1 Minha alma ardendo em febre ante o espaço sombrio,
Sob espessa ilusão tornara-se idiota.
Qual duende do horror, contornando o vazio,
Ia e vinha a penar sem luz, sem paz, sem rota… n
2 O ponteiro do tempo errava em desvario…
E eis que horrendo tremor lambe a terra ignota… n
Na tortura do assombro, agoniado, espio
A tormenta abismal na vastidão remota…
3 Fogaréu a verter de sinistras montanhas…
O fumo a espiralar mil sensações estranhas…
Lagos de lodo e fel em lava incandescente… n
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4 Agora, mais feliz, sem que o verbo me exprima,
Sei que do Umbral de angústia aos Páramos de Cima, n
Ninguém padece, dorme ou sonha eternamente!… n
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1 … E estou preso à memória — horrendo pelourinho… (15) n
É o passado a bramir… Emoções e lugares…
Ódio, aflição, amor… Insano torvelinho…
Casam-se riso e pranto em sonhos e avatares.
2 O tempo — velho tempo —, o lúgubre adivinho, (19)
Revolve-me no ser as ânsias e os pesares…
Acusa-me feroz e fere-me, escarninho,
Atando-me aos grilhões de angústias invulgares.
3 Se guardo além da morte a máscara serena,
Trago no coração a dor que me condena,
Ante a sombra que fui, tangendo a vida a esmo. n
4 A consciência exuma as transgressões remotas
E o clarim do dever repete em largas notas:
— Ninguém foge do mal que plantou por si mesmo.
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[1] Antônio FÉLIX DE BULHÕES Jardim — Tendo concluído, com 20 anos, o curso de Direito na Faculdade do Estado de S. Paulo, Félix de Bulhões ocupou diversos cargos na magistratura goiana, chegando a desembargador. Poeta, jornalista e político, fundou várias publicações, dentre outras, Goiaz, Província de Goiaz e Tribuna Livre, onde expunha as ideias de liberal e autêntico antiescravagista. “Muitas vezes” — di-lo o Dr. Jerônimo de Morais, Discurso…, pág. 7 — “os seus períodos eram cortantes como o bisturi dos cirurgiões, quando esvurmava as chagas sociais, ou se convertiam em látegos cruéis com que fustigava os adversários desleais…” (Goiás, 28 de Agosto de 1845 — Goiás, Est. de Goiás, 29 de Março de 1887.)
BIBLIOGRAFIA: Poesias.
[2] Verso 4 - Cf. nota nº 2, pág. 36.
[3] Verso 6 - Suarabácti : “i-g-no-ta”.Cf. nota 1, pág. 47.
[4] Verso 11 - Aliteração em l.
[5] Verso 13 - Antítese: Umbral — Páramos de Cima.
[6] Verso 14 - Descrição magistral das paisagens umbralinas, que, segundo as instruções de Amigos Espirituais, começam na crosta terrena.
[7] Versos 15-19. Excelentes imagens: memória, horrendo pelourinho e o tempo, lúgubre adivinho. Cf. o soneto “A Vida Humana” (apud Veiga Netto, Antologia Goiana, pág. 179), 1º verso: “…é um mar que embala e que espedaça…”
[8] Verso 25 - Ler com hiato: vi/da a/ es/mo.