1. — Esta obra é hoje muito conhecida para que haja necessidade de fazer-lhe uma análise. Limitar-nos-emos, pois, a examinar o ponto de vista em que se colocou o autor e daí deduzir algumas consequências.
A comovente dedicatória à alma de sua irmã, que o Sr. Renan põe no topo do volume, apesar de muito curta é, em nossa opinião um trecho capital, pois é toda uma profissão de fé. Citamo-la integralmente, porque nos ensejará algumas observações importantes e de interesse geral.
2 À ALMA PURA DE MINHA IRMÃ HENRIETTE.
Morta em Biblos, † em 24 de setembro de 1861.
“Lembras-te, do seio de Deus onde repousas, daqueles longos dias de Ghazir, † onde, a sós contigo, eu escrevia essas páginas inspiradas pelos lugares que acabávamos de percorrer? Silenciosa a meu lado, relias cada folha e a recopiavas tão logo escrita, enquanto o mar, os vilarejos, as ravinas e montanhas se desdobravam aos nossos pés. Quando a luz sufocante abria espaço ao inumerável exército das estrelas, tuas perguntas finas e delicadas, tuas dúvidas discretas me reconduziam ao objeto sublime de nossos pensamentos comuns. Um dia me dizias que amarias este livro, primeiro porque tinha sido feito contigo, depois porque te agradava. Se, por vezes, temias para ele os mesquinhos julgamentos do homem frívolo, sempre estiveste convencida de que as almas verdadeiramente religiosas acabariam se agradando dele. Em meio a essas doces meditações, a morte nos feriu a ambos com sua asa; o sono da febre nos tomou à mesma hora; despertei só!… Agora dormes na terra de Adônis, junto da santa Biblos e das águas sagradas onde as mulheres dos mistérios antigos vinham misturar suas lágrimas. Revela-me, ó bom gênio, a mim que amavas, essas verdades que dominam a morte, impedindo temê-la e quase a fazendo amar.”
A menos que se suponha tenha o Sr. Renan representado uma comédia indigna, é impossível que tais palavras procedam da pena de um homem que crê no nada. Sem dúvida veem-se escritores de talento maleável, jogar com as ideias e com as crenças mais contraditórias, a ponto de iludir os seus próprios sentimentos. É que, assim como o ator, possuem a arte da imitação. Para eles uma ideia não precisa ser artigo de fé; é um tema sobre o qual trabalham, por pouco que se preste à imaginação, e que ora adaptam de um modo, ora de outro, conforme o exijam as circunstâncias. Mas há assuntos aos quais o mais endurecido incrédulo não poderia tocar sem cometer uma profanação: tal é o da dedicatória do Sr. Renan. Em caso semelhante, um homem de coração preferirá abster-se a falar contra a sua convicção; estes não são daqueles assuntos que se escolhem para causar forte impressão.
Tomando as formas dessa dedicatória como expressão conscienciosa do pensamento do autor, aí se encontra mais que uma vaga ideia espiritualista. Com efeito, não é a alma perdida nas profundezas do espaço, absorvida em eterna e beatífica contemplação, ou em dores sem-fim; também não é a alma do panteísta, aniquilando-se no oceano da inteligência universal: é o quadro da alma individual, com a lembrança de suas afeições e ocupações terrenas, voltando aos lugares que habitou, junto às pessoas amadas. O Sr. Renan não falaria assim a um mito, a um ser abismado no nada. Para ele, a alma de sua irmã está ao seu lado; ela o vê, o inspira, interessa-se por seus trabalhos; há entre ambos permuta de pensamentos, comunicação espiritual; sem o suspeitar, ele faz, como tantos outros, uma verdadeira evocação. Que falta a essa crença para ser completamente espírita? A comunicação material. Por que, então, o Sr. Renan a repele, qualificando-a entre as crenças supersticiosas? Porque não admite o sobrenatural, nem o maravilhoso. Mas se reconhecesse o estado real da alma depois da morte, as propriedades de seu envoltório perispiritual, compreenderia que o fenômeno das manifestações espíritas não escapa das leis naturais, e que para isto não é necessário recorrer ao maravilhoso; que, desde que o fenômeno deve ter-se produzido em todos os tempos e em todos os povos, tem sido fonte de uma imensidão de fatos erroneamente qualificados por uns de sobrenaturais e por outros atribuídos à imaginação; que a ninguém é dado o poder de impedir tais manifestações e que, em certos casos, é possível provocá-las.
