1.
Acompanhando o Assistente, passamos a cooperar na rearmonização de pequena
família domiciliada em subúrbio de populosa capital.
2 Ildeu, o chefe da casa,
homem que mal atingira a madureza física, pouco além dos trinta e cinco
de idade, encontrara em Marcela a esposa abnegada e mãe de seus três
filhinhos, Roberto, Sônia e Márcia; entretanto, seduzido pelos encantos
da jovem Mara, moça leviana e inconsequente, tudo fazia para que a esposa
o abandonasse.
3 Marcela, porém,
educada na escola do Dever, recolhia-se no lar e tudo fazia para não
deixar perceber a própria dor.
4 Pelos gestos rudes e pela
deplorável conduta em casa, não desconhecia a modificação do pai de
seus filhos, e, recebendo cartas insultuosas da rival que lhe disputava
o companheiro, sabia chorar em silêncio, confiando-as ao fogo para que
não caíssem sob o olhar do esposo.
5 Doía-nos, cada noite, vê-la
em prece, ao lado das criancinhas.
Roberto, o primogênito, com nove anos de idade, acariciava-lhe a cabeça, adivinhando-lhe os soluços imobilizados na garganta, e as duas pequeninas, na inconsciência infantil, repetiam maquinalmente as orações ditadas pela nobre senhora, oferecendo-as a Jesus, em favor do “papai”.
6 Em atormentada vigília até
noite alta, agoniava-se-lhe o espírito, observando Ildeu, estróina,
alcançando o lar, tresandando a licores alcoólicos e exibindo os sinais
de aventuras inconfessáveis.
7 Se erguia a voz, lembrando
alguma necessidade dos meninos, retorquia ele, irritado:
— Vida infame! Sempre você a recriminar-me, a aborrecer-me, a perseguir-me com censuras e petitórios!… Se quiser dinheiro, trabalhe. Se eu soubesse que o casamento seria isso, teria preferido estourar os miolos a assinar um contrato que me escraviza a existência inteira!…
8 E gritando, intemperante,
mostrava-nos a tela das suas recordações, em que Mara, a jovem sedutora,
lhe surgia à mente, como sendo a mulher ideal. Cotejava-a com a esmaecida
figura da esposa que as dificuldades acabrunhavam e, governado pela
imagem da outra, entregava-se a chocantes excitações, ansiando fugir
do lar.
9 Marcela, em pranto, suplicava-lhe
tolerância e serenidade, acentuando que não desdenhava o serviço.
Despendia o tempo de que dispunha na cooperação mal remunerada, em favor de lavanderia modesta, contudo, os afazeres domésticos não lhe permitiam fazer mais.
10 — Hipócrita!
— Berrava o marido que a cólera transtornava, — e eu? Que pretende você
de mim? Posso, acaso, fazer mais? Sou um homem dependurado em lojas
e armazéns… Devo a todos!… Por sua causa, simplesmente em razão do seu
desperdício… Não sei até quando poderei aturá-la. Não será mais aconselhável
regresse você à terra que teve a infelicidade de vê-la nascer? Seus
pais estão vivos…
11 A pobre criatura
emudecia em lágrimas, no entanto, porque a voz dele fosse estentórica, quase sempre o pequeno
Roberto acordava e acorria em socorro da mãezinha, enlaçando-a, estremunhado.
12 Ildeu avançava sobre o miúdo
interventor a sopapos, clamando com insofreável revolta:
— Saia daqui! Saia daqui!…
13 E qual se o petiz lhe não
fora filho mas adversário confesso, acrescentava, cerrando os punhos:
— Tenho gana de matá-lo!… Matá-lo!… Todas as noites, esta mesma pantomima.
Bandido! Palhaço!… E o menino, agarrado ao colo materno, sofria pancadas
até recolher-se, de novo, ao leito, em pranto convulsivo.
14 Entretanto, se
as filhinhas choramingassem, eis que o genitor se desfazia em ternura,
ainda mesmo quando plenamente embriagado, proferindo, bondoso:
— Minhas filhas!… Minhas pobres filhas!… Que será de vocês no futuro?
É por vocês que ainda me encontro aqui, tolerando a cruz desta casa!…
E, não raro, ele próprio ia reacomodá-las no berço.
15 Silas e nós entrávamos em
ação, a benefício de Marcela e dos filhinhos.
Do atormentado lar, ameaçado de completa destruição, demandávamos outros setores de serviço, sem que o Assistente encontrasse oportunidade de administrar-nos esclarecimentos mais amplos.
