1. – Quem diz romance, diz obra de imaginação. É da própria essência do romance representar um assunto fictício, quanto aos fatos e personagens. Mas nesse mesmo gênero de produções, há regras de que o bom-senso não permite afastar-se e que, aliadas às qualidades do estilo, constituem o seu mérito. Se os detalhes não forem verdadeiros em si mesmos, ao menos devem ser verossímeis e de perfeito acordo com o meio onde se passa a ação.
Nos romances históricos, por exemplo, é de rigor a manutenção estrita da coloração local, e há anacronismos que não seriam toleráveis. O leitor deve poder transportar-se, pelo pensamento, aos tempos e lugares de que se fala e deles fazer uma ideia justa. Aí estava o grande talento de Walter Scott; lendo-o, encontramo-nos em plena Idade Média. Se ele tivesse atribuído os fatos e gestos de Francisco I a Luís XI, ou mesmo se tivesse feito falar este rei e os personagens de sua corte como no tempo da renascença, nem o mais belo estilo teria sido capaz de resgatar tais erros.
Acontece a mesma coisa nos romances de costumes. Seu mérito está na variedade dos quadros, porque seria o cúmulo do ridículo emprestar a um súdito espanhol os hábitos e o caráter de um inglês.
À primeira vista, o romance parece ser o gênero mais fácil. Consideramo-lo mais difícil que a História, embora menos sério. O historiador tem o quadro traçado pelos fatos, dos quais não pode afastar-se uma linha; o romancista deve tudo criar; mas muitos pensam que basta um pouco de imaginação e de estilo para fazer um bom romance. É um grave erro; é preciso muita instrução. Para fazer a sua Notre-Dame de Paris, † Victor Hugo devia conhecer sua velha Paris arqueológica tão bem quanto a sua Paris moderna.
Pode-se fazer romances sobre o Espiritismo, como sobre todas as coisas. Dizemos mesmo que o Espiritismo, quando for conhecido e compreendido em toda a sua essência, fornecerá às letras e às artes fontes inesgotáveis de poesias encantadoras. Mas por certo não será para os que só o veem nas mesas girantes, nas cordas dos irmãos Davenport ou nas trapaças dos charlatães. Como nos romances históricos ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a tela sobre a qual se quer bordar, a fim de não se cometer disparates, que seriam outras tantas provas de ignorância; tal o músico que produz variações sobre um tema musical e é reconhecido pelas adições da fantasia. Aquele, pois, que não estudou a fundo o Espiritismo, em seu espírito, em suas tendências, em suas máximas, tanto quanto em suas formas materiais, é tão inapto para fazer um romance espírita de algum valor, quanto o teria sido Lesage de fazer Gil Blas, † se não tivesse conhecido a história e os costumes da Espanha.
Para isto é, pois, necessário ser espírita crente e fervoroso? De modo algum; basta ser verídico, e não se o pode ser sem saber. Para fazer um romance árabe por certo não é preciso ser muçulmano, mas é indispensável conhecer bastante a religião muçulmana, seu caráter, seus dogmas e suas práticas, bem como os costumes daí decorrentes, para não fazer agir e falar os africanos como cavalheiros franceses. Mas há os que julgam ser suficiente, para dar o cunho da raça, prodigalizar a torto e a direito os nomes de Alá, de Fátima e de Zulema, pois é mais ou menos tudo quanto sabem do islamismo. Numa palavra, não é preciso ser muçulmano, mas estar impregnado do espírito muçulmano, como para fazer uma obra espírita, ainda que fantástica, deve-se estar impregnado do espírito do Espiritismo. Enfim, é preciso que, lendo um romance espírita, os espíritas possam reconhecer-se, como os árabes deverão reconhecer-se num romance árabe e poder dizer: é isto. Mas nem uns, nem outros se reconhecerão se usarem disfarces; seu autor terá feito uma obra grotesca, exatamente como se um pintor pintasse mulheres francesas em costumes chineses.
2. – Essas reflexões nos são sugeridas a propósito do romance-folhetim que neste momento o Sr. Théophile Gautier publica no grande Moniteur, sob o título de Espírita. Não temos a honra de conhecer pessoalmente o autor; não sabemos quais as suas convicções ou seus conhecimentos a respeito do Espiritismo; sua obra, que ainda está debutando, não permite ver a sua conclusão. Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão sob um único ponto de vista – o das manifestações – desprezando o lado filosófico e moral da doutrina, não corresponderia à ideia geral e complexa que o seu título abarca, muito embora o nome Espírita seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, para a necessidade da ação, não se encerassem nos limites traçados pela experiência; se os apresentasse como se passando em condições inadmissíveis, sua obra faltaria com a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos contos das Mil e uma Noites. † Se atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desaprovam, ela não seria imparcial e, sob esse ponto de vista, não seria uma obra literária séria.