Que faz, então, o Espiritismo, senão nos revelar uma nova lei da Natureza? Ele faz, em relação a uma certa ordem de fenômenos, o que, para outros, fez a descoberta das leis da eletricidade, da gravitação, da afinidade molecular, etc. Então a Ciência teria a pretensão de haver dito a última palavra da Natureza? Haveria algo mais surpreendente, mais maravilhoso em aparência do que se corresponder em alguns minutos com uma pessoa que se encontra a quinhentas léguas de distância? Antes do conhecimento da lei da eletricidade, tal fato teria passado por magia, feitiçaria, diabrura ou milagre. Sem dúvida nenhuma, mesmo um sábio, a quem houvessem contado o fato, o teria repelido e não lhe faltariam excelentes razões para demonstrar que era materialmente impossível. Impossível, talvez, conforme as leis então conhecidas, mas muito possível, segundo uma lei que não era conhecida. Por que, então, haveria mais possibilidade de comunicação instantânea com um ser vivo, cujo corpo está a quinhentas léguas, do que com a alma desse mesmo ser, que está ao nosso lado? É, dizem, porque não tem mais corpo. E quem vos diz que não o tem? É precisamente o contrário que o Espiritismo vem provar, demonstrando que se sua alma não tem mais o envoltório material, compacto, ponderável, tem um fluídico, imponderável, mas que não deixa de ser uma espécie de matéria; que esse envoltório, invisível em seu estado normal, em certas circunstâncias e por uma espécie de modificação molecular, pode tornar-se visível, como o vapor, pela condensação. Como se vê, isto não passa de um fenômeno muito natural, cuja chave dá o Espiritismo, pela lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível.
Persuadido de que a alma de sua irmã, ou o seu Espírito, o que dá no mesmo, estava junto dele, o Sr. Renan a via e escutava, e deveria crer que essa alma fosse alguma coisa. Se alguém tivesse vindo dizer-lhe: Essa alma, cuja presença o vosso pensamento adivinha, não é um ser vago e indefinido; é um ser limitado e circunscrito por um corpo fluídico, invisível como a maioria dos fluidos; para ela a morte não passou da destruição de seu envoltório corporal, mas conservou o seu invólucro etéreo, indestrutível, de sorte que tendes ao vosso lado a vossa irmã, tal como era em vida, menos o corpo que deixou na Terra, como a borboleta deixa a sua crisálida; morrendo, apenas se despojou da vestimenta grosseira, que não mais lhe podia servir, que a retinha à superfície do solo, mas conservou a roupagem leve, que lhe permite transportar-se para onde queira, transpor o espaço com a rapidez do relâmpago; quanto ao aspecto moral, é a mesma pessoa, com os mesmos pensamentos, as mesmas afeições, a mesma inteligência, porém com percepções novas, mais vastas, mais sutis, uma vez que suas faculdades não mais são comprimidas pela matéria pesada e compacta, através da qual elas deviam transmitir-se. Dizei se este quadro tem algo de irracional. Provando que ele é real, o Espiritismo é assim tão ridículo quanto alguns o pretendem? Em última análise, que faz ele? Demonstra de maneira patente a existência da alma; provando que esta é um ser definido, dá um objetivo real às nossas lembranças e afeições. Se o pensamento do Sr. Renan não passava de um sonho, de uma ficção poética, o Espiritismo vem transformar essa ficção em realidade.