16 Todavia, quase
que diariamente, à noite, ali aplicávamos alguns minutos em tarefas
que nos falavam aos refolhos do coração.
Contudo, apesar de nosso esforço, o chefe da família mostrava-se, cada
dia, mais indiferente e distante.
17 Enfadado e irritadiço,
não concedia à esposa nem mesmo a gentileza de leve saudação. Fascinado
pela outra, passara a odiá-la. Pretendia desobrigar-se do compromisso
assumido e trilhar nova senda…
18 No entanto, como
atender ao problema do amor às pequeninas?
— “Sinceramente, — pensava de si para consigo, — não amava a Roberto,
o filho cujo olhar o acusava sem palavras, lançando-lhe em rosto o censurável
procedimento, mas adorava Sônia e Márcia, com desvelada ternura… Como
ausentar-se delas no desquite provável? Decerto, a companheira teria
assegurados, perante a lei, os direitos de mãe…Senhora de nobre conduta,
Marcela, contaria com o favor da Justiça…”
19 Refletia, refletia…
Ainda assim, não renunciava ao carinho de Mara, cuja dominação lhe empolgava o sentimento enfermiço.
Fosse onde fosse, registava-lhe a influência sutil, a desfibrar-lhe o caráter e a dobrar-lhe a cerviz de homem que, até encontrá-la, fora honrado e feliz.
20 Por vezes, tentava
subtrair-se-lhe ao jugo, mas debalde.
Marcela apresentava o semblante da disciplina que lhe competia observar e da obrigação que lhe cabia cumprir, quando Mara, de olhos em fogo, lhe acenava à liberdade e ao prazer.
2.
Foi assim que lhe nasceu no cérebro doentio uma ideia sinistra: assassinar
a esposa, escondendo o próprio crime, para que a morte dela aos olhos
do mundo passasse como sendo autêntico suicídio.
2 Para isso alteraria o roteiro
doméstico.
3 Procuraria abolir
o regime de incompreensão sistemática, daria tréguas à irritação que
o senhoreava e fingiria ternura para ganhar confiança… E, depois de
alguns dias, quando Marcela dormisse, despreocupada, desfechar-lhe-ia
uma bala no coração, despistando a própria polícia.
4 Acompanhamos-lhe a evolução
do tresloucado plano, porquanto é sempre fácil penetrar o domínio das
formas-pensamentos, vagarosamente
construídas pelas criaturas que as edificam, apaixonadas e persistentes,
em torno dos próprios passos.
5 Na aparente calmaria que
sustentava, Ildeu, embora sorrisse, exteriorizava ao nosso olhar o inconfessável
projeto, armando mentalmente o quadro criminoso, detalhe por detalhe.
6 Para defender Marcela, porém,
cuja existência era amparada pela Mansão que representávamos, o Assistente
reforçou na casa o serviço de vigilância.
Dois companheiros nossos, zelosos e abnegados, alternativamente ali passaram a velar, dia e noite, de modo a entravar o pavoroso delito.
7 Achávamo-nos, certa feita,
em atividade assistencial ao pé de alguns doentes, quando o irmão em
serviço veio até nós, comunicando, inquieto, a precipitação dos acontecimentos.
8 De alma aturdida pela influência
de homicidas desencarnados que lhe haviam percebido os pensamentos expressos,
intentaria Ildeu aniquilar a companheira naquela mesma noite.
Silas não vacilou.
Demandamos, de imediato, a casa singela em que se reunia a equipe doméstica atormentada.
9 Dispondo da extensa autoridade
de que se achava investido, o nosso orientador inicialmente
baniu os alcoólatras e delinquentes desencarnados que ali se recolhiam, empregando o concurso
de entidades amigas, em rotina de trabalho nas vizinhanças.
10 Apesar da providência, o
plano infernal na cabeça de nosso pobre amigo evidenciava-se integralmente
maduro.
A madrugada ia alta.
11 Com o coração precípite,
relanceando o olhar medroso pelas paredes nuas do gabinete em que examinava
o tambor de um revólver, n qual se nos adivinhasse a presença, o chefe
da família revelava-se disposto à consumação do ato execrável.
12 Revestindo-lhe todo o cérebro,
surgia a cena do assassínio, calculadamente prevista, movimentando-se
em surpreendente sucessão de imagens…
13 Oh! Se as criaturas encarnadas
tivessem consciência de como se lhes exteriorizam as ideias, certamente
saberiam guardar-se contra o império do crime!