A Doutrina Espírita não é secreta, como a da maçonaria. Não tem mistérios para ninguém e se expõe à luz da publicidade; ela não é mística, nem abstrata, nem ambígua, mas clara e ao alcance de todos; nada tendo de alegórico, nem pode ser motivo de equívocos, nem de falsas interpretações; diz claramente o que admite e o que não admite; os fenômenos cuja possibilidade reconhece não são sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que nem faz milagres, nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se engana quanto às suas tendências, é porque não quer dar-se ao trabalho de a conhecer. Esta clareza e esta vulgarização dos princípios espíritas, que contam aderentes em todos os países e em todas as classes da sociedade, são a mais peremptória refutação às diatribes de seus adversários, porque não há uma só de suas alegações errôneas que não encontre uma resposta categórica. O Espiritismo não pode senão ganhar em ser conhecido, e é o que .trabalham, sem o querer, os que julgam aniquilá-lo por ataques desprovidos de qualquer argumento sério. Os desvios de conveniência na linguagem produzem um efeito inteiramente contrário ao que se propõe; o público os aprecia, e não é em favor dos que se permitem a tanto; quanto mais violenta a agressão, tanto mais gente é levada a se informar da verdade, e isto até mesmo nas fileiras da literatura hostil. A calma dos espíritas diante desse motim; o sangue-frio e a dignidade que conservaram em suas respostas, fazem com a acrimônia dos antagonistas um contraste que choca até os indiferentes e lançaram incertezas nas fileiras opostas, que hoje contam algumas deserções.
O romance espírita pode ser considerado como uma transição passageira entre a negação e a afirmação. É preciso coragem real para afrontar e desafiar o ridículo que se liga às ideias novas, mas essa coragem vem com a convicção. Mais tarde – estamos convencidos – das fileiras de nossos adversários da imprensa sairão campeões sérios da doutrina.
Quando as tendências da obra do Sr. Théophile Gautier estiverem mais bem delineadas, far-lhe-emos nossa apreciação do ponto de vista da verdade espírita.
3. – As reflexões acima naturalmente se aplicam às obras do mesmo gênero sobre o magnetismo e o sonambulismo. Ultimamente a dupla vista forneceu ao Sr. Élie Berthet assunto para um romance muito interessante, publicado pelo Siècle, e que, ao talento de escritor, alia o mérito da exatidão. Incontestavelmente o autor deve ter feito um estudo sério dessa faculdade; para descrevê-la como o faz, é preciso ter visto e observado. Não obstante, poder-se-ia censurar-lhe um certo exagero na extensão que dá em alguns casos. Outro erro, em nossa opinião, é apresentá-la como uma doença. Ora, uma faculdade natural, seja ela qual for, pode coincidir com um estado patológico, mas, por si só, não é uma doença, e a prova disto é que uma porção de pessoas dotadas da dupla vista no mais alto grau, gozam de perfeita saúde. A heroína é aqui uma jovem tuberculosa e cataléptica: esse o seu verdadeiro mal. A faculdade de que goza causou desgraça pelos enganos que se seguiram, razão por que deplora o dom funesto que recebeu. Mas esse dom só foi funesto por ignorância, inexperiência e imprudência dos que dele se serviram desastradamente. Deste ponto de vista não há uma só de nossas faculdades que não possa tornar-se um presente funesto, pelo mau uso ou pelas falsas aplicações que dela possam fazer.
Feitas estas ressalvas, diremos que o fenômeno é descrito com perfeição. É bem essa visão da alma desprendida, que não conhece distâncias, que penetra a matéria como um raio de luz penetra os corpos transparentes, e que é a prova patente e visível da existência e da independência do princípio espiritual; é bem mais o quadro da estranha transfiguração que se opera no êxtase, dessa prodigiosa lucidez que confunde por sua precisão em certos casos, e que desorienta pelas ilusões que às vezes produz. Nos atores do drama, é a pintura mais verdadeira dos sentimentos que agitam os crentes, os incrédulos, os indecisos e os aturdidos. Há um médico que flutua entre o cepticismo e a crença, mas, como homem de bom-senso, que não crê que a Ciência tenha dito a última palavra, observa, estuda e constata os fatos. Sua conduta durante as crises da jovem atesta sua prudência. Há também o descrédito dos exploradores, que aí são justamente fustigados.
O autor teria feito uma obra incompleta se tivesse negligenciado o lado moral da questão. Seu objetivo não é excitar a curiosidade com fatos extraordinários, mas lhes deduzir as consequências úteis e práticas. Entre outros, um episódio prova que ele compreendeu perfeitamente esta parte de seu programa.
A jovem vidente descobre num subterrâneo importantes papéis, que devem pôr termo a um grave processo de família. Descreve os lugares e as circunstâncias com minúcias. As escavações, feitas conforme suas indicações, provam que viu muito bem. Encontram os papéis e o processo é anulado. Notemos de passagem que ela fez essa descoberta espontaneamente, atraída pelo interesse que liga à família e não por solicitações. O título principal consistia de uma carta em estilo antigo, da qual faz a leitura textual e completa com tanta facilidade quanto se a tivesse sob os olhos. É aí, sobretudo, que sua faculdade nos parece um pouco exagerada.