3. — Em todos os tempos a filosofia é ligada à procura da alma, sua natureza, suas faculdades, sua origem e seu destino. Inúmeras teorias foram feitas a propósito, e a questão sempre ficou na incerteza. Por quê? Aparentemente porque nenhuma encontrou o nó do problema e não o resolveu de maneira bastante satisfatória para convencer a todos. O Espiritismo vem, por sua vez, dar a sua teoria. Apoia-se na psicologia experimental; estuda a alma, não só durante a vida, mas após a morte; observa-a em estado de isolamento; ele a vê agir em liberdade, enquanto a filosofia ordinária só a vê em sua união com o corpo, submetida aos entraves da matéria, razão por que muitas vezes confunde a causa com o efeito. A filosofia se esforça por demonstrar a existência e os atributos da alma por fórmulas abstratas, ininteligíveis para as massas; o Espiritismo lhe dá provas palpáveis e, a bem dizer, a faz tocar com o dedo e a ver, exprimindo-se em termos claros, ao alcance de toda gente. A simplicidade de linguagem lhe tiraria o caráter filosófico, como o pretendem certos sábios?
4. — A despeito disto, aos olhos de muita gente a filosofia espírita contém um erro grave, e tal erro se encerra numa única palavra. A palavra alma, mesmo para os incrédulos, tem algo de respeitável e imponente. Ao contrário, a palavra Espírito neles desperta ideias fantásticas de lendas, contos de fadas, fogos-fátuos, bichos-papões, etc. Admitem naturalmente que se possa crer na alma, embora eles mesmos não creiam, mas não podem compreender que, sensatamente, se possa acreditar nos Espíritos. Daí uma prevenção que os faz encarar esta ciência como pueril e indigna de sua atenção; julgando-a pela etiqueta, creem-na inseparável da magia e da feitiçaria. Se o Espiritismo se tivesse abstido de pronunciar a palavra Espírito e se, em todas as circunstâncias a tivesse substituído pela palavra alma, a impressão para eles teria sido completamente outra. Com todo o rigor, esses profundos filósofos, esses livres-pensadores admitem que a alma de um ser que nos foi caro ouça os nossos lamentos e nos venha inspirar, mas não admitirão que o mesmo se dê com seu Espírito. O Sr. Renan pôde colocar no topo de sua dedicatória: À alma pura de minha irmã Henriette; não teria posto: Ao Espírito puro.
Por que, então, o Espiritismo se serviu da palavra Espírito? É um erro? Não, ao contrário. Primeiro porque, desde as primeiras manifestações e antes da criação da filosofia espírita, essa palavra já era usada; desde que se tratava de deduzir as consequências morais dessas manifestações, havia utilidade em conservar uma denominação consagrada pelo uso, a fim de mostrar a conexão dessas duas partes da ciência. Além disso, era evidente que a prevenção ligada a essa palavra, circunscrita a uma categoria especial de pessoas, devia apagar-se com o tempo. O inconveniente era apenas momentâneo.
Em segundo lugar, se para certas pessoas o vocábulo Espírito era um palavrão, para as massas era um atrativo e deveria contribuir mais que o outro para popularizar a doutrina. Assim, pois, era preferível o maior número ao menor.
Um terceiro motivo é mais sério que os dois outros. As palavras alma e Espírito, embora sinônimas e empregadas indiferentemente, não exprimem exatamente a mesma ideia. A alma é, a bem dizer, o princípio inteligente, inatingível e indefinido como o pensamento. No estado dos nossos conhecimentos, não podemos concebê-lo isolado da matéria de maneira absoluta. O perispírito, não obstante formado de matéria sutil, dele faz um ser limitado, definido e circunscrito à sua individualidade espiritual, donde se pode formular esta proposição: A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o HOMEM; a alma e o perispírito separados do corpo constituem o ser chamado ESPÍRITO. Nas manifestações, pois, não é só a alma que se apresenta; está sempre revestida de seu envoltório fluídico; esse envoltório é o intermediário necessário, através do qual ela age sobre a matéria compacta. Nas aparições não é a alma que se vê, mas o perispírito, do mesmo modo que quando se vê um homem vê-se o seu corpo, e não o pensamento, a força, o princípio que o faz agir.