14 O irrefletido pai pensava
demandar o aposento dos filhos, para trancá-los à chave, de maneira
a evitar-lhes o testemunho, quando Silas, de improviso, avançou para
o leito das meninas e, utilizando os recursos magnéticos de que dispunha,
chamou a pequena Márcia, em corpo espiritual, a rápida contemplação
dos pensamentos paternos.
15 A criança, em comunhão com
o quadro terrível, experimentou tremendo choque e retornou, de pronto,
ao veículo físico, bradando, desvairada, como quem se furtasse ao domínio
de asfixiante pesadelo:
— Papai!… Paizinho! Não mate! Não mate!…
16 Ildeu, a esse tempo, já
se encontrava à porta, guardando a arma na destra e tentando manobrar
a fechadura com a mão livre.
Os gritos da menina ecoaram em toda a casa, provocando alarido.
17 Marcela, num átimo, pôs-se
de pé, surpreendendo o marido ao pé da filha, e, junto deles, o revólver
augurando maus presságios.
18 A mulher bondosa e incapaz
de suspeitar das intenções dele, recolheu cautelosamente a arma e, crendo
que o esposo pretendera suicidar-se, implorou em pranto:
19 — Oh! Ildeu,
não te mates! Jesus é testemunha de que tenho cumprido retamente todos
os meus deveres… Não quero o remorso de haver cooperado para semelhante
desatino, que te lançaria entre os réprobos das leis de Deus!… Procede
como quiseres, mas não te despenhes no suicídio. Se é de tua vontade,
monta nova casa em que vivas com a mulher que te faça feliz… Consagrarei
minha existência aos nossos filhos. Trabalharei conquistando o pão de
nossa casa com o suor de meu rosto… Entretanto, suplico, não te mates!…
20 A generosa atitude daquela
mulher sensibilizava-nos até as lágrimas.
O próprio Ildeu, não obstante o sentimento empedernido, sentia-se tocado de piedade, agradecendo, no íntimo, a versão que a esposa, digna e abnegada, oferecia aos acontecimentos, cuja direção não conseguira prever.
21 E, encontrando a escapatória
que, de há muito, buscava, longe de ouvir os brados da consciência que
o concitavam à vigilância, exclamou, à feição de vítima:
— Realmente, não posso mais… Agora, para mim, só restam dois caminhos, suicídio
ou desquite…
22 Marcela, com
o auxílio do Assistente, descarregou o revólver, reconduziu as crianças
ao sono e deitou-se, atribulada. Nos olhos tristes, lágrimas borbulhavam
na sombra, enquanto orava, súplice, na torturada quietude do seu martírio
silencioso: — “Ó meu Deus, compadece-te de mim, pobre mulher desventurada!…
Que fazer, sozinha na luta, com três crianças necessitadas?…”
23 Todavia, antes que a dor
pungente se lhe metamorfoseasse em desânimo destruidor, Silas aplicou-lhe
passes balsamizantes, situando-a na hipnose provocada, através da qual a flagelada senhora,
em desdobramento, se colocou, inquieta, diante de nós.
24 Tomando-nos à conta de mensageiros
do Céu, na cristalização dos hábitos em que comumente mergulham as almas
encarnadas, ajoelhou-se e rogou amparo.
25 Silas, porém, soergueu-a,
bondoso, e explicou:
— Marcela, somos apenas teus irmãos… Reanima-te! Não te encontras sozinha.
Deus, Nosso Pai, jamais nos abandona… 26
Concede, sim, liberdade ao teu esposo, embora saibamos que o dever é
uma bênção divina da qual pagaremos caro a deserção… Que Ildeu rompa
os laços respeitáveis dos seus compromissos, se é que julga seja essa
a única maneira de adquirir a experiência que deve conquistar… 27
Haja porém o que houver, ajuda-o com tolerância e compreensão. Não lhe
queiras mal algum. Antes, roga a Jesus o abençoe e ampare, onde esteja,
28 porque o remorso
e o arrependimento, a saudade e a dor para os que fogem das obrigações
que o Senhor lhes confia convertem-se em fardos difíceis de carregar.
