1.
Amaro não registou o convite da companheira desencarnada, em forma
de palavras ouvidas, mas recebeu-o como silencioso apelo à vida mental.
2 Dirigiu-se a pequenina copa,
pensando em Zulmira, com o insopitável desejo de comunicar-lhe o estranho
contentamento de que se via possuído.
Não seria justo envolver a esposa doente na onda de alegria em que se banhava?
3 Vimos que Odila
tremeu um instante, ao lhe observar a súbita felicidade com a perspectiva
de restauração do carinho para com a segunda mulher. 4
Compreendi o esforço que a iniciativa lhe reclamava ao coração feminino
e, mais uma vez, reconheci que a morte do corpo não exonera o Espírito
da obrigação de renovar-se. 5
No fundo, não podia sentir, de imediato, plena isenção de ciúme, entretanto,
aceitava o ideal de sublimação que se lhe implantara no sentimento e
não parecia disposta a perder a oportunidade de reajuste.
6 Anotando-lhe a queda de
forças, Clara abeirou-se dela e falou, maternal:
— Prossigamos firmes. Todo bem que fizeres a Zulmira redundará em favor de ti mesma. Não esmoreças. Ajuda-te. A vontade, à procura do bem, realiza milagres em nós mesmos. O sacrifício é o preço da verdadeira felicidade.
7 O abraço afetuoso da benfeitora
infundiu-lhe energias novas.
Os olhos dela brilharam outra vez.
Enlaçada ao marido, impeliu-o docemente ao leito em que a pobre doente repousava.
8 A enferma, por certo,
desde muito perdera o contato com qualquer manifestação afetiva por
parte do companheiro, e, assim, ao lhe ver o semblante carinhoso e feliz,
exibiu larga nota de espanto.
— Zulmira! — Perguntou ele, inclinando-se para o seu rosto ossudo e desconsolado,
— estás realmente melhor?
— Sim… sim… — Suspirou a interpelada, hesitante.
9 — Escuta! Hoje,
amanheci pensando em nós, em nossa felicidade… Não julgas seja tempo
de reagirmos contra o sofrimento que nos cerca? Preocupo-me por ti,
acamada e abatida, desde a morte de Júlio…
10 Notei que do tórax de Amaro
emanava largo fluxo de energia radiante, assim como um jato de raios
de luz verde-prateada que envolveram o busto de Zulmira, despertando-lhe
emotividade incoercível.
A desventurada senhora começou a chorar, n dando-nos a impressão de que os fluidos arremessados sobre ela lhe lavavam o coração.
11 Clarêncio, calmo, informou:
— Como vemos, a sinceridade dispõe de recursos característicos. Emite forças que não deixam margem a enganos. O sentimento puro com que Amaro se dirige agora à esposa é fator decisivo para que ela se reerga e se cure.
12 O ferroviário, auxiliado
por Odila, enxugou as lágrimas que corriam copiosas daqueles olhos macerados
e tristes e continuou:
— Peço confies em mim! Afinal de contas, somos companheiros um do outro…
Como poderei ser feliz sem o teu concurso? Não nos casamos para chorar…
13 — Amaro! — Exclamou
a interlocutora agoniada, conservando ainda os últimos resíduos mentais
do complexo de culpa em que se torturava, — como te agradeço a alegria
desta hora!… Entretanto, a imagem de Júlio não me sai da lembrança…
Sinto que o remorso me persegue. Não fiz tudo o que eu devia para salvar
o filhinho que me confiaste!…
14 — Esqueçamos
o passado, — asseverou o esposo, decidido, — todos pertencemos a Deus
e acredito que a Divina Vontade vive conosco, em toda parte. Indiscutivelmente,
Júlio nos faz muita falta, mas não podemos renunciar à vida que o Céu
nos concedeu. É imprescindível lutar, procurando a vitória.
15 Ligado à mente da primeira
esposa, que tudo fazia por ajudá-lo, prosseguiu com enternecedora inflexão
de voz:
— Não olvides que pertencemos aos compromissos morais que assumimos… O carinho do meu caçula significava muitíssimo para o meu coração, contudo, não pode ser mais importante que o nosso amor!… Refaze-te! Vivamos nossa vida!… Temos Evelina e a nossa felicidade!…
16 A doente sentou-se,
de olhos reanimados e diferentes.
2. E, enquanto o esposo acomodava-se ao lado dela, vimos Odila, de fisionomia satisfeita, dirigir-se ao quarto da filha.
2 Instintivamente acompanhamo-la,
de modo a assisti-la em qualquer dificuldade. Ela, porém, com inefável
surpresa para nós, colocou a destra sobre a fronte da menina, solicitando-lhe
a presença.
3 Findos alguns instantes,
Evelina, em Espírito, voltou ao aposento em que seu corpo repousava.
Vendo a mãezinha, correu a abraçá-la. Fundiram-se ambas num amplexo longo e comovedor, misturando-se as lágrimas.
— Enfim! Enfim!… — Clamou a jovem maravilhada.
— Minha filha! Minha filha!