Em resumo, a alma é o ser simples, primitivo; o Espírito é o ser duplo; o homem é o ser triplo. Se se confundir o homem com suas roupas, teremos um ser quádruplo. Nas circunstâncias de que se trata, a palavra Espírito é a que melhor corresponde à coisa expressa. Pelo pensamento representa-se um Espírito, mas não se representa uma alma.
5. — Convencido de que a alma de sua irmã o via e o entendia, o Sr. Renan não podia supor que ela estivesse só no espaço. Uma simples reflexão deveria dizer-lhe que deve ocorrer o mesmo com todas as que deixam a Terra. As almas ou Espíritos assim espalhados na imensidade constituem o mundo invisível que nos cerca e em cujo meio vivemos, de sorte que esse mundo não é composto de seres fantásticos, de gnomos, de duendes, de demônios monstruosos, mas dos mesmos seres que formaram a Humanidade terrestre. Que há nisso de absurdo? O mundo visível e o mundo invisível assim se acham em perpétuo contato, daí resultando uma incessante reação de um sobre o outro; daí uma imensidade de fenômenos que entram na ordem dos fatos naturais. O Espiritismo moderno não os descobriu, nem os inventou; ele os estudou melhor e melhor os observou; procurou as suas leis e, por isso mesmo, as suprimiu da ordem dos fatos maravilhosos.
Os fatos que se prendem ao mundo invisível e às suas relações com o mundo visível, mais ou menos observados em todas as épocas, ligam-se à história de quase todos os povos e, sobretudo, à história religiosa. Eis por que em muitas passagens, escritores sacros e profanos fazem alusão a eles. É por falta de conhecimento dessas relações que tantas passagens ficaram ininteligíveis e foram interpretadas tão diversamente e tão falsamente.
É por esta mesma razão que o Sr. Renan equivocou-se tão singularmente quanto à natureza dos fatos relatados no Evangelho, quanto ao sentido das palavras do Cristo, seu papel e seu verdadeiro caráter, como o demonstraremos num próximo artigo [abaixo]. Estas reflexões, a que nos conduziram o seu preâmbulo, eram necessárias para apreciar as consequências por ele tiradas do ponto de vista em que se colocou.
[Revista de junho de 1864].
6. A VIDA DE JESUS, PELO SR. RENAN.
(2º artigo. – Vide o número de maio de 1864.)
Este é um daqueles livros que não podem ser completamente refutados senão por outro. Precisaria ser discutido artigo por artigo. É uma tarefa que não empreenderemos, por tocar questões que não são de nossa alçada e de que muitos outros se encarregarão. Limitar-nos-emos ao exame das consequências tiradas pelo autor, do ponto de vista em que se colocou.
Há nesta obra, como em todas as obras históricas, duas partes bem distintas: o relato dos fatos e a apreciação dos fatos. A primeira é uma questão de erudição e de boa-fé; a segunda depende inteiramente da opinião pessoal. Dois homens podem concordar perfeitamente quanto a uma e diferir completamente quanto à outra.
É natural que a parte religiosa tenha sido atacada, já que é uma questão de crença, mas a parte histórica parece não ser invulnerável, a julgar pelas críticas dos teólogos, que não só lhe contestam a apreciação, mas a exatidão de certos fatos. Deixaremos aos mais competentes do que nós o cuidado de decidir esta última questão. Entretanto, e sem nos constituirmos em juiz do debate, reconhecemos que certas críticas evidentemente são fundadas, mas que, sobre vários pontos importantes da História, as observações do Sr. Renan são perfeitamente justas. Entre as numerosas refutações que foram feitas ao seu livro, cremos dever assinalar a do padre Gatry † como uma das mais lógicas e mais imparciais. Ele aí ressalta com muita clareza as contradições encontradas a cada passo. n
Contudo, admitamos que o Sr. Renan em nada se tenha afastado da verdade histórica. Isto não implica a justeza de sua apreciação, porque ele fez esse trabalho em vista de uma opinião e com ideias preconcebidas. Estudou os fatos para neles buscar a prova dessa opinião, e não para formar uma opinião; naturalmente não viu senão o que lhe pareceu conforme à sua maneira de ver, não tendo visto o que lhe era contrário. Sua opinião é a sua medida; aliás, ele o diz nesta passagem de sua introdução, à página 5: “Ficarei satisfeito se, depois de ter escrito a vida de Jesus, me for dado contar como entendo a história dos apóstolos, o estado da consciência cristã durante as semanas que se seguiram à morte de Jesus, a formação do ciclo lendário da ressurreição, os primeiros atos da Igreja de Jerusalém, a vida de São Paulo, etc.” Pode haver diversas maneiras de apreciar um fato, mas o fato em si mesmo é independente da opinião. É, pois, uma história dos apóstolos à sua maneira que o Sr. Renan se propõe escrever, como escreveu, à sua maneira, a história da vida de Jesus. Acha-se ele nas condições de imparcialidade requeridas para que sua opinião faça lei? Que ele nos permita duvidar.
