1 O dia seguinte amanheceu trazendo as mais sérias preocupações a Públio e sua família.
Ainda cedo, vamos encontrá-lo em íntimo colóquio com a esposa, que se lhe dirige em voz súplice e afetuosa:
— Considero, querido, que devias atenuar um pouco os rigores da posição em que o destino nos colocou, procurando esse homem generoso, para beneficio de nossa filha. Todos se referem às suas ações, empolgados por sua bondade edificadora e eu acredito que o seu coração se apiedará da nossa desditosa situação.
O senador ouviu-a apreensivo e incerto, exclamando afinal:
— Pois bem, Lívia; acederei aos teus desejos, mas só a angústia que nos vai nalma me faz transigir, de maneira tão rude, com os meus princípios.
2 Não procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade, como se me encontrasse em hora de simples entretenimento, passando pelo trecho do caminho que nos conduz às margens do lago, sem chegar ao cúmulo de abordar pessoalmente o profeta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no caso de sobrevir alguma circunstância favorável, far-lhe-ei sentir o prazer que nos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha.
— Muito bem! — disse Lívia, entre confortada e agradecida — guardo nalma a mais sincera e profunda fé. Vai sim, querido!… Ficarei rogando a bênção dos Céus para a nossa iniciativa. O profeta, que agora surge como verdadeiro médico das almas, saberá que atrás da tua posição de senador do Império, há corações que sofrem e choram!…
3 Públio notou que a esposa se exaltava nas suas considerações, deixando-se conduzir pelo que julgava um excesso de fraqueza e pieguismo; entretanto, nada lhe admoestou a respeito, em face das amarguras do momento, suscetível de desvairar o cérebro mais forte.
Deixou que as horas movimentadas do dia se escoassem com as claridades do poente e, quando o crepúsculo entornava as suas meias-tintas na paisagem maravilhosa, saiu, fingindo distração e alheamento, como se desejasse conhecer de perto antiga fonte da cidade, motivo de atração para todos os forasteiros.
Após haver percorrido uns trezentos metros de caminho, encontrou transeuntes e pescadores, que se recolhiam e o encaravam com mal disfarçada curiosidade.
4 Uma hora passou sobre as suas amargas cogitações íntimas.
Um velário imenso de sombras invadia toda a região, cheia de vitalidade e de perfumes.
Onde estaria o profeta de Nazaret naquele instante? Não seria uma ilusão a história dos seus milagres e da sua encantadora magia sobre as almas? Não seria um absurdo procurá-lo ao longo dos caminhos, abstraindo-se dos imperativos da hierarquia social? Em todo caso, deveria tratar-se de homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum † e pelos pescadores.
Dando curso às ideias que lhe fluíam da mente incendiada e abatida, Públio Lêntulus considerou dificílima a hipótese do seu encontro com o mestre de Nazaret.
Como se entenderiam?
Não lhe interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povo e, certamente, Jesus lhe falaria no aramaico, † comumente usado na bacia de Tiberíade. †
5 Profundas cismas entornavam-lhe do cérebro para o coração, como as sombras do crepúsculo que precediam àquela noite.
O céu, porém, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto as claridades opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absoluto do leque imenso da noite.
O senador sentiu o coração perdido num abismo de cogitações infinitas, ouvindo-lhe o palpitar descompassado no peito opresso. Dolorosa emoção lhe compungia agora as fibras mais íntimas do espírito. Apoiara-se, insensivelmente, num banco de pedras enfeitado de silvas, † e deixara-se ali ficar, sondando o ilimitado do pensamento.
Nunca experimentara sensação idêntica, senão no sonho memorável, relatado unicamente a Flamínio.
Recordava-se dos menores feitos da sua vida terrestre, afigurando-se-lhe haver abandonado, temporariamente, o cárcere do corpo material. Sentia profundo êxtase, diante da Natureza e das suas maravilhas, sem saber como expressar a admiração e reconhecimento aos poderes celestes, tal a clausura em que sempre mantivera o coração insubmisso e orgulhoso.
6 Das águas mansas do lago de Genesaré † parecia-lhe emanarem suavíssimos perfumes, casando-se deliciosamente ao aroma agreste da folhagem.
Foi nesse instante que, com o espírito como se estivesse sob o império de estranho e suave magnetismo, ouviu passos brandos de alguém que buscava aquele sítio.
