O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Há dois mil anos… — Emmanuel — 1ª Parte


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Em casa de Pilatos

1 A secura da natureza, onde se ergue Jerusalém,  †  proporciona à célebre cidade uma beleza melancólica, tocada de angustiosa monotonia.

Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase o atual, como hoje se observa. Apenas a colina de Mizpa, com as suas tradições suaves e lindas, representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos do forasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.

Todavia, devemos registar que, na época da permanência de Públio Lêntulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores de vida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores, revelando novo senso estético, por parte de Israel. A predileção pelos monólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita, fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas, renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A joia maravilhosa era, porém, o templo,  †  todo novo, da época de Jesus. Sua reconstrução fora determinada por Herodes,  †  no ano de 21, notando-se que os pórticos levaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda, que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso do tempo, somente ficaram concluídos pouco antes da época de sua completa destruição.


2 Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia do pensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunal e o templo supremos de toda uma raça.

Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas de ordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se no templo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de uma pátria.

Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos, não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinados todos os dias, mas a Torre Antônia,  †  onde se aquartelavam as forças armadas do Império, dominava o recinto, facilitando a fiscalização constante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massas populares.


3 Públio Lêntulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava a considerar como episódio sem importância, retomava certa serenidade para o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectos áridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, no qual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.

Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetos distantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio. Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-se notável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, as atitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadora e os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe em rosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lhe o espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes. Semelhantes acontecimentos eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha de relatar os seus mais íntimos desgostos.


4 Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíam para acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.

Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que, contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente à residência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com os patrícios recém-chegados da Corte.

Horas a fio eram empregadas nesse mister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia os pensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo de espírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.

Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamar das paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenoso ciúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrás daqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com que foram recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia um marnel de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranquilidade de suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação e penetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e doloroso das provações que Jerusalém lhes reservava.


5 Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas, Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família se reconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitas.

No dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus, compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudia igualmente os esperava com sorriso bondoso e acolhedor.

Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo de notar que, contra toda a expectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, no pressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisa contra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulher adivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas no anfitrião daquela noite.


6 O jantar servia-se em condições especialíssimas, segundo os hábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.

Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobrarem nos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos de um meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na sua simplicidade de coração. Numerosa falange de escravos se movimentava em todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face de tão reduzido número de comensais.

Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando os nomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostos com singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio, forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidas em pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se os servos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar as iguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidas com a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso e antigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas, enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas de prata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos, onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravos jovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante, braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Alguns agitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas, enquanto outros, curvados aos pés dos convivas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula e intemperança.

Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dos escravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salões com centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens e bem postos executam danças apaixonadas e voluptuosa em homenagem aos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a sua arte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um número de gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte, porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa o doloroso espetáculo do sangue humano.


7 A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos o jantar e cerimônias complementares, a caravana de amigos, acompanhada agora de Sulpício Tarquínius, se dirigia para o amplo e bem posto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.

— Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta — exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosa cortesia. — Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de reviver o ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantes guardam o coração e o pensamento.

— Senador, esta casa vos pertence — replicou Pilatos com intimidade. — Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razão para agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de vos hospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residência do pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo a circunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa de vosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra de nossos costumes, em sociedade.

— Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanhara atento a gentileza da oferta. — Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessa medida — e, acenando confiante para a consorte, terminava a sua ponderação — não é verdade, minha querida?

Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade, redarguiu, com surpresa de todos os presentes:

— De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hospedes efetivos; contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende à saúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento, sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha a verificar, a favor da pequena enferma…


8 E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, onde descansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:

— Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todos nós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordado…

Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receios escrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo uma antítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situação penosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redarguindo:

— Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho a pequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará o clima de Jerusalém para a sua cura completa.

E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer a dolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nos braços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de mal disfarçadas feridas.


9 Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação das palavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para as suas inquietações maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido, considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula, dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direção da palestra, sobremaneira comovido:

— É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa o objeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos os problemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias que examino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, de modo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico, aspirando um ar mais puro.

— Pois bem — replicou Pilatos, com segurança —, em assuntos de clima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontro nestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos os recantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançar que a Galileia  †  está em primeiro plano. Sempre que posso repousar dos labores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vila dos arredores de Nazaret,  †  para gozar a serenidade da paisagem e as brisas deliciosas do seu lago imenso.  †  Concordo em que a distância é muito longa, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade, nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo às solicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços com inumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim de superintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, pois tencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energias esgotadas na luta cotidiana.


10 Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém, quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que me refiro?

— Nobre amigo — exclamou o senador, agradecido — devo poupar-vos tanto trabalho, mas, ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar em Nazaret a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva, reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e onde possamos residir despreocupadamente por alguns meses.

— Com o máximo prazer.

— Muito bem — atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia mal dissimulava venenoso despeito —, ficarei incumbida de adaptar a nossa boa Lívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contato direto com a natureza.

— Desde que se não transformem em judias… — disse o senador, bem humorado, enquanto todos sorriam alegremente.


11 Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lhe seriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquínius, homem da confiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto, exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:

— E por falar de Nazaret, já ouvistes falar do seu profeta?

— Sim — continuou — Nazaret possui agora um profeta que vem realizando grandes coisas.

— Que é isso, Sulpício? — perguntou Pilatos, ironicamente — pois não sabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas no templo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores da Lei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma nova revelação.

— Mas, esse, senhor, é bem diferente.

— Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?