Sabemos que a ele te ligaste em sagrada aliança na empresa redentora
do pretérito próximo… 29
Ainda assim, se ele esmorece, à frente da luta, em pleno exercício da
faculdade de escolher, não será justo lhe violentes o livre arbítrio,
impondo-lhe atitudes que a ele compete cultivar. 30
Ildeu ausenta-se agora dos contratos que abraçou, a benefício de si
mesmo, e interrompe o resgate das contas que lhe são próprias… Voltará,
porém, mais tarde aos débitos que olvida, talvez mais onerado perante
a Lei… 31 Não te
lamentes, contudo, e segue adiante. Sejam quais forem as lutas que te
descerem ao coração, resigna-te e não temas. Faze dos filhinhos o apoio
firme na caminhada. 32
Todo sacrifício edificante no mundo expressa enriquecimento de nossas
almas na Vida Eterna… Renuncia, pois, ao homem querido, honrando-lhe o coração, e aguarda o futuro com esperança.
33 E porque Marcela chorasse,
receando o porvir, à face das contingências materiais, Silas afagou-lhe
a cabeça e asseverou, prestimoso:
— Para mãos dignas jamais faltará trabalho digno. Contemos com a proteção do Senhor e marchemos com desassombro. Enxuga o pranto e ergue-te em espírito à Fonte do Sumo Bem!…
34 Nesse ínterim, parentes
desencarnados da jovem senhora assomaram carinhosamente ao recinto,
estendendo-lhe as mãos…
E nosso orientador confiou-lhes Marcela, chorosa, rogando-lhes ajuda para que a víssemos restaurada.
Retiramo-nos, em seguida.
3.
Foi então que nossas perguntas explodiram, insopitáveis:
2 — Por que Marcela, meiga
e honesta, era odiada pelo esposo, assim tanto? Por que a preferência
de Ildeu pelas filhinhas, com tanto desdém pelo primogênito? E a separação
em perspectiva? Seria justo procurar o nosso mentor fortalecer aquela
mãezinha desventurada para o desquite, ao invés de incentivá-la à recuperação
do amor e do devotamento do companheiro?
3 O Assistente sorriu com
manifesto desencanto e obtemperou:
— Há nas anotações do Apóstolo Mateus n
certa passagem, na qual afirma Jesus que o divórcio na Terra é permitido
a nós outros pela dureza dos nossos corações. ( † )
4 Aqui, a medida deve
ser facultada à maneira de medicação violenta em casos desesperadores
de desarmonia orgânica. Na febre alta ou no tumor maligno, por exemplo,
a intervenção exige métodos drásticos, a fim de que a crise de sofrimento
não culmine com a loucura ou com a morte extemporânea. 5
Nos problemas matrimoniais, agravados pela defecção de um dos cônjuges
ou mesmo pela deserção de ambos do dever a cumprir, o divórcio é compreensível
como providência contra o crime, seja ele o assassínio ou o suicídio…
6 Entretanto, assim
como o choque operatório para o tumor e a quinina para certas febres
são recursos de emergência, sem capacidade de liquidar as causas profundas
da enfermidade, as quais prosseguem reclamando tratamento longo e laborioso,
7 o divórcio não soluciona
o problema da redenção, porque ninguém se reúne no casamento humano
ou nos empreendimentos de elevação espiritual, no mundo, sem o vínculo
do passado, e esse vínculo, quase sempre, significa débito no Espírito
ou compromisso vivo e delongado no tempo. 8
O homem ou a mulher, desse modo, podem provocar o divórcio e obtê-lo,
como sendo o menor dos piores males que lhes possam acontecer… Ainda
assim, não se liberam da dívida em que se acham incursos, cabendo-lhes
voltar ao pagamento respectivo, tão logo seja oportuno.
4.
E porque as nossas muitas interrogações pairavam no ar, o generoso orientador
prosseguiu:
2 — No caso de Ildeu
e Marcela, já meticulosamente estudado em nossa Mansão, temos duas almas
em processo de reajuste, há vários séculos. 3
Para não nos perdermos em compridas perquirições, convém lembrar tão
somente algumas notas da existência última, em que ambos, como marido
e mulher, aqui mesmo no Brasil, se entregaram a difíceis experiências.