Diante de seus olhos ansiosos, estacara personalidade inconfundível e única. Tratava-se de um homem ainda moço, que deixava transparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma beleza suave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe o semblante compassivo, como se fossem fios castanhos, levemente dourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmo tempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica e majestosa figura uma fascinação irresistível.
7 Públio Lêntulus não teve dificuldade em identificar aquela criatura impressionante, mas, no seu coração marulhavam ondas de sentimentos que, até então, lhe eram ignorados. Nem a sua apresentação a Tibério, † nas magnificências de Cápri, † lhe haviam imprimido tal emotividade ao coração. Lágrimas ardentes rolaram-lhe dos olhos que, raras vezes, haviam chorado, e força misteriosa e invencível fê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar. Desejou falar, mas tinha o peito sufocado e oprimido. Foi quando, então, num gesto de doce e soberana bondade, o meigo Nazareno caminhou para ele, qual visão concretizada de um dos deuses de suas antigas crenças, e, pousando carinhosamente a destra em sua fronte, exclamou em linguagem encantadora, que Públio entendeu perfeitamente, como se ouvisse o idioma patrício, dando-lhe a inesquecível impressão de que a palavra era de espírito para espírito, de coração para coração:
— Senador, porque me procuras? — e, espraiando o olhar profundo na paisagem, como se desejasse que a sua voz fosse ouvida por todos os homens do planeta, rematou com serena nobreza: — Fora melhor que me procurasses publicamente e na hora mais clara do dia, para que pudesses adquirir, de uma só vez e para toda a vida, a lição soberana da fé e da humildade… Mas, eu não vim ao mundo para derrogar as leis supremas da Natureza e venho ao encontro do teu coração desfalecido!…
8 Públio Lêntulus nada pôde exprimir, além das suas lágrimas copiosas, pensando amargamente na filhinha; mas o profeta, como se prescindisse das suas palavras articuladas, continuou:
— Sim… não venho buscar o homem de Estado, superficial e orgulhoso, que só os séculos de sofrimento podem encaminhar ao regaço de meu Pai; venho atender às súplicas de um coração desditoso e oprimido e, ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva a filhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda a razão egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a fé é divina… Basta um raio só de suas energias poderosas para que se pulverizem todos os monumentos das vaidades da Terra…
9 Comovido e magnetizado, o senador considerou, intimamente, que seu espírito pairava numa atmosfera de sonho, tais as comoções desconhecidas e imprevistas que se lhe represavam no coração, querendo crer que os seus sentidos reais se achavam travados num jogo incompreensível de completa ilusão.
— Não, meu amigo, não estás sonhando… — exclamou meigo e enérgico o Mestre, adivinhando-lhe os pensamentos. — Depois de longos anos de desvio do bom caminho, pelo sendal dos erros clamorosos, encontras, hoje, um ponto de referência para a regeneração de toda a tua vida.
Está, porém, no teu querer o aproveitá-lo agora, ou daqui a alguns milênios… Se o desdobramento da vida humana está subordinado às circunstâncias, és obrigado a considerar que elas existem de toda a natureza, cumprindo às criaturas a obrigação de exercitar o poder da vontade e do sentimento, buscando aproximar seus destinos das correntes do bem e do amor aos semelhantes.
Soa para teu espírito, neste momento, um minuto glorioso, se conseguires utilizar tua liberdade para que seja ele, em teu coração, doravante, um cântico de amor, de humildade e de fé, na hora indeterminável da redenção, dentro da eternidade…
Mas, ninguém poderá agir contra a tua própria consciência, se quiseres desprezar indefinidamente este minuto ditoso!
10 Pastor das almas humanas, desde a formação deste planeta, há muitos milênios venho procurando reunir as ovelhas tresmalhadas, tentando trazer-lhes ao coração as alegrias eternas do reinado de Deus e de sua justiça!…
11 Públio fitou aquele homem extraordinário, cujo desassombro provocava admiração e espanto.
Humildade? que credenciais lhe apresentava o profeta para lhe falar assim, a ele senador do Império, revestido de todos os poderes diante de um vassalo?
Num minuto, lembrou a cidade dos césares, coberta de triunfos e glórias, cujos monumentos e poderes acreditava, naquele momento, fossem imortais.