Persuadido de que estava certo, pôde agir, e cremos que o fez de boa-fé e que os erros materiais que lhe censuram não resultam de um desígnio premeditado de alterar a verdade, mas de uma falsa apreciação das coisas. Ele está na posição de um homem consciencioso, partidário exclusivo das ideias do antigo regime e que escrevesse uma história da Revolução Francesa. Seu relato poderá ser de escrupulosa exatidão, mas o julgamento que fizer dos homens e das coisas será o reflexo de suas próprias ideias; censurará o que outros aprovam. Em vão terá percorrido os lugares onde se desenrolaram os acontecimentos; os lugares lhe confirmarão os fatos, mas não lhe farão encará-los de outra maneira. Tal foi o Sr. Renan, percorrendo a Judeia † com o Evangelho na mão; encontrou os traços do Cristo, de onde concluiu que o Cristo tinha existido, mas não viu o Cristo de maneira diversa da que o via antes. Onde não viu senão os passos de um homem, um apóstolo da fé ortodoxa teria percebido o selo da Divindade.
Sua apreciação decorre do ponto de vista em que se colocou. Defende-se do ateísmo e do materialismo, porque não crê que a matéria pense, porque admite um princípio inteligente, universal, repartido pelos indivíduos em dose mais ou menos forte. Em que se torna esse princípio inteligente após a morte de cada criatura? A crer na dedicatória do Sr. Renan à alma de sua irmã, aquela conserva sua individualidade e suas afeições. Mas se a alma conserva sua individualidade e suas afeições, há, então, um mundo invisível, inteligente e amante. Ora, desde que esse mundo é inteligente, não pode ficar inativo; deve representar um papel qualquer no Universo. Pois bem! A obra inteira é a negação desse mundo invisível, de toda inteligência ativa fora do mundo visível; por conseguinte, de todo fenômeno resultante da ação de inteligências ocultas, de toda relação entre os mortos e os vivos, donde se deve concluir que sua tocante dedicatória é uma obra da imaginação, suscitada pelo pesar sincero que sente pela perda da irmã, e que aí exprime mais seu desejo do que sua crença. Porque, se tivesse acreditado seriamente na existência individual da alma da irmã, na persistência de sua afeição por ele, na sua solicitude, na sua inspiração, essa crença lhe teria dado ideias mais verdadeiras sobre o sentido da maior parte das palavras do Cristo.