4 Ele, depois de casado,
continuou irrequieto, entre a irresponsabilidade e a aventura, nas quais
seduziu duas moças, filhas do mesmo lar. Primeiramente, enganou uma
delas, abandonando a esposa que a Lei lhe havia confiado. 5
Passando, porém, ao convívio da segunda companheira, que patrocinava
o desenvolvimento da irmãzinha menor, que os pais, à beira do túmulo,
lhe haviam entregue, Ildeu não vacilou em aguardar-lhe a floração juvenil
para submetê-la igualmente aos seus caprichos inconfessáveis. 6
Entrando em franca decadência moral, precipitou-as no meretrício, em
cujas correntes de sombra as pobres criaturas se viram quais andorinhas
aprisionadas na lama… 7
Abandonada a esposa, que era então a mesma companheira de agora, a sofredora
mulher, incapaz de sofrear-se no insulamento, após cinco anos de expectativa
e solidão, aceitou a companhia de um homem digno e trabalhador, com
quem passou maritalmente a viver… 8
Os dias correram sobre os dias e, quando Ildeu, ainda relativamente
moço, mas integralmente vencido pela intemperança e pelo deboche, regressou
doente à cidade em que se havia consorciado, buscando o aconchego da
esposa, cuja fidelidade carinhosa ele mesmo destruíra, não mais na ânsia
de ajudá-la ou de amá-la e sim no propósito de escravizá-la, por enfermeira
de seu corpo abatido, eis que a reencontra, feliz, junto de outro… 9
Movido de incompreensível ciúme, de vez que renegara o lar sem motivo
justo, não suporta ver a alegria da companheira, matando-lhe o eleito
do coração. 10 A breve tempo, todo o grupo que Ildeu infelicitou se reúne, inclusive ele
próprio, na Esfera Espiritual, onde a justiça da Lei sopesa, os méritos
e deméritos de cada um… 11
E, com o amparo de Abnegados Benfeitores, regressam as personagens do
drama doloroso ao resgate na reencarnação, com Ildeu à frente das responsabilidades,
por reter maiores culpas. 12
Marcela concorda em auxiliá-lo e retoma o posto antigo, ajudando-o na
condição de esposa fiel. Roberto é o companheiro assassinado que volta,
do qual Ildeu é devedor da própria vida. Sônia e Márcia são as duas
irmãs que ele arrojou ao vício e à delinquência, dele esperando hoje,
como filhas queridas, o necessário auxílio para a reabilitação.
13 O Assistente fez pequena
pausa e acrescentou:
— Vocês não ignoram, porém, que a reencarnação no resgate é também
recapitulação perfeita. 14
Se não trabalhamos por nossa intensa e radical renovação para o bem,
através do estudo edificante que nos educa o cérebro e do amor ao próximo
que nos aperfeiçoa o sentimento, somos tentados hoje pelas nossas fraquezas,
como éramos tentados ainda ontem, porquanto nada fizemos pelas suprimir,
passando habitualmente a reincidir nas mesmas faltas. 15
Segundo observam, Ildeu, displicente e surdo aos avisos da vida, é o
mesmo homem do passado, buscando a suposta felicidade, fora do templo
doméstico; desprezando a esposa, querendo estremecidamente às filhinhas
nas quais revê as companheiras do pretérito e nada faz por perder a
instintiva aversão pelo filhinho, em cujo contato adivinha o antigo
rival, que lhe foi vítima da fúria arrasadora.
5.
— Mas, — indagou Hilário, — se ele não encontra em Marcela o amor integral,
por que razão, ainda agora, na presente romagem terrena, tê-la-ia desposado?
A afetividade juvenil não é sinal de confiança e ternura?
2 — Sim, — encareceu
Silas, bondoso, — é preciso considerar que nos achamos ainda longe de
adquirir o verdadeiro amor, puro e sublime. 3
Nosso amor é, por enquanto, uma aspiração de eternidade encravada, no
egoísmo e na ilusão, na fome de prazer e na egolatria sistemática, que
fantasiamos como sendo a celeste virtude. 4
Por isso mesmo, a nossa afetividade terrestre, quando na primavera dos
primeiros sonhos da experiência física, pode ser um conjunto de estados
mentais, consubstanciando simplesmente os nossos desejos. E nossos desejos
se alteram todos os dias… 5
Em razão disso, recordemos o imperativo da recapitulação. Nessa ou naquela
idade física, o homem e a mulher, com a supervisão da Lei que nos governa
os destinos, encontram as pessoas e as situações de que necessitam para
superarem as provas do caminho, provas indispensáveis ao burilamento
espiritual de que não prescindem para a justa ascensão às Esferas Mais
Altas. 6 Assim é que
somos atraídos por determinadas almas e por determinadas questões, nem
sempre porque as estimemos em sentido profundo, mas sim porque o passado
a elas nos reúne, a fim de que por elas e com elas venhamos a adquirir
a experiência necessária à assimilação do verdadeiro amor e da verdadeira
sabedoria. 7 É por
isso que a maioria dos consórcios humanos, por enquanto, constituem
ligações de aprendizado e sacrifício, em que, muitas vezes, as criaturas
se querem mutuamente e mutuamente sofrem pavorosos conflitos na convivência
uma das outras. 8 Nesses
embates, alinham-se os recursos da redenção. Quem for mais claro e mais
exato no cumprimento da Lei que ordena seja mantido o bem de todos,
acima de tudo, mais ampla liberdade encontra para a vida eterna. 9
Quanto mais sacrifício com serviço incessante pela felicidade dos corações
que o Senhor nos confia, mais elevada ascensão à glória do Amor Divino.
