1 Os últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.
As águas do Tibre, † ladeando o Aventino, † deixavam retratados os derradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavam liteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.
Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciando aguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares e coletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos da noite.
2 Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármores preciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atenção do forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas. Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário, dado o aspecto artístico e imponente.
Era, de fato, a residência do senador Públio Lêntulus Cornélius, homem ainda moço, que, à maneira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, de acordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antiga família de senadores e cônsules da República.
3 O Império, fundado com Augusto, † havia limitado os poderes senatoriais, cujos detentores não exerciam nenhuma influência direta nos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera a hereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias, estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, na hierarquia social.
São dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. Públio Lêntulus, em companhia do seu amigo Flamínio Sevérus, reclinado no triclínio, termina o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expede ordens domésticas a uma jovem escrava etrusca.
O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menos de trinta anos de idade, não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado à túnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos se lhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesma indumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãs precoces, em penhor de bondade e experiência da vida.
4 Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos, ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio da noite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento denunciasse chuva iminente.
— A verdade, meu caro Públio — exclamava Flamínio, pensativo —, é que te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisa modificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos no caso de tua filhinha?
— Infelizmente — retorquia o patrício com amargura — já lancei mão de todos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minha pobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda do Tíbur, † procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmou tratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. O facultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão da sua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas, segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tíbur presume tratar-se de um caso de lepra.
— É uma presunção atrevida e absurda!
— Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relação aos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos de todas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhos de cada dia.
— É verdade… — concordou Flamínio, com amargura.
5 Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos dois amigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede das roseiras floridas, que enfeitavam as colunas graciosas e claras.
— E o pequeno Plínio? — perguntou Públio, como desejoso de proporcionar novo rumo à conversação.
— Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimas disposições. Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lhe os caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso e rebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só se entregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; no entanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momento de irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão, concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de um estabelecimento esportivo do Campo de Marte, † obtendo um dos lugares de maior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempre da tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos para o futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossas famílias.
6 Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse o coração carinhoso de pai.
— Todavia — revidou — apesar de nossos projetos, os áugures não favorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha, com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizes criaturinhas atiradas ao Velabro † . n
— Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses…
— Dos deuses? — repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. — A propósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias no cérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião de conhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-me da sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crenças hindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada um de nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outros corpos?
— De modo algum — replicou Flamínio, energicamente. — Parmênides, não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagações espirituais.
— Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Como poderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque a opulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino? † A fé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemas torturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada e apodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito a pequena Flávia, nos seus sete anos incompletos para merecer tão horrendo castigo das potências celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossas divindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que nos calcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável que tenhamos vindo de longe com as nossas dívidas para com os poderes do Céu?
7 Flamínio Sevérus meneou a cabeça, como quem deseja afastar uma dúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:
— Fazes mal em alimentar semelhantes conjecturas no teu foro íntimo. Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças mais preciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. É preciso considerares que a diversidade das posições sociais é um problema oriundo da nossa arregimentação política, a única que estabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um; quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podem experimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças à enfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdos princípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziram ao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo, depois de tão angustiosas dúvidas?
— Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos — respondeu Públio, compungidamente — e ninguém mais que eu se orgulha das gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhas observações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitos dias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.
— Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra de um patrício?
8 Públio Lêntulus recebeu a pergunta mergulhado em profundas cismas. Seus olhos parados presumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dos anos.
A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendo os mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscina que enfeitava o pátio do peristilo.
Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore, reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo na palestra amistosa.
— Sonhos há — prosseguiu Públio — que se distinguem da fantasia, tal a sua expressão de realidade irretorquível.
9 Voltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido um problema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa de inexplicável abatimento.
Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagem de Têmis, † que guardamos no altar doméstico, considerando as singulares obrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma força extraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto, via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito, das quais me havia esquecido inteiramente.
10 Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido das insígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedido à época de Lúcio Sérgius Catilina, † pois o via a meu lado bem como a Cícero, † que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem. Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como se estivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado, e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava a mais íntima organização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas, aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa, assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assassínios nefandos… Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo que minhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes. Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressando involuntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmias perpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência de Cícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéis mais importantes e salientes na ignomínia… Todos os quadros hediondos do tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados…
11 Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passado culposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse de semelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poder para, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contra inimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as mais terríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava o recolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a consequente separação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei a execução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância de que a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minha presença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditas cruéis!… Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantas almas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!
12 Depois de toda a série de escândalos que me afastaram do Consulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante de carrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício do estrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústias da morte…
O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante da minha passagem pelas águas escuras do Aqueronte, quando me parecia haver descido aos lugares sombrios do Averno, † onde não penetram as claridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, de minhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação e rebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito do coração.
13 Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírio indefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo haver lobrigado a figura celeste de Lívia que no meio desse turbilhão de pavores, estendia-me as mãos fúlgidas e carinhosas.
Afigurava-me que minha esposa me era familiar de épocas remotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãos suaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figuras estranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante sereno desses juízes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homens da Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzes cariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meus pensamentos mais secretos.
Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistrados intangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a impor-me resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.
14 Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diante desse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que me pareceu a sua autoridade central dirigiu-me a palavra, exclamando:
— Públio Lêntulus, † a justiça dos deuses, na sua misericórdia, determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves as nódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época de maravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações e dificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres, a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas dores que purificam e regeneram!… Feliz de ti se bem souberes aproveitar a oportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade… Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teu desprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas ser elemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e a saúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral de tua alma, porque chegará um momento em que serás compelido a desprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberes preparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerância e de perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!… A vida é um jogo de circunstâncias que todo Espírito deve entrosar para o bem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidades que a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Não desprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho e das renúncias santificadoras… Lívia seguirá contigo pela via dolorosa do aperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os dias de provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo no caminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação do passado delituoso e obscuro!…
15 A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada e dolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração, atormentado por incoercível desalento.
Flamínio Sevérus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando o meio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetos de desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espírito daquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual, apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo, não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquele sonho, cuja nitidez e aspecto de realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeiro restabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica da brandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento do amigo que ele mais considerava irmão.
Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros, perguntou com amável doçura:
— E depois, que mais viste?
16 Públio Lêntulus, sentindo-se compreendido, recobrou energias novas e continuou:
— Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não mais lobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas, envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortando-me o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.
Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espírito regressava à Terra.
Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; um sopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei a existência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e palácios encantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.
Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos, estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e, depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossa casa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma. Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiquei adormentado numa vertigem indefinível.
Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei com febre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos de Morfeu, † me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço.
17 Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa, mas desejaria me explicasses algo a respeito.
— Explicar-te? — obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz uma tonalidade de convicção enérgica. — Bem sabes do respeito que me inspiram os áugures † do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não pode passar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemos temer a fantasia dentro de nossas perspectivas de homens práticos. Por sonharem excessivamente os atenienses ilustres, transformaram-se em escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte o reconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso da realidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícito renunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somente levado pela fantasia?
18 Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre o assunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomando-lhe as mãos generosas, exclamou angustiado:
— Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se me deixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho não me daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda te não disse tudo.
Flamínio Sevérus franziu o sobrolho, rematando:
— Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?
No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com a descrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era com grande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar ao amigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.
19 Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias do tablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altar doméstico, onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.
Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo com profundo sinal de respeitoso recolhimento.
A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos e papiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, de antepassados e avoengos da família.
Públio Lêntulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como se profundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias. Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali se enfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:
— Reconheces?
— Sim — respondeu o amigo, estremecendo —, reconheço esta efígie. Trata-se de Públio Lêntulus Sura, † teu bisavô paterno, estrangulado há quase um século, na revolução de Catilina. †
— Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foi eliminado nessas tremendas circunstâncias — exclamou Públio, com ênfase, como quem está de posse de toda a verdade — Repara bem os traços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entre mim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meu sonho doloroso?
20 O nobre patrício observou a notável identidade de traços fisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente. Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstrações alucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem e da hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimos detalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:
— Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teu raciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossas conversações desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, é natural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi, nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina, † em cujas adjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo do extinto, que fiz transportar para aqui.
21 E, num movimento de quem estava certo de todos os seus conceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:
— Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seus projetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversas minutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhas digressões do sonho inexplicável… Confronta estas letras! Não se parecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provas caligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo do coração… Serei eu Públio Lêntulus Sura, † reencarnado?
22 Flamínio Sevérus deixou pender a fronte, com indisfarçável inquietação e indizível amargura.
Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo. Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse, fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novas forças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dos seus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantos anos.
— Meu amigo — murmurou, abraçando-o —, concordo contigo, em face destes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espírito mais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumo incerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existem as realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo. Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidade do fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essas perquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vida prática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista, recomendo-te não estende-lo além do círculo de nossa intimidade fraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos com que me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nesse torvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.
23 Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quem raciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, e exclamou com doçura:
— Poderias descansar um pouco na Palestina, † levando a família para essa estação de repouso.
Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a cura de tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as tuas forças orgânicas. Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde ao nosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia † é nosso amigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e de nossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperador dispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuasses recebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia. † Que julgas a respeito? Poderias partir tranquilo, pois eu tomaria a meu cargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teus interesses e pelas tuas propriedades.
24 Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e, como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razões favoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:
— A ideia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não me autoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.
— Porquê?
— Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.
— E quando esperas esse advento?
— Dentro de seis meses.
— Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?
— Sim.
— Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.
25 Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.
Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelações lavadas e límpidas.
Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritos pouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do dia eram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios e ao movimento dos pedestres.
Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteira suntuosa, com o auxílio dos seus escravos decididos e hercúleos.
Públio Lêntulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço onde corriam céleres as brisas da noite alta.
À claridade do luar opulento, contemplou o casario romano espalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa. † Espraiou os olhos na paisagem noturna considerando os problemas profundos da vida e da alma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominava-lhe o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio e de orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado por angustiosos pensamentos.
Emmanuel
(Nota do Autor espiritual) — Bairro da antiga Roma e que se localizava sobre um pântano.