Com efeito, o Cristo, preocupando-se com o futuro da alma, incessantemente faz alusão à vida futura, ao mundo invisível, que apresenta, consequentemente, como muito mais invejável que o mundo material e como devendo constituir o objetivo de todas as aspirações do homem. Para quem nada vê fora da Humanidade tangível, estas palavras: “Meu reino não é deste mundo; ( † ) Há várias moradas na casa de meu Pai; ( † ) Não busqueis tesouros da Terra, mas os do céu; ( † ) Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”, ( † ) e tantas outras, só devem ter um sentido quimérico. É assim que as considera o Sr. Renan. Diz ele: “A parte de verdade, contida no pensamento de Jesus, o tinha arrastado à quimera que o obscurecia. Contudo, não desprezemos esta quimera, que foi a casca grosseira do bulbo sagrado do qual vivemos. Este fantástico reino do céu, essa busca sem-fim de uma cidade de Deus, que sempre preocupou o Cristianismo em sua longa carreira, foi o princípio do grande instinto do futuro, que animou todos os reformadores, discípulos obstinados do Apocalipse, desde Joaquim de Flore, † até o sectário protestante de nossos dias.” (Cap. XVIII, página 285, 1ª edição). n
A obra do Cristo era toda espiritual. Ora, não crendo o Sr. Renan na espiritualização do ser, nem num mundo espiritual, naturalmente deveria tomar o oposto de suas palavras e o julgar do ponto de vista exclusivamente material. Um materialista ou um panteísta, julgando uma obra espiritual, é como um surdo julgando um trecho de música. Julgando o Cristo do ponto de vista em que se colocou, o Sr. Renan deve ter-se equivocado quanto às suas intenções e o seu caráter. A mais evidente prova disto se acha nesta estranha passagem de seu livro: “Jesus não é um espiritualista, porquanto tudo para ele deságua numa realização palpável; ele não tem a mínima noção de uma alma separada do corpo. Mas é um idealista completo; para ele a matéria não passa do sinal da ideia, e o real a expressão viva do que não aparece.” (Cap. VII, página 128).
Concebe-se o Cristo, fundador da doutrina espiritualista por excelência, não acreditando na individualidade da alma, da qual não tem a menor noção e, desse modo, não crendo na vida futura? Se não é espiritualista, é materialista e, consequentemente, o Sr. Renan é mais espiritualista que ele. Tais palavras não se discutem; bastam para indicar o alcance do livro, porque provam que o autor leu os Evangelhos, ou com muita leviandade, ou com um espírito tão prevenido que não viu o que salta aos olhos de todo o mundo. Pode admitir-se sua boa-fé, mas não se admitirá, por certo, a justeza de sua visão.
Todas as suas apreciações decorrem da ideia de que o Cristo só tinha em vista as coisas terrestres. Segundo ele, era um homem essencialmente bom, desinteressado dos bens deste mundo, costumes muito suaves, instrução limitada ao estudo dos textos sagrados, inteligência natural superior, a quem as disputas religiosas dos judeus deram a ideia de fundar uma doutrina. Nisto foi favorecido pelas circunstâncias, que soube explorar habilmente. Sem ideia preconcebida e sem plano definitivo, vendo que não teria êxito junto aos ricos, procurou seu ponto de apoio nos proletários, naturalmente animados contra os ricos; lisonjeando-os, deveria transformá-los em seus amigos. Se disse que o reino dos céus é para as crianças, foi para agradar às mães, que tomava por seu lado fraco e fazê-las partidárias. Assim, sob muitos aspectos, a religião nascente foi um movimento de mulheres e crianças. Numa palavra, nele tudo era cálculo e combinação e, auxiliado pelo amor do maravilhoso, triunfou. Aliás, não muito austero, porque amou muito Madalena, pela qual foi amado. Várias mulheres ricas proviam às suas necessidades. Ele e seus apóstolos eram folgazões e não desdenhavam os banquetes. Vede antes o que ele diz:
7. — “Três ou quatro galileias devotadas acompanhavam sempre o jovem mestre e disputavam o prazer de o escutar e dele cuidar, cada uma por sua vez. Traziam para a seita nova um elemento de entusiasmo e de maravilhoso, cuja importância já se apreende. Uma delas, Maria de Magdala, que celebrizou no mundo o nome de seu pobre vilarejo, parece ter sido uma pessoa muito exaltada. Segundo a linguagem da época, tinha sido possessa de sete demônios, isto é, tinha sido afetada de doenças nervosas, aparentemente inexplicáveis. Jesus, por sua beleza pura e suave, acalmou essa organização perturbada. Madalena lhe foi fiel até ao Gólgota e, no dia seguinte à sua morte, representou um papel de primeira ordem, por ter sido o elemento principal pelo qual se estabeleceu a fé na ressurreição, como veremos mais tarde. Joana, mulher de Cusa, um dos intendentes de Antipas, Suzana e outras, ( † ) que ficaram desconhecidas, o seguiam sem cessar e o serviam. Algumas eram ricas e punham, por sua fortuna, o jovem profeta em condição de viver sem exercer o ofício que professara até então.” (Cap. IX, página 151).