— Todos os poderes do teu império são bem fracos e todas as suas riquezas bem miseráveis… As magnificências dos césares são ilusões efêmeras de um dia, porque todos os sábios, como todos os guerreiros, são chamados no momento oportuno, aos tribunais da justiça de meu Pai que está no Céu. Um dia, deixarão de existir as suas águias poderosas, sob um punhado de cinzas misérrimas. Suas ciências se transformarão ao sopro dos esforços de outros trabalhadores mais dignos do progresso, suas leis iníquas serão tragadas no abismo tenebroso destes séculos de impiedade, porque só uma lei existe e sobreviverá aos escombros da inquietação do homem — a lei do amor, instituída por meu Pai, desde o princípio da Criação…
12 Agora, volta ao lar, consciente das responsabilidades do teu destino…
Se a fé instituiu na tua casa o que consideras a alegria com o restabelecimento de tua filha, não te esqueças que isso representa um agravo de deveres para o teu coração, diante de nosso Pai, Todo-Poderoso!…
O senador quis falar, mas a voz tornara-se-lhe embargada de comoção e de profundos sentimentos.
Desejou retirar-se, porém, nesse momento, notou que o profeta de Nazaret se transfigurava, de olhos fitos no céu…
Aquele sítio deveria ser um santuário de suas meditações e de suas preces, no coração perfumado da Natureza, porque Públio adivinhou que ele orava intensamente, observando que lágrimas copiosas lhe lavavam o rosto, banhado então por uma claridade branda, evidenciando a sua beleza serena e indefinível melancolia…
Nesse instante, contudo, suave torpor paralisou as faculdades de observação do patrício, que se aquietou estarrecido.
13 Deviam ser vinte e uma horas, quando o senador sentiu que despertava.
Leve aragem acariciava-lhe os cabelos e a lua entornava seus raios argênteos no espelho carinhoso e imenso das águas.
Guardando na memória os mínimos pormenores daquele minuto inesquecível, Públio sentiu-se humilhado e diminuído, em face da fraqueza de que era testemunho diante daquele homem extraordinário.
Uma torrente de ideias antagônicas represava-se-lhe no cérebro, acerca de suas admoestações e daquelas palavras agora arquivadas para sempre no âmago da sua consciência.
14 Também Roma não possuía os seus feiticeiros? Buscou rememorar todos os dramas misteriosos da cidades distante, com as suas figuras impressionantes e incompreensíveis.
Não seria aquele homem uma cópia fiel dos magos e adivinhos que preocupavam igualmente a sociedade romana?
Deveria ele, então, abandonar as suas mais caras tradições de pátria e família para tornar-se um homem humilde e irmão de todas as criaturas? Sorria consigo mesmo, na sua presumida superioridade, examinando a inanidade daquelas exortações que considerava desprezíveis. Entretanto, subiam-lhe do coração ao cérebro outros apelos comovedores. Não falara o profeta da oportunidade única e maravilhosa? Não prometera com firmeza, a cura da filhinha à conta da fé ardente de Lívia?
15 Mergulhado nessas cogitações íntimas, abriu cautelosamente a porta da residência, encaminhando-se ansioso ao quarto da enferma e, oh! suave milagre! a filhinha repousava nos braços de Lívia, com absoluta serenidade.
Sobre-humana e desconhecida força mitigara-lhe os padecimentos atrozes, porque seus olhos deixavam entrever uma doce satisfação infantil, iluminando-lhe o semblante risonho. Lívia contou-lhe, então, cheia de júbilo maternal, que, em dado momento, a pequenina dissera experimentar na fronte o contato de mãos carinhosas, sentando-se em seguida no leito, como se uma energia misteriosa lhe vitalizasse o organismo de maneira imprevista. Alimentara-se, a febre desaparecera contra todas as expectativas; ela já revelava atitudes de convalescente palestrando com a mãezinha, com a graça espontânea da sua meninice.
16 Terminado o relato, a jovem senhora concluiu com entusiasmo:
— Desde que saíste, eu e Ana oramos com fervor junto da nossa doentinha, implorando ao profeta que atendesse ao teu apelo, ouvindo os nossos rogos e, agora, eis que a nossa filhinha se restabelece!… Poderá, querido, haver felicidade maior do que esta?… Ah! Jesus deve ser um emissário direto de Júpiter, enviado a este mundo em gloriosa missão de amor e de alegria para todas as almas!…
Ana, porém, que escutava comovida, interveio num gesto espontâneo e incoercível, oriundo da grata satisfação daquele momento.
