do seu coração —, procuremos reanimar nossas energias em favor de nós mesmos… Nem tudo está perdido!… Com os direitos que nos competem, podemos determinar todas as providências precisas, em busca do nosso anjinho. Adiaremos o regresso a Roma, indefinidamente, se tanto for necessário, e o resto os deuses farão por nós, reconhecendo nossa angústia e abnegação.

O que não é justo é que nos entreguemos, irremediavelmente, ao nosso desespero, inutilizando as derradeiras forças para a luta.

A pobre senhora mobilizava os últimos recursos de suas energias maternas no proferir aquelas palavras de esperança e consolação. Sabia Deus, porém, das suas inenarráveis torturas íntimas, naqueles momentos angustiosos, e apenas o seu sentimento acrisolado, de renúncia e de amor, transformaria em forças as fragilidades da mulher, para poder confortar o coração angustiado do esposo, em tão penosas conjunturas.

Sim, minha querida, farei tudo o que estiver no meu alcance para esperar a providência dos deuses — disse o senador, mais ou menos reanimado em face do valor de que lhe dava ela testemunho.


26 O dia seguinte decorreu nas mesmas expectativas angustiosas, com os mesmos movimentos incertos de buscas infrutíferas.

À noite, segundo prometera, lá estava Sulpício Tarquínius esperando o seu momento decisivo.

Após o jantar, a que Lívia não pôde comparecer, em virtude do seu profundo abatimento físico, Públio recebeu o lictor com toda a intimidade, ali mesmo no triclínio, em cujos leitos macios ambos se estiraram para a palestra costumeira.

— Então, ainda ontem — exclamou o senador, dirigindo-se ao suposto amigo —, despertaste o meu paternal interesse, falando-me de tuas observações pessoais, que somente hoje me poderias transmitir…

— Ah! sim — redarguiu o lictor, com fingida surpresa —, é bem verdade que desejaria solicitar vossa atenção para as ocorrências misteriosas destes últimos dias. Tendes algum inimigo, aqui na Palestina, interessado na continuidade de vossa permanência em regiões tão pouco adaptáveis aos hábitos de um patrício romano?

— De modo algum — revidou o senador, eminentemente surpreendido. — Suponho encontrar-me num ambiente de amizades sinceras, em se tratando das nossas autoridades administrativas, e acredito que ninguém haja interessado na minha ausência de Roma. Ficaria muito satisfeito se esclarecesses melhor as tuas observações.

— É que na Judeia, há alguns anos, houve um caso idêntico ao vosso.


27 Conta-se que um dos antecessores do governador atual se deixou apaixonar perdidamente pela esposa de um patrício romano, que teve a pouca sorte de se fixar em Jerusalém e, conquistados seus objetivos, tudo fez por obstar o regresso de suas vítimas à sede do Império. E quando notou que de nada valiam os empecilhos de sua autoridade, cometeu o crime de sequestrar um filhinho do casal, fazendo acompanhar o feito de outras atrocidades, que ficaram impunes, dado o seu prestígio político perante o Senado.

Públio ouviu essas observações com o pensamento em brasa.

Em razão da sua intensidade emotiva, o sangue afluiu-lhe ao cérebro, parecendo represar-se em largas correntes junto ao dique das têmporas. Uma palidez de cera cobriu, em seguida, o seu rosto, numa fácies cadavérica, sem poder definir a emoção que lhe assaltava o íntimo, em face de tais insinuações contra a sua dignidade pessoal e contra as honrosas tradições da família.

Num instante, reviveu todas as acusações de Fúlvia e, julgando os seus semelhantes pelo estalão dos próprios sentimentos, não podia admitir no espírito de Sulpício uma ferocidade de tal quilate.


28 Enquanto mergulhava o pensamento em cismas atrozes, sem responder ao lictor, que o observava gozando o efeito de suas tenebrosas revelações, prosseguiu o caluniador, com fingida humildade:

— Bem reconheço o alcance de minhas palavras, para as quais, aliás, suplico a benevolência de vossa discrição, mas eu não abriria o coração neste sentido, senão tocado pelo profundo interesse que a vossa amizade conseguiu inspirar à minhalma dedicada e sincera. Francamente, não desejava constituir-me delator de quem quer que seja, perante o vosso espírito justo e generoso; todavia, passarei a narrar-vos o que vi com os próprios olhos, de modo a orientar com mais segurança o esforço de vossas pesquisas em busca do menino.

E Sulpício Tarquínius, com a falsa modéstia de suas palavras venenosas, desfiou um rosário longo de calúnias, entremeando os argumentos de consecutivos goles de vinho, o que exaltava ainda mais a fonte prodigiosa das suas fantasias.


29 Contou ao seu interlocutor, que o ouvia atônito, pela coincidência de suas observações com as denúncias de Fúlvia, os mais íntimos pormenores da cena do jardim em casa de Pilatos, e, em seguida, narrou o que observara na noite do rapto, salientando a coincidência da estada do governador em Nazaret.

