1.
Numa sala ampla, em que numerosas entidades trabalhavam solícitas, Clarêncio
recebeu da jovem um pequeno gráfico que passou a examinar, cauteloso.
2 Em seguida, comentou, espontâneo:
— Ainda agora, falávamos de responsabilidade. Eis um fato que nos ilustra os conceitos.
3 E, exibindo o documento
que trazia nas mãos, explicou:
— Temos aqui uma oração comovedora que superou as linhas vibratórias comuns
do Plano de matéria mais densa. Parte de uma devotada servidora que
se ausentou de nossa cidade espiritual há precisamente quinze anos terrestres,
para determinadas tarefas na reencarnação. Não seguiu, porém, desassistida.
Permanece sob nossa orientação.
2.
O nascimento e o renascimento, no mundo, sob o ponto de vista físico,
jazem confiados a leis biológicas de cuja execução se incumbem Inteligências
especializadas, contudo, em suas características morais, subordinam-se
a certos ascendentes do Espírito.
2 O Ministro deteve-se alguns
instantes, analisando a pequenina e complicada ficha, todavia, como
se provocasse a continuidade da lição que recebíamos, meu companheiro
considerou:
3 — Mas, indiscutivelmente,
na reencarnação há um programa de serviço a realizar…
— Sim, sem dúvida, — aclarou o instrutor, — quanto mais vastos os recursos
espirituais de quem retorna à carne, mais complexo é o mapa de trabalho
a ser obedecido. 4
Quase todos temos do pretérito expressivo montante de débito a resgatar
e todos somos desafiados pelas aquisições a fazer. Nisso está o programa,
significando em si uma espécie de fatalidade relativa no ciclo de experiências
que nos cabe atender; entretanto, a conduta é sempre nossa e, dentro
dela, podemos gerar circunstâncias em nosso benefício ou em nosso desfavor.
5 Reconhecemos, assim,
que o livre arbítrio, também relativo, é uma realidade inconteste em
todas as Esferas de evolução da consciência. 6
Não podemos olvidar, contudo, que, em todos os Planos, marchamos em
verdadeira interdependência. Nas linhas da experiência física, até certo
ponto, os filhos precisam dos pais, os doentes necessitam dos médicos
e os moços não prescindem do aviso dos mais velhos. 7
Aqui, a habilitação depende dos educadores, o amparo eficiente exige
quem saiba distribuí-lo, e a transferência de domicílio para trabalho
enobrecedor, quando se trata de Espíritos sem méritos absolutos, reclama
o endosso de autoridades competentes.
3.
— Mas, que vem a ser uma oração refratada? — Indagou o meu colega, mordido
de curiosidade.
2 Hilário fora igualmente
médico no mundo e, tanto quanto eu, permanecia em tarefas ligadas à
responsabilidade de Clarêncio, adquirindo conhecimentos especializados.
3 — A prece refratada é aquela
cujo impulso luminoso encontrou a direção desviada, passando a outro
objetivo.
Inclinávamo-nos a desfechar novas perguntas, no entanto, o orientador sossegou-nos, esclarecendo:
— Esperem. Reconhecerão comigo que nos achamos todos imanados uns aos outros.
4 Em seguida, falou
para a jovem que o observava, respeitosa:
— Chame a irmã Eulália.
5 Alguns momentos passaram,
rápidos, e a cooperadora mencionada apareceu irradiando bondade e simpatia.
— Irmã, — disse Clarêncio, preciso, — este gráfico regista aflitivo apelo
de Evelina, cuja volta ao aprendizado na carne foi garantida por nossa
organização. Parece-me estar a pobrezinha em extremas dificuldades…
6 — Sim, — concordou
a interpelada, — Evelina, apesar da fragilidade do novo corpo, vem sustentando
imensa luta moral. O pai, sobrecarregado de questões íntimas, tem a
saúde periclitante e a madrasta vem sofrendo obstinada perseguição por
parte de nossa desventurada Odila.
7 — A genitora de Evelina?
— Sim, ela mesma. Ainda não se resignou a perder a primazia feminina
no lar. Há dois anos empenho energia e boa vontade por dissuadi-la.