— De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e a obcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigado com a figura impressionante de um galileu ainda moço, quando passava, há alguns dias, por Cafarnaum.  † 


12 Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitos de pedra e de areia, vi considerável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração e comoção…

Eu também, como se fora tocado de força misteriosa e invisível, sentei-me para ouvi-lo.

De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um “não sei quê”, dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe as promessas de um eterno reinado… Seus cabelos esvoaçavam às brisas da tarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridades serenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer uma onda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe a limpeza da túnica, cuja brancura casava-se à leveza dos seus traços delicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos os sofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando os pensamentos de quantos o escutavam… Falava de nossas grandezas e conquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargas afirmativas acerca das obras monumentais de Herodes,  †  em Sebaste,  †  asseverando que acima de César  †  está um Deus Todo Poderoso, providência de todos os desesperados e de todos os aflitos… No seu ensinamento de humildade e amor, considera todos os homens como irmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nós não conhecemos…


13 A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional, característico dos sentimentos filhos da verdade.

O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutando-lhe a palavra com o maior interesse.

Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador, interrompeu-o, exclamando:

— Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus único não é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, não podemos concordar com esse conceito de fraternidade irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império. Onde ficam as prerrogativas do patriciado?

O que mais me admira, porém — exclamou com ênfase, dirigindo-se particularmente ao narrador —, é que, sendo tu um homem prático e decidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novo profeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuência de um lictor pode significar enorme prestígio para as ideias desse homem?

— Senhor — respondeu Sulpício, desapontado —, eu próprio não saberia explicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei, igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivas e perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei, também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seus discípulos e seguidores como um estado alegre e feliz, o que, de algum modo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.


14 Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses, porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalo dos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seus companheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e mais humildes do lago.

— Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? — retornou Pilatos, com energia.

— Enganais-vos, quanto a isso — respondeu o lictor, mais senhor de si — não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notando-lhe a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégios sobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vou narrar, respondendo à vossa arguição do momento.


15 Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidade a que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado. Depois que a voz do profeta de Nazaret havia deixado uma doce quietude na paisagem, o meu conhecido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para a criança que agonizava. Vi-o a elevar os olhos radiosos para o firmamento, como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei que suas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haver experimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar e buscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhos enternecidos…

— Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suas perlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíade,  †  sobre esses fatos — exclamou o governador, visivelmente contrariado.

— O caso é curioso — disse Públio Lêntulus, intrigado com a narrativa.

— A verdade, contudo, meu amigo — objetou Pilatos, dirigindo-se a ele —, é que nessas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo é muito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência de raciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-se empolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido de salvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que, atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenho nos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotes do Sinédrio,  †  que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizar conosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.


16 Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoras presentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadas com a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe bebera as palavras com o máximo de curiosidade infantil.

Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos os presentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral, exclamando:

— Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, age contra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merece severa punição por suas narrativas inoportunas!…

Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquanto rematava:

— Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando o coração desses aborrecimentos imprevistos.

A ideia foi aceita com geral agrado.

A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamento confortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em três grupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochas brilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.

Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatos multiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava ao lado de Fúlvia, tendo o pretor Lêntulus resolvido permanecer no arquivo, examinando algumas obras de arte.


17 Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, o governador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhe figurava mais sedutora e mais bela.

O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, parecia aumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.

— Nobre Lívia — exclamou com emoção —, não posso guardar por mais tempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza me inspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhas palavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessa admiração que me avassala!…

— Também eu — revidou a pobre senhora, com dignidade e energia espontâneas — lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhante paixão. Vossas palavras me surpreendem amargamente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadas responsabilidades de procurador do Estado, como por considerar a amizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.

— Mas, em assuntos do coração — atalhou ele, solícito — não podem prevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as mais elevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarar a solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo onde vos teria visto antes!… a realidade é que, há uma semana, tenho o coração dilacerado e oprimido… Encontrando-vos, parecia deparar-se-me esta imagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradável e penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde o coração!…

— Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, além do inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Se tendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, não deveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vida privada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade da própria consciência.

— Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos esses imperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgado desta maneira?

— Calai-vos, pelos deuses! — murmurou Lívia, assustada e empalidecida. Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelo para o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estas referências que me amarguram!… Tenho razões para crer na vossa ventura conjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputando uma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever…


18 Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora, amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.

Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim, onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando as consequências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa, torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contato ligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão e inquebrantável firmeza.

Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal de agradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos, renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.


19 Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto do governador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveram intensamente.

Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes, através dos claros abertos na ramagem sombria.

— Ora esta! — exclamou o lictor para a companheira, observando as minudências da palestra que acabamos de descrever. — Então, já perdeste as boas graças do procurador da Judeia?

A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena, estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentos de ciúme e despeito.

— Não respondes? — continuava Sulpício, gozando o espetáculo. — Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimento profundo de dedicação e lealdade?

A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação, rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre as suas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seus ouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiam adivinhar naquele colóquio inesperado.


20 Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlvia voltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:

— Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares num cometimento.

— Qual?

— O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento da infidelidade de sua mulher.

— Mas, como?

— Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaret, para levá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e o governador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estou adivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaret, em breves dias. Em seguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejas designado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investido nesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução de nossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bons serviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.

O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora, como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, obtemperou em voz firme:

— Tudo combinado?

— De pleno acordo!… — respondeu Sulpício, já resoluto.

E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se à caravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois de concluído o pacto tenebroso.


21 As últimas horas foram consagradas às despedidas, com a afabilidade exterior do convencionalismo social.

Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim, considerando, não somente a sua necessidade de repouso íntimo, como também a importância social das personalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe, qualquer expressão menos digna, no terreno do escândalo pelas palavras.


Emmanuel


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