“Jesus compreendeu bem depressa que o mundo oficial de seu tempo não se prestaria absolutamente para o seu reino. Ele tomou seu partido com extrema petulância. Deixando lá toda essa gente de coração empedernido e estreitos preconceitos, voltou-se para os simples. O reino de Deus é feito para as crianças e para os que se lhes assemelham; para os desprezados deste mundo, vítimas da arrogância social, que repele o homem bom, mas humilde… O puro ebionismo, † isto é, que os pobres (ebionin) são os únicos a serem salvos e o reino dos pobres vai chegar, foi, pois, a doutrina de Jesus. (Cap. XI, página 178).
“Ele não apreciava os estados da alma senão na proporção do amor que aí se mistura. Mulheres com o coração cheio de lágrimas e dispostas por suas faltas aos sentimentos de humildade, estavam mais perto de seu reino do que as naturezas medíocres, as quais muitas vezes têm pouco mérito por não terem falido. Por outro lado, concebe-se que essas almas ternas, achando em sua conversão à seita um meio fácil de reabilitação, a ele se ligavam com paixão.
“Longe de buscar atenuar os murmúrios provocados por seu desdém às suscetibilidades sociais do tempo, parecia ter prazer em os excitar. Jamais foi confessado mais altivamente esse desprezo do mundo, que é a condição das grandes coisas e da grande originalidade. Só perdoava ao rico quando este, por força de algum preconceito, era malvisto pela sociedade. Preferia claramente as pessoas de vida equívoca e de pouca consideração aos notáveis ortodoxos. Dizia: “Publicanos e cortesãs vos precederão no reino de Deus. Veio João; publicanos e cortesãs creram nele e, apesar disto, não vos convertestes.” Compreende-se que a censura por não terem seguido o bom exemplo que lhes davam as filhas do prazer deveria ser cruel para gente que fazia profissão de austeridade e de uma moral rígida.
“Não tinha qualquer afetação exterior, nem dava mostras de severidade. Não fugia à alegria e ia de bom grado às festas de casamento. Um de seus milagres foi feito para distrair as bodas de um vilarejo. As bodas no Oriente se dão à noite. Cada um leva uma lâmpada; as luzes que vão e vêm têm um efeito muito agradável. Jesus gostava deste aspecto alegre e animado e daí tirava as suas parábolas. (Cap. XI, página 187).
“Os fariseus e os doutores gritavam, escandalizados. Diziam: Vede com que gente ele come! Jesus tinha, então, finas respostas, que exasperavam os hipócritas: Não são os sadios que precisam de médico.” (Cap. XI, página 185).
O Sr. Renan tem o cuidado de indicar, em notas de chamada, as passagens do Evangelho a que faz alusão, para mostrar que se apoia no texto. Não é a verdade das citações que se lhe contesta, mas a interpretação que lhes dá. É assim que a profunda máxima deste último parágrafo é travestida numa simples tirada espirituosa. Tudo se materializa no pensamento do Sr. Renan; em todas as palavras de Jesus nada vê além do terra-a-terra, porque ele próprio nada enxerga fora da vida material.
Depois de uma idílica descrição da Galileia, † de seu clima delicioso, de sua fertilidade luxuriante, do caráter doce e hospitaleiro de seus habitantes, dos quais faz verdadeiros pastores da Arcádia, † acha, na disposição de espírito que daí devia resultar, a fonte do Cristianismo.
8. — “Esta vida contente e facilmente satisfeita não levava ao grosseiro materialismo do nosso camponês, à grande alegria de uma normanda generosa, à pesada alegria dos flamengos. Ela se espiritualizava em sonhos etéreos, numa espécie de misticismo poético, confundindo o Céu e a Terra… A alegria fará parte do reino de Deus. Não é a filha dos humildes de coração, dos homens de boa vontade?”
