1.
Tornando a Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o braço amigo, mas o moço
prorrompeu em súplica:
— Não me prendam! Não me prendam! Sou a vítima!…
O Ministro absteve-se de continuar em sua afetiva manifestação.
2 No passo vagaroso de quem
carrega um fardo de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a
via pública, regressando ao aconchego doméstico.
3 Seguimo-lo a pequena distância.
Renovava-se o dia.
Pedestres marchavam diligentes, na direção do trabalho.
Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui e ali, começavam a transitar pelas ruas.
4 Em breve tempo, o rapaz,
seguido de nosso grupo, estacionou à frente de vasto conjunto residencial.
Grande relógio próximo exibia o mostrador.
Cinco horas e trinta minutos.
Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em seguida, desapareceu no interior.
5 Entramos.
Em momentos rápidos, achávamo-nos diante dele, que se esforçava por reaver o corpo físico. O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o afetuosamente, e Esteves, pouco a pouco, recuperou a calma natural.
6 Mantinha-se em suave modorra,
quando o despertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.
O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amarrada, guardando a impressão de mau sonho. Vestindo-se, apressado, notamos que minúsculo cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos a leitura de um nome: — “Mário Silva, Enfermeiro”.
7 E o nosso instrutor reafirmou:
— Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfermagem. Ouçamo-lo por alguns momentos.
8 O moço atendeu às obrigações
da higiene e, logo após, foi recebido em pequena sala do apartamento
por simpática velhinha, em cujo olhar adivinhamos a ternura de mãe.
Depois de saudação carinhosa, a senhora indagou bem humorada:
— Onde esteve esta noite, meu filho? Seu semblante carregado não me engana.
— Um sonho horrível, mamãe.
2. E fixando gestos expressivos, entre os goles do café notificou:
— Sonhei que alguém me chamava, a distância, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum doente em estado grave, não vacilei. Corri ao apelo, mas, ao invés de topar um quarto de enfermo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada e úmida…
2 E, com os recursos de imaginação
de que dispunha para corresponder às requisições da mente, o rapaz continuou:
— Era um perfeito cubículo de prisão, onde me surpreendi encarcerado,
de repente, junto de um criminoso de mau aspecto e de infortunada mulher
em pranto… 3 Senti
tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha
catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um
misto de ódio e sofrimento me tomou de assalto, junto deles, principalmente
ao lado do infeliz, cujo olhar se me afigurava cruel… 4
Perguntava, a mim mesmo, porque me não retirava de tão detestável presença,
mas, enquanto o homem me repelia, a mulher me provocava o maior enternecimento…
Por mais estranho que pareça, experimentava o desejo de agredi-lo e
de acariciá-la, ao mesmo tempo. Achava-me em expectativa, quando o criminoso
avançou para mim, com o propósito evidente de liquidar-me, ao passo
que a pobrezinha procurava defender-me. Estava atônito, ignorando se
o condenado pretendia assassinar-me, ali mesmo, quando tentei uma reação
à altura! Cego de incompreensível rancor, ia precipitar-me sobre ele,
quando, rápido, apareceu um delegado policial, seguido de dois guardas,
que entraram na contenda, impedindo-nos o mau impulso. O chefe, segundo
percebi, de um só golpe conteve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se,
vencido, conquistando-me um respeito tão grande que, realmente, apesar
do desejo de ouvir a mulher ajoelhada, em soluços, não arredei pé do
lugar em que me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápidas, o delegado
trouxe, então, à cela outros ajudantes que arrastaram meu adversário
para fora… Logo após, acomodando-me numa velha cadeira, reconduziu a
jovem para o interior do cárcere…
5 Estampou na fisionomia a
expressão de quem se propunha inutilmente lembrar-se e, decorridos longos
instantes de reticência, rematou:
— Depois… depois, não consigo precisar as recordações… Sei apenas que me pus
a correr, em fuga para nossa casa, de vez que os policiais se mostravam
igualmente dispostos a recolher-me. Temendo o xadrez, acordei estremunhado
e abatido…
6 A velhinha, que escutava,
atenciosa, comentou, calma:
— Há sonhos que valem por terríveis pesadelos…
— É o que senti, — concordou Mário, preocupado.
3. A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acrescentou:
— Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?
2 O rapaz cobriu-se de leve
palidez, mostrou-se mais taciturno e falou, triste:
— Quem sabe?
— Você nunca mais teve notícia de nossa antiga companheira?
— Não. Tenho apenas a informação de que mora aqui mesmo, onde o marido é ferroviário de importância.
— Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!… Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!…
3 O moço fixou um gesto de
amargura e observou:
— Ora, mamãe, evitemos recordações sem proveito. Zulmira não deve reaparecer em minha memória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor sentimento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reúno em minha lembrança. Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nossa transferência para outro rumo…
4 E, transcorridos alguns
instantes, ajuntou:
— Meu sonho foi um simples pesadelo. Alguma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação alimentar…
5 A senhora sorriu, desapontada,
e aduziu:
— Cá por mim, estou certa de que à noite reencontramos as pessoas que
amamos ou detestamos. Nosso Espírito, no sono, procura os afetos ou
os desafetos do caminho para acertar as próprias contas. Disso, não
tenho qualquer dúvida.
6 O filho, indiscutivelmente
enfadado, reergueu-se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça branca
e concluiu:
— O relógio é inflexível. O sonho passou e agora é a realidade que
me espera. Devo cooperar no serviço operatório de duas crianças, às
oito em ponto. Não me posso demorar. O hospital não cogita de pesadelos.
7 Mostrou um sorriso forçado
e despediu-se.
A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa…
8 Preparando-nos para a retirada,
trazia o meu cérebro castigado por obsidiantes interrogações. Encontráramos
um novo capítulo na história da oração de Evelina?
Amaro e Zulmira, mencionados pelo enfermeiro, seriam as mesmas personagens que havíamos visitado anteriormente?
9 Dispunha-me à inquirição,
quando o olhar de Clarêncio cruzou com o meu. Registando-me a estranheza,
informou:
— Já sei o teor de tuas interrogações. Realmente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O passado fala no presente. Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate.
10 — E reencontrar-se-ão para
o desdobramento das lutas redentoras em que se envolvem? — Perguntou
Hilário, admirado.
— Inevitavelmente, — acentuou o instrutor com voz segura.
11 A dona da casa, mãe devotada
e sensível, meditando no sonho do filho, embora movimentando automaticamente
a vassoura, orava por ele, rogando a Jesus o abençoasse.
Anotávamos-lhe as reflexões na mente preocupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar à mulher escolhida. Conhecia-lhe o temperamento enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado e vencido…
12 O pensamento em prece escapava-lhe
da cabeça, como tênue esguicho de luz.
Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe forças calmantes, que lhe sossegaram o coração.
13 Em seguida, o orientador
no-la apresentou, generoso:
— Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiravelmente. Coração abnegado, alma rica de fé.
Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas.
14 De regresso, reparando que
estávamos desejosos de seguir Mário Silva para obter maiores informes,
no desenvolvimento de nossa história que começava a ser fascinante,
o Ministro recomendou:
— Não convém incomodar nossos amigos no curso das obrigações diuturnas, provocando
elucidações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. 15
Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo físico se refaz a alma invariavelmente
procura o lugar ou o objeto a que imanta o coração.
16 Ouvimos o orientador e aquietamo-nos.
Cabia-nos aguardar a noite, quando se estenderiam as nossas experiências.
André Luiz