4 E, em seguida, a genitora
descansou nela os olhos inflamados de esperança, pedindo súplice:
— Evelina, ajuda-nos! Se não nos unirmos sob a luz da compreensão e
do trabalho, nossa casa desaparecerá… Teu pai e eu não podemos dispensar-te
o concurso. Da saúde e da paz de Zulmira depende a feliz continuação
de nossa tarefa… Deus não nos reúne para a indiferença ou para o egoísmo
e sim para o serviço salutar de uns pelos outros!…
5 — Mãezinha, — explicou
a jovem extática, — tenho orado, tenho pedido ao seu coração nos auxilie… n
— Sim, Evelina, sei que em tua abnegação não te descuidas da prece. Jesus terá recebido teus rogos… Achava-me surda, vitimada pelo ruído destruidor de minha própria incompreensão. Sinto, porém, que minhalma desperta hoje… e vejo que nos compete algo fazer para restaurar o valor de teu pai e a alegria de nossa casa…
6 — Continuarei orando…
— Não olvides a prece, querida, mas a súplica que não age pode ser
uma flor sem perfume. Peçamos o socorro do Senhor, algo realizando para
contribuir em seu apostolado divino… 7
Comecemos por refundir a confiança em tua nova mãe. Faze-te melhor para
ela… Procura-a, desdobra-te no trabalho de preservação da tranquilidade
doméstica, a fim de que Zulmira se veja segura de teu afeto e de teu
entendimento filial… 8
Uma rosa sobre a mesa, uma vassoura diligente, uma peça de roupa cuidadosamente
guardada, uma escova no lugar que lhe compete, são serviços de Jesus,
no santuário da família, com os quais devemos valorizar o pensamento
religioso… 9 Não te
detenhas tão somente nas boas intenções. Movimenta-te no trabalho encorajador
da harmonia. Sê o anjo do serviço em nossa casinha singela! Zulmira
necessita de uma irmã, de uma filha!… Aproveita a oportunidade e faze
o melhor!…
3. Evelina, com indefinível contentamento a iluminar-lhe o rosto, enlaçou a mãezinha com extremada ternura e beijou-a, muitas vezes.
2 Logo após, passando a obedecer
à mensageira, retomou o corpo carnal e acordou deslumbrada.
Tão grande se lhe afigurava a própria ventura que detinha a impressão de estar descendo da alegria celestial.
A imagem de Odila, carinhosa e bela, ocupava-lhe, agora, todo o espelho da mente.
3 Estendeu as mãos em torno
como se ainda pudesse tocar a genitora com os dedos de carne, conservando
perfeita lembrança da inolvidável entrevista.
Intensamente feliz, ergueu-se de um salto e vestiu-se.
Finda a higiene rápida, vimos Odila recolhê-la nos braços, conduzindo-a igualmente até Zulmira.
4 Induzida pela influência
materna, passou pela copa e chegou junto da madrasta, oferecendo-lhe
pequena bandeja com a leve refeição da manhã. Amaro e a companheira
receberam-na, encantados.
— Meu Deus, — disse a doente, sorrindo, — tenho a impressão de que um anjo
penetrou nossa casa. Tudo hoje amanheceu contentamento e bom ânimo!…
5 Evelina alcançou o leito,
reuniu os dois cônjuges num só abraço e falou, jubilosa:
— Sonhei com mãezinha! Vi-a tão nítida, como se ainda estivesse conosco. Afirmou
que necessitamos de amor e recomendou seja eu para Zulmira a filha que
ela não tem!… Ah! Que felicidade!… Mamãe ouviu minhas preces!
6 O ferroviário anotou, satisfeito,
a informação, guardando, porém, consigo mesmo as recordações da noite
para não ferir as suscetibilidades da companheira, e Zulmira, a seu
turno, embora lembrasse os repetidos pesadelos que atravessara, sentindo-se
atormentada pelos ciúmes de Odila, abafou as próprias reminiscências,
para aderir com toda a alma ao otimismo daquele abençoado momento de
paz e renovação.
7 Fixando a madrasta, com
embevecimento, a menina acrescentou:
— Quero ser melhor, mais diligente e mais amiga!… Papai, você e eu seremos doravante mais felizes.
8 A pobre senhora suspirou
reconfortada e aduziu:
— Sem dúvida alguma, Odila deve ser o nosso gênio protetor… É muita alegria nesta manhã para que a nossa ventura seja simples sonho ou mera coincidência!
9 Aquele testemunho de gratidão,
partido com a melhor espontaneidade da mulher considerada, até então,
por inimiga, tocou as recônditas fibras da primeira esposa de Amaro
que, incapaz de suportar a emoção, começou a chorar entre o reconhecimento
e o regozijo.
10 Irmã Clara abraçou-a e falou,
humilde:
— Chora, minha filha! Chora de júbilo! Em verdade, quando o amor sublime penetra em nosso coração, a luz do Senhor passa a reger os passos de nossa vida.
André Luiz
[1] [No original: “começou a corar,”]
[2] [Vide: A recepção da prece de Evelina
no Templo do Socorro, instituição do Ministério do Auxílio, em
Nosso Lar.]