Mais adiante ela vê outro subterrâneo, onde estão imensos tesouros, cuja origem explica. Para lá chegar é preciso atravessar outro jazigo, cheio de restos humanos, restos mortais de numerosas vítimas dos tempos do feudalismo. Até aí, nada que não seja provável; o que não o é absolutamente, é que as almas dessas vítimas aí tenham ficado encerradas há séculos e possam erguer-se ameaçadoras ante os que viessem perturbar seu sombrio repouso, à busca de um tesouro; aí está o fantástico. Se fossem os carrascos, nada de surpreendente. Sabemos, por numerosos exemplos, que tal é, muitas vezes, o castigo temporário dos culpados condenados a ficar no mesmo lugar e em presença de seus crimes, até que, tocados pelo arrependimento, elevem o pensamento a Deus, para implorar sua misericórdia. Mas aqui são as vítimas inocentes que seriam punidas, o que não é racional.
O proprietário do castelo, velho avarento, atraído pela descoberta dos papéis, quer continuar as escavações. Elas são difíceis, perigosas para os operários, mas nada o detém. Em vão a vidente lhe suplica que renuncie; prediz que, se persistir, sobrevirá desgraça. Aliás, acrescenta ela, não o conseguireis. – Então esses tesouros não existem? diz o avarento. – Existem tais quais os descrevi, garanto; mas, ainda uma vez, lá não chegareis. – E quem mo impedirá? – As almas que estão no jazigo que é preciso atravessar.
O velho avarento, céptico endurecido, admitia perfeitamente a vista extracorpórea da moça, mesmo sem compreender bem, porque acabava de ter uma prova à sua custa: a dos papéis encontrados, embora não correspondessem às suas pretensões no processo; mas acreditava mais no dinheiro que nas forças invisíveis. E continua: Com que direito se oporão? Esses tesouros me pertencem, já que estão em minha propriedade. – Não; um dia serão facilmente descobertos por quem deve desfrutá-los; mas não é a vós que estão destinados. Por isso não o conseguireis. Repito: se persistirdes, sobrevirá uma desgraça.
Eis o lado essencialmente moral, instrutivo e verdadeiro do relato. Essas palavras parecem tomadas de O Livro dos Médiuns, no artigo sobre o concurso dos Espíritos para a descoberta dos tesouros: “Se a Providência destina tesouros ocultos a alguém, esse os achará naturalmente; de outra forma, não.” (Capítulo XXVI, nº 295.) Com efeito, não há exemplo de que Espíritos ou sonâmbulos tenham facilitado tais descobertas, assim como a recuperação de heranças, e todos os que, embalados por esta esperança, fizeram semelhantes tentativas, perderam tempo e dinheiro. Tristes e cruéis decepções aguardam os que firmam a esperança de enriquecimento por semelhantes meios. Não é missão dos Espíritos favorecer a cupidez e nos proporcionar riqueza sem trabalho, o que não seria justo nem moral. Sem dúvida o sonâmbulo lúcido vê, mas o que lhe é permitido ver, e os Espíritos podem, conforme as circunstâncias e por ordem superior, obliterar a sua lucidez, ou interpor obstáculos à realização das coisas que não estão nos desígnios da Providência. No caso de que se trata, foi permitido encontrar os papéis, que deviam pôr um termo às dissensões de família, e não para achar tesouros, que só serviriam para a satisfação da cupidez. Eis por que o velho avarento pereceu, vítima de sua obstinação.
As terríveis peripécias do drama imaginado pelo Sr. Élie Berthet não são tão fantásticas quanto se poderia imaginar. Lembram as mais reais, sofridas pelo Sr. Borreau, de Niort, † em pesquisas da mesma natureza, e cujo emocionante relato se acha em sua brochura, intitulada: Como e por que me tornei espírita. (Vide nosso relato na Revista de dezembro de 1864.)
Uma outra instrução, não menos importante, ressalta do livro do Sr. Élie Berthet. A moça viu coisas positivas, e em outra circunstância grave engana-se, atribuindo um crime a uma pessoa inocente. Que consequência daí tira o autor? É a negação da faculdade? Não, pois que, ao lado disto, ele a prova e chega a esta conclusão, justificada pela experiência: a mais comprovada lucidez não é infalível e nela não se poderia confiar de maneira absoluta, sem controle. A visão, pela alma, de coisas que o corpo não pode ver, prova a existência da alma; já é um resultado muito importante. Mas ela não é dada para a satisfação das paixões humanas.
Por que, então, a alma, em seu estado de emancipação, não vê sempre certo? É que, sendo o homem ainda imperfeito, sua alma não pode gozar das prerrogativas da perfeição. Conquanto isolada, ela participa das influências materiais, até sua completa depuração. Sendo assim com as almas desencarnadas ou Espíritos, com mais forte razão com as que ainda estão ligadas à vida corporal. Eis o que faz conhecer o Espiritismo aos que se dão ao trabalho de o estudar.
[1]
[Espirita — Google books, por Théophile Gautier. –
La double vue — Google Books, par Élie Berthet]