“Toda a história do Cristianismo nascente tornou-se uma espécie de deliciosa pastoral. Um Messias em repasto de bodas, a cortesã e o bom Zaqueu chamados a seus festins, os fundadores do reino do céu, como um cortejo de paraninfos: eis o que a Galileia ousou e fez aceitar.” (Cap. IV pág. 67).
“Jesus foi dominado por um sentimento de admirável profundidade, bem como o grupo de crianças alegres que o acompanhavam e dele fez para a eternidade o verdadeiro criador da paz da alma, o grande consolador da vida.” (Cap. X, pág. 176).
“Utopias de vida bem-aventurada, fundadas na fraternidade dos homens e o culto puro do verdadeiro Deus preocupavam as almas elevadas e em toda parte produziam ensaios ousados, sinceros, mas de pouco futuro.” (Cap. X, pág. 172).
“No Oriente, a casa onde entra um estrangeiro torna-se, em seguida, um lugar público. O vilarejo inteiro aí se reúne; os meninos a invadem; os criados se afastam; eles voltam sempre. Jesus não suportava que maltratassem esses ingênuos ouvintes; aproximava-os de si e os abraçava. As mães, encorajadas por tal acolhida, traziam-lhe seus bebês para que ele os tocasse… As mulheres e as crianças igualmente o adoravam…
“Assim, a religião nascente foi, sob vários aspectos, um movimento de mulheres e de crianças. Estes últimos o rodeavam à feição de uma jovem guarda para a inauguração de sua inocente realeza e lhe faziam pequenas ovações, que muito lhe agradavam, chamando-o filho de Davi, gritando: Hosana! e agitando palmas ao seu redor. Como Savonarola, talvez Jesus os fizesse servir de instrumento a missões piedosas. Ele estava bem à vontade para ver esses jovens apóstolos, que não o comprometiam, lançar-se à frente e conferir-lhe títulos que ele próprio não ousava tomar.” (Cap. XI, pág. 190).
Jesus é, desse modo, apresentado como um ambicioso vulgar, de paixões mesquinhas, que age às escondidas e não tem coragem de se confessar. Em falta de uma realeza efetiva, contenta-se com a mais inocente e menos perigosa que lhe conferem os meninos. A passagem seguinte dele faz um egoísta:
“Mas de tudo isto não resultou uma Igreja estabelecida em Jerusalém, nem um grupo de discípulos hierosolimitas [Jerusalemitas]. O encantador doutor, que a todos perdoava, contanto que o amassem, não podia achar muito eco nesse santuário de disputas vãs e sacrifícios antiquados.”
“Sua família parece não o ter amado e, por momentos, ele é duro para com ela. Como todos os homens exclusivamente preocupados com uma ideia, chegava a ter em pouca conta os laços de sangue… Logo, em sua audaciosa revolta contra a Natureza, devia ir ainda mais longe e o veremos espezinhando tudo quanto é do homem, o sangue, o amor, a pátria, não guardando ressentimento senão para a ideia que se lhe apresentava como forma absoluta do bem e do verdadeiro.” (Cap. III, pág. 42 e 43).
Eis o que o Sr. Renan intitula: Origens do Cristianismo. Quem alguma vez teria acreditado que um grupo de pessoas alegres, um bando de mulheres, de cortesãs e de crianças, tendo à frente um idealista, que não possuía a menor noção da alma, pudesse, auxiliado por uma utopia, pela quimera de um reino celeste, mudar a face do mundo religioso, social e político? Em outro artigo examinaremos o modo pelo qual ele encara os milagres e a natureza da pessoa do Cristo.
[1]
[Vie
de Jésus, par Ernest Renan — Google Books.]
[2] Brochura
in-18 – Preço: 1 fr.; Plon, 8, rue Garancière. [Jésus-Christ:
réponse à m. Renan — Google Books. — Veja também: [Le livre de l’Abbé Anglade sur ouvrage de M. Renan. - Google Books.]
[3] Todas as nossas citações são tiradas da 1ª edição.