— Não minha senhora!… Jesus não vem da parte de Júpiter. Ele é o Filho de Deus, seu Pai e nosso Pai que está nos Céus, e cujo coração está sempre cheio de bondade e misericórdia para todos os seres, conforme o Mestre nos ensina. Louvemos, pois, o Todo Poderoso, pela graça recebida, agradecendo a Jesus com uma prece de humildade…
17 Públio Lêntulus acompanhou a cena, em silêncio, intimamente contrariado, com o verificar a intimidade estreita de sua mulher com uma simples serva da casa. Observou, com profundo desagrado, não só a espontaneidade da gratidão entusiástica de Lívia, como a intromissão de Ana na conversa, o que considerava ousadia. Num relance, mobilizou todas as reservas do seu orgulho para restabelecer a disciplina interna da sua casa, e, retomando o aspecto arrogante da sua expressão fisionômica, dirigiu-se secamente à esposa.
— Lívia, torna-se preciso que te coíbas destes arrebatamentos! Afinal, não vejo nada de extraordinário no que acaba de ocorrer. Nada tem faltado à nossa doente, no tocante ao tratamento e cuidados necessários, e era lógico que esperássemos uma reação salutar do organismo, em face da nossa continuada assistência.
Quanto a ti, Ana — disse voltando-se com arrogância para a serva intimidada —, acredito já cumprida a missão que te fazia demorar neste quarto, porquanto, considerando as melhoras da menina, não vejo necessidade da tua permanência junto da patroa, que trouxe de Roma as servas do seu serviço pessoal.
18 Ana fitou compungidamente a senhora, que mostrava no rosto os sinais evidentes da sua amargura pelo imprevisto daquelas palavras intempestivas, e, fazendo ligeira e respeitosa mesura, saiu do aposento onde havia empregado as melhores energias da sua fraternal abnegação.
— Que é isso, Públio? — perguntou Lívia, fundamente comovida. — Justamente agora, quando deveríamos mostrar à dedicada serva a alegria do nosso reconhecimento, procedes com semelhante aspereza?
— Tuas infantilidades obrigam-me a faze-lo. Que dirão da matrona que se dá de alma aberta às suas escravas mais humildes? Como se haverá o teu coração com estes excessos de confiança? Noto com desgosto que entre nós existem, agora, profundas divergências. Porque essa demasiada confiança no profeta de Nazaret, quando ele não é superior aos magos e feiticeiros de Roma? E, além disso, onde colocas as tradições de nossas divindades familiares, se não sabes guardar a fé em torno do altar doméstico?
19 — Não concordo contigo, querido, nestas ponderações. Tenho plena convicção de que a nossa Flávia foi curada por esse homem extraordinário… No instante de sua melhora súbita, quando ela nos falava das mãos sublimadas que a acariciavam, vi, com os meus olhos, que o leito da doentinha estava saturado de luz diferente, como nunca havia visto, até então…
— Luz diferente? Certo desvairas, depois de tantas fadigas; ou então estás contagiada das alucinações deste povo de fanáticos, em cujo seio tivemos a pouca sorte de cair…
— Não, meu amigo, não se trata de desvario. Não obstante as tuas palavras, que reconheço partidas do coração que mais adoro e admiro na Terra, tenho a certeza de que o Mestre de Nazaret acaba de curar nossa filhinha; e, quanto à Ana, querido, acho injusta a tua atitude, aliás, em desacordo com a tua proverbial generosidade com os servos de nossa casa. Não podemos nem devemos esquecer que ela tem sido de uma dedicação a toda prova, junto de mim e de nossa filha, nestes lugares ermos. Outras podem ser as suas crenças, mas presumo que a sua conduta honesta e santificante só pode honrar o serviço de nossa casa.
20 O senador considerou a elevação dos conceitos da mulher, sentindo-se arrependido do seu ato de impulsividade e capitulou diante do bom senso daquelas palavras.
— Está bem, Lívia, aprecio-te a nobreza do coração e estimarei a continuidade de Ana nos teus serviços privados; mas, não transijo no caso da cura de nossa filhinha. Não admito que se atribua ao mago de Nazaret o restabelecimento da mesma. Quanto ao mais, deverás lembrar, sempre, que me apraz saber só a mim reservadas a tua confiança e intimidade. A servos ou desconhecidos não deve o patrício, e com especialidade a matrona romana, abrir as portas do coração.