Vive, porém, enovelada nos laços escuros do ciúme e não nos ouve. O
egoísmo desbordante fá-la esquecida dos compromissos que abraçou. 8
Zulmira por sua vez, a segunda esposa de Amaro, desde a morte do pequenino
Júlio caiu em profundo abatimento. Como não ignoramos, o pequeno desencarnou
afogado, consoante as provas de que se fez devedor. 9
A madrasta, contudo, que chegou a desejar-lhe o desaparecimento por
não amá-lo, encontrando-se sob as sugestões da mulher que a precedeu
nas atenções do marido, crê-se culpada. 10
Evelina, depois de perder o maninho em trágicas circunstâncias, acha-se
desorientada, entre o genitor aflito e a segunda mãe, em desespero…
Ainda anteontem, pude vê-la. 11
Chorava, comovedoramente, diante da fotografia da mãezinha desencarnada,
suplicando-lhe proteção. Odila, porém, envolvida nas teias das próprias
criações mentais, não se mostra capaz de corresponder à confiança e
à ternura da menina. 12
Ela, entretanto, tem insistido com tal vigor na obtenção de socorro
espiritual que as suas rogativas, quebrando a direção, chegam até aqui,
de tal modo…
13 Reparávamos o pequeno gráfico
em silêncio.
Sustando a pausa longa, o Ministro fixou Hilário e indagou:
— Compreendem agora o que seja uma oração refratada? Evelina recorre ao Espírito
materno que não se encontra em condições de escutá-la, mas a solicitação
não se perde… Desferida em elevada frequência, a súplica de nossa irmãzinha
vara os Círculos inferiores e procura o apoio que lhe não faltará.
4. Passeando em nós o olhar muito lúcido, concluiu:
— Desejariam cooperar conosco na tarefa assistencial?
2 Sem dúvida, o caso fascinava-nos
a atenção.
O orientador, no entanto, recomendou esperássemos dois dias. Desejava inteirar-se, a sós, de todas as ocorrências, para instruir-nos com segurança, quando estivéssemos a usufruir-lhe a companhia.
3 Nossa excursão, todavia,
foi marcada e, no momento preciso, achávamo-nos a postos.
Sem delonga na viagem, Clarêncio, Eulália, Hilário e eu encontramo-nos em residência modesta, mas confortável, num dos bairros do Rio de Janeiro.
4 O relógio citadino acusava
exatamente vinte e uma horas.
Entramos.
Em estreito compartimento, à guisa de gabinete de trabalho e biblioteca, um homem de trinta e cinco anos presumíveis lia, com visíveis sinais de preocupação, um manual de mecânica.
Na secretária singela, desdobravam-se publicações diversas, denunciando-lhe os estudos.
5 Clarêncio, assumindo com
mais propriedade o papel de mentor do nosso grupo, informou, gentil:
— Este é Amaro, o chefe da casa. Tem, no longo pretérito, complicados compromissos. Em muitas ocasiões, usou projéteis e lâminas de ferro para o mal. Hoje, é servidor categorizado numa ferrovia…
6 Em seguida, passamos a gracioso
quarto próximo.
Encantadora adolescente de catorze anos bordava iniciais num lenço de linho.
Magra e triste, parecia concentrar a mente nos olhos grandes e serenos. Não nos assinalou a presença, mas, ao contato das mãos espirituais do Ministro, revelou indefinível contentamento interior.
7 Instintivamente, desviou
o olhar do pano alvo e fixou-o num retrato de mulher que pendia da parede.
Sorriu, enlevada, qual se conversasse com a imagem, enquanto Clarêncio
nos dizia:
— Esta é a nossa Evelina, cuja reencarnação foi por nós organizada,
faz alguns anos. A fotografia é uma lembrança da mãezinha que já partiu.
8 Evelina está ligada
aos pais, através de imenso amor, desde séculos remotos. Veio ao encontro
de criaturas e situações das quais necessita para a garantia da própria
ascensão, mas trouxe também consigo a tarefa de auxiliar os progenitores.
9 No momento, acredita-se
amparada pela mãezinha, entretanto, pelos méritos já acumulados na vida
espiritual, é ela mesma quem continua socorrendo o coração materno,
ainda em luta…
10 Abracei, comovido, a mocinha
extática, que se guardava em luminoso halo de tranquilidade e, por alguns
instantes, meditei na grandeza do amor e na sublimidade da oração.
André Luiz