O senador ouvia-lhe a narrativa, ocultando, a muito custo, o seu espanto doloroso. A prevaricação da esposa, segundo aquela denúncia espontânea, era um fato indubitável. Entretanto, ele queria acreditar o contrário. Durante todo o tempo da vida conjugal, Lívia manifestara o mais pronunciado retraimento dos ambientes sociais, vivendo tão somente para ele e para os filhinhos idolatrados. Era na sua palavra criteriosa e sincera que o seu espírito ia buscar as necessárias inspirações para o êxito nas lutas da vida; mas aquela denúncia lhe atordoava o coração e anulava todos os fatores da antiga confiança. Além disso, penosas coincidências vinham ferir o seu raciocínio, despertando-lhe amarguradas suspeitas no íntimo d’alma.

Não fora ela que intercedera a favor dos escravos, no momento do castigo, súplice, como se a culpa do acontecido também lhe pesasse no coração?

Ainda na véspera, sugerira a continuidade da permanência de ambos na Palestina, demonstrando um valor pouco vulgar. Não seria isso um gesto de suposta consolação para o marido ultrajado, visando prosseguir naqueles sítios, indefinidamente, obedecendo a intuitos inconfessáveis?


30 Um turbilhão de ideias antagônicas entrechocava-se no mar de suas meditações dolorosas.

Por outro lado, considerou, num relance, a sua posição de homem de Estado, as responsabilidades austeras que lhe competiam no organismo social.

O cargo proeminente, as severas obrigações a que se consagrara no mecanismo das relações de cada dia, o orgulho do nome e as tradições de família, amalgamaram a energia, precisa para o domínio das emoções do momento, e, escondendo o homem sentimental que era por natureza, para tão somente revelar o homem público, teve forças para exclamar:

— Sulpício, agradeço o teu interesse, desde que as tuas palavras sejam reflexo da tua generosidade sincera, mas devo considerar, perante o conceito que acabas de expender sobre minha mulher, que não aceito nenhum argumento que lhe fira a dignidade e austera nobreza, predicados esses que ninguém, mais que eu, deve conhecer.


31 A entrevista no jardim de Pilatos, a que te referes, foi por mim autorizada, e as tuas observações na noite do rapto não estão bem definidas, dado o caráter positivo, que se requer das nossas investigações.

Assim, pois, agradeço-te a dedicação em meu favor, mas a tua opinião abre entre nós, doravante, uma linha divisória que a minha confiança não mais ousará transpor.

Ficas, assim, dispensado do serviço que te retinha junto de minha família, mesmo porque a perspectiva da minha volta a Roma se desvaneceu com o desaparecimento do pequeno. Não poderemos regressar à sede do Império, enquanto não lograrmos o seu reaparecimento, ou a certeza dolorosa da sua morte.

Deste modo, eu seria imprudente exigindo a continuidade dos teus préstimos em Cafarnaum; sacrificando decisões de teus superiores hierárquicos, razão por que serás demitido de minha casa sem escândalos que prejudiquem a tua carreira profissional.

Aguardarei o ensejo de me comunicar com o governador, a teu respeito, quando então serás desligado oficialmente do meu serviço, sem nenhum prejuízo para o teu nome.

Vês, assim, que, como homem de Estado, agradeço o teu interesse e sei apreciar a tua dedicação, mas, como amigo, não me é mais possível depositar em ti o mesmo grau de confiança.


32 O lictor, que não esperava semelhante resposta, ficou lívido no seu indisfarçável desapontamento, mas atreveu-se ainda a revidar, fingidamente:

— Senhor senador, chegará o instante em que havereis de valorizar o meu zelo, não só como servidor de vossa casa, mas também como amigo desvelado e sincero. E já que não tendes outra recompensa melhor que o desprezo injusto para corresponder ao meu impulso de amizade, é com prazer que me sinto desligado das obrigações que me prendiam junto de vossa autoridade.

Em seguida, Sulpício pronunciou algumas palavras de despedida, a que Públio respondeu secamente, atormentado pelos mais profundos desgostos.


33 No silêncio do seu gabinete, examinou o quanto de energia que as circunstâncias haviam exigido do seu coração em tão penosas conjunturas. Bem reconhecia que adotara para com o lictor a atitude mais conveniente e consentânea com a situação, mas, no íntimo, guardava angustiosa incerteza, acerca da conduta de Lívia. Tudo conspirava contra ela, tendendo a apresentá-la, ao seu coração de marido pundonoroso, como a personificação da falsa inocência.

Naquele tempo, ainda não se vulgarizara no mundo o “orai e vigiai” ( † ) dos ensinamentos eternamente doces do Cristo, e o senador, entregando-se quase que totalmente ao império das amargas emoções que o acabrunhavam, debruçou-se sobre numerosos rolos de pergaminho, entrando a chorar convulsivamente.


Emmanuel


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