— Sabes como acato as tuas ordens — disse-lhe a esposa, mais confortada, dirigindo-lhe um olhar carinhoso e agradecido — e peço-te perdoar-me se te ofendi a alma generosa e sensível!…
— Não, minha querida, se existe aqui um problema de perdão, sou eu quem devo pedi-lo, mas não desconheces que esta região me atormenta e apavora. Sinto-me confortado, reconhecendo a reação benéfica da natureza orgânica da nossa filhinha, porque isto significa o nosso regresso a Roma em tempo breve. Esperaremos, apenas, mais alguns dias, e amanhã mesmo pedirei a Sulpício iniciar as providências para a nossa volta.
21 Lívia concordou com as observações do marido, acariciando a filhinha reanimada e refeita do abatimento profundo que a prostrara por espaço de muitos dias. Intimamente, agradecia, satisfeita, a Jesus, pois falava-lhe o coração que o acontecimento era uma bênção que o Pai dos Céus lhe enviara ao espírito maternal, através das mãos caridosas e santas do Mestre.
Públio, contudo, obedecendo ao impulso de suas vaidades pessoais, não desejava recordar a figura extraordinária que tivera ante os olhos deslumbrados. Arquitetava castelos de teorias na sua imaginação superexcitada, para afastar a interferência direta daquele homem no caso da cura da filhinha, respondendo, assim, às objeções do seu próprio espírito de observador e analista meticuloso.
Não podia esquecer que o profeta o envolvera em forças ignoradas, emudecendo-lhe a voz e fazendo-o ajoelhar-se, doendo-lhe ao orgulho despótico essa circunstância, considerada como dolorosa humilhação.
22 Ideias martirizantes povoavam-lhe o cérebro exausto de tantas lutas interiores e, depois de uma invocação aos gênios protetores da família, no altar doméstico, buscou repousar das amargas fadigas íntimas.
Naquela noite, todavia, sua alma experimentava as mesmas recordações da existência pregressa, nas asas cariciosas do sonho.
Viu-se vestido com as mesmas insígnias de Cônsul ao tempo de Cícero, † reviu as atrocidades praticadas por Públio Lêntulus Sura, † sua expulsão do Consulado, as reuniões secretas de Lúcio Sérgius Catilina, † as perversidades revolucionárias, sentindo-se de novo levado à presença daquele mesmo tribunal de juízes austeros e venerandos, que no sonho anterior lhe haviam notificado o seu renascimento na Terra, em época de grandes claridades espirituais.
23 Diante daqueles magistrados veneráveis, ostentando togas alvas de neve, experimentou amarga sensação de angústia, batendo-lhe descompassadamente o coração.
O mesmo juiz respeitável levantou-se, no ambiente sublimado de luzes espirituais, exclamando:
— Públio Lêntulus, porque desprezaste o minuto glorioso, com o qual poderias ter comprado a hora interminável e radiosa da tua redenção na eternidade?
Estiveste, esta noite, entre dois caminhos — o do servo de Jesus e o do servo do mundo. No primeiro, o jugo seria suave e o fardo leve; ( † ) mas, escolheste o segundo, no qual não existe amor bastante para lavar toda a iniquidade… Prepara-te, pois, para trilhá-lo com destemor, porque preferiste o caminho mais escabroso, em que faltam as flores da humildade, para atenuar o rigor dos espinhos venenosos!…
Sofrerás muito, porque nessa estrada o jugo é inflexível e o fardo pesadíssimo; mas agiste com liberdade de consciência, no jogo amplo das circunstâncias de tua vida… Conduzido a uma oportunidade maravilhosa, perseveraste no propósito de percorrer a via amarga e dolorosa das provações mais ríspidas e mais agudas.
Não te condenamos, para tão somente lamentar o endurecimento do teu espírito em face da verdade e da luz! Retempera todas as fibras do teu eu, pois enorme há-de ser, doravante, a tua luta!…
24 Ouvia, atento, aquelas exortações comovedoras, mas, nesse instante, despertou para as sensações da vida material, experimentando singular abatimento psíquico, a par de tristeza indefinível.
Ainda cedo, sua atenção foi reclamada por Lívia, que lhe apresentava a pequena Flávia, convalescente e feliz. A epiderme como que se alisara, submetida a processo terapêutico desconhecido e maravilhoso, desaparecendo os tons violáceos que, anteriormente, precediam as rosas de chaga-viva.
O senador recuperou alguma coisa da sua serenidade íntima, com o verificar as melhoras positivas da filhinha, que apertou amorosamente de encontro ao coração, exclamando mais tranquilo:
— Lívia, é bem verdade que ontem, à noite, estive com o chamado mestre de Nazaret, mas, com a lógica da minha educação e dos meus conhecimentos, não posso admitir seja ele o autor do restabelecimento de nossa filha.
25 E, de seguida, passou a relatar de modo superficial os acontecimentos que já conhecemos, sem referir, todavia, os pormenores que mais o impressionaram.
Lívia ouviu atenciosamente a narrativa, mas notando-lhe as íntimas disposições para com o profeta, que ela considerava criatura superior e venerável, não quis externar seu pensamento em torno do assunto, receosa de um atrito de opiniões, inoportuno e injustificável. No seu coração, agradecia àquele Jesus carinhoso e compassivo, que lhe atendera às angustiosas súplicas maternais e, no imo d’alma, acariciava a esperança de beijar-lhe a fímbria da túnica, com humildade, em testemunho do seu sincero reconhecimento, antes de regressar a Roma.
26 Quatro dias decorridos, a enferma apresentava sinais evidentes de seguro restabelecimento físico, dando motivo ao mais amplo júbilo de todos os corações.
Em radiosa manhã, vamos encontrar a jovem Lívia acalentando o filhinho, prestes a completar um ano, e instruindo a criada de nome Sémele, de origem judia, designada para velar pela criancinha, tal o interesse que demonstrara pelo pequenino Márcus, desde o instante de sua admissão ao serviço. Em dado momento, exclama a serva apontando para o largo caminho empedrado:
— Senhora, lá vêm dois cavaleiros desconhecidos, a todo o galope.
Ouvindo-lhe a observação, Lívia pode vê-los igualmente, ao longo da estrada ampla, e logo foi para o interior, a fim de prevenir o marido.
Efetivamente, daí a minutos, estacavam à porta dois cavalos suados e ofegantes. Um homem trajado à romana, em companhia de um guia judeu, apeava rápido e bem disposto.
Tratava-se de Quirílius, liberto de confiança de Flamínio Sevérus, que vinha, em nome do patrão, trazer a Públio e família algumas notícias e numerosas lembranças.
Essa surpresa amável encheu o dia de gratas recordações e sadios prazeres, motivando horas das mais inefáveis alegrias. O nobre patrício não esquecera os amigos distantes, e, entre as notícias confortadoras e considerável remessa de dinheiro, vieram doces lembranças de Calpúrnia, endereçadas a Lívia e aos dois filhinhos.
27 Naquele dia, Públio Lêntulus ocupou-se tão somente de encher numerosos rolos de pergaminho, por mandar ao companheiro de luta notícias minuciosas de todas as ocorrências. Entre elas estava a boa-nova do restabelecimento da filhinha, atribuído ao clima adorável da Galileia. † Mas, como possuía naquele valoroso descendente dos Sevérus uma alma de irmão dedicado e fiel, a cujo coração jamais deixara de confiar as mais recônditas emoções do seu espírito, escreveu-lhe longa carta, em suplemento, com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade de Jesus-Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito ponto de vista humano, sem nenhum arrebatamento sentimental. E, por fim, Públio e Lívia anunciavam alegremente, aos seus amigos distantes, que retornariam a Roma possivelmente dentro de um mês, dado o perfeito restabelecimento da pequena Flávia.
28 Terminado o longo expediente, já era tarde; mas, nesse mesmo dia, ao cair da noite, quando os dois esposos se entretinham no triclínio a reler as doces palavras dos queridos ausentes, tecendo as esperanças risonhas do breve regresso, eis que Sulpício se faz anunciar em companhia de um mensageiro de Pilatos. †
Atendendo-os no gabinete particular, o senador recebe a visita do emissário, que se lhe dirige, respeitosamente, nestes termos:
— Ilustríssimo, o senhor governador da Judeia † participa-vos haver chegado à sua residência dos arredores de Nazaret, onde espera o grato prazer de vossas ordens e notícias.
— Agradecido! — replicou Públio, bem humorado, acrescentando: — Ainda bem que o senhor procurador não está distante, ensejando-me pouca demora em Jerusalém, no meu regresso a Roma em breves dias!…
Algumas expressões protocolares foram trocadas, mas Públio Lêntulus não reparou nas atitudes de Sulpício, que lhe deitava olhares significativos.
Emmanuel