6.
— Então, — aduzi, — nosso amigo Ildeu estará interrompendo o pagamento
da dívida em que se empenhou…
— Isso mesmo.
2 — E Marcela? — Perguntou
Hilário, — garantirá por ele a sustentação do lar?
— É o que esperamos e tudo faremos para auxiliá-la, já que o esposo, mais uma vez, faliu nos contratos assumidos.
3 — Não será lícito
contar, matematicamente, com o heroísmo dela à frente da casa? — Insistiu
meu colega.
— Quem poderá medir a resistência dos outros? — Falou Silas, sorrindo.
— Marcela é senhora de si e, com a deserção do esposo, é chamada a encargos
duplos. 4 Desejamos
sinceramente que ela seja forte e se sobreponha às vicissitudes da existência,
mas se resvalar para delituosos desequilíbrios, que lhe comprometam
a estabilidade doméstica, na qual os filhos devem crescer para o bem,
mais complicado e mais extenso se fará o débito de Ildeu, porquanto
as falhas que ela venha a cometer serão atenuadas pelo injustificável
abandono em que a lançou o marido. 5
Quem se faz responsável por nossas quedas, experimenta em si mesmo a
ampliação dos próprios crimes.
6 Hilário meditou… meditou…
e disse, em seguida:
— Imaginemos, porém, que Marcela e os filhinhos consigam vencer a crise, esmagando
com o tempo as necessidades de que são agora vítimas… Figuremo-los terminando
a atual reencarnação, com plena vitória moral em confronto com Ildeu,
retardado, impenitente, devedor… 7
Se a esposa e os filhos, então definitivamente guindados à luz, dispensarem
qualquer contato com a sombra, em franca ascensão às linhas superiores
da vida, a quem pagará Ildeu o montante das dívidas em que se agrava?
8 Silas estampou significativo
gesto facial e explicou:
— Embora estejamos todos, uns diante dos outros, em processo reparador
de culpas recíprocas, em verdade, antes de tudo, somos devedores da
Lei em nossas consciências. Fazendo mal aos outros, praticamos o mal
contra nós mesmos. 9
Caso Marcela e os filhinhos se ergam, um dia, a plenos Céus, e na hipótese
de guardar-se nosso amigo mergulhado na Terra, vê-los-á Ildeu na própria
consciência, sofredores e tristes, quais os tornou, atormentado pelas
recordações que traçou para si mesmo e pagará em serviço a outras almas
da senda evolutiva o débito que lhe onera o Espírito, de vez que, ferindo
os outros, na essência estamos ferindo a obra de Deus, de cujas leis
soberanas nos fazemos réus infelizes, reclamando quitação e reajuste.
— Isso quer dizer…
10 A palavra de Hilário, porém,
foi cortada pela observação do Assistente que, em lhe surpreendendo
as ideias, falou firme:
— Isso quer dizer que, se Ildeu, mais tarde, desejar reunir-se a Marcela,
Roberto, Sônia e Márcia, então redimidos nas Esferas Superiores, deverá
possuir uma consciência tão dignificada e sublime quanto a deles, de
modo a não se envergonhar de si mesmo, considerando-se a probabilidade
de triunfo para a esposa e os filhinhos, nas provas árduas que o porvir
lhe reserva.
11 — Deus meu!…
— Clamou Hilário, triste, — quanto tempo então para uma empresa dessas!…
E quanta dificuldade para o reencontro, se os entes queridos não se
dispuserem a esperar!…
— Sim, — confirmou Silas, — quem se retarda por gosto não pode queixar-se de
quem avança. “A cada um segundo as suas obras”, ( † )
ensinou o Divino Orientador, e ninguém no Universo conseguirá fugir
à Lei.
12 Eu e Hilário, profundamente
tocados pela lição, calamo-nos, confundidos, para orar e pensar.
André Luiz
[1] [No original: “examinava o pente de um revólver.”]
[2] Mateus, 19:7-8. — (Nota do